sábado, 2 de fevereiro de 2013

Sobre homofobia, Fidel sempre assumiu responsabilidades, diz Mariela Castro

ENTREVISTA EM QUATRO PARTES
De SALIM LAMRANI, para o OPERA MUNDI

Na primeira parte da entrevista, filha do atual presidente de Cuba, a ativista pelos direitos gays falou sobre as polêmicas UMAPs
Na segunda parte da entrevista, Mariela Castro fala sobre a política discriminatória levada a cabo entre 1971 e 1976
Na terceira parte da entrevista, a filha de Raúl Castro comenta as atuais políticas sobre diversidade sexual na ilha
Na quarta parte da entrevista, a ativista pelos direitos gays em Cuba fala sobre transexualidade e prostituição


Mariela Castro Espín conseguiu se libertar da herança familiar. Sobrinha de Fidel Castro, líder histórico da Revolução Cubana, e filha de Raúl Castro, atual presidente de Cuba, Mariela ganhou reconhecimento internacional não graças ao sobrenome, mas sim pela ação a favor do direito à diversidade sexual.

Licenciada em Psicologia e Pedagogia, com mestrado em sexualidade, Mariela tornou sua a causa dos homossexuais, bissexuais, lésbicas e transexuais e possibilitou que essas comunidades saíssem da marginalidade na qual fora colocada pela sociedade, como diretora do Centro de Educação Sexual (Cenesex), cuja atuação tem sido coroada com êxitos.


Desde 2007, o dia contra a homofobia é celebrado em Cuba, em 17 de maio. O Estado se encarrega gratuitamente das operações de mudança de sexo. A homofobia diminuiu de forma sensível, apesar de persistir em alguns setores. Finalmente, importantes instituições, como o Partido Comunista de Cuba ou o Ministério da Cultura, são agora aliados de primeira ordem na luta pelos direitos de todos.
Mariela se parece com a mãe, Vilma Espín. Herdou ao mesmo tempo a beleza natural e o caráter. De fato, como ilustra a conversa abaixo, deprecia a linguagem estereotipada e não vacila em apontar as injustiças que foram cometidas em Cuba no passado, ou em denunciar os obstáculos institucionais ainda presentes na sociedade. Sua franqueza não suscita unanimidade no poder cubano, particularmente no setor mais conservador. Mas, cada vez que Raúl Castro recebe uma queixa a seu respeito, a resposta é invariável: “Se você tem algo a dizer sobre a minha filha, vá procurá-la diretamente”, conta ela. No momento, os críticos não arrefeceram.

Além de não evitar nenhuma pergunta, Mariela não impôs condições prévias à entrevista, dividida em quatro partes. Na primeira parte do diálogo , aborda temas como a situação dos homossexuais após o triunfo da Revolução, as tristemente célebres Unidades Militares de Ajuda à Produção, o famoso “Quinquênio Cinza”, a Fundação do Cenesex, a luta contra a homofobia, a prostituição, o fenômeno transexual ou o casamento para todos.


Opera Mundi: Qual era a situação das minorias sexuais em 1959, após o triunfo da Revolução em Cuba?
Mariela Castro Espín: No início dos anos 1960, a sociedade cubana era o reflexo de sua herança cultural, principalmente espanhola. Cuba tinha uma cultura “homoerótica”, patriarcal e, portanto, homofóbica. Naquela época, o mundo inteiro era patriarcal e homofóbico, tanto os países desenvolvidos como as nações do Terceiro Mundo. Em todas as culturas ocidentais baseadas na religião católica dominante essas características estavam estabelecidas nos códigos culturais da relação homem/mulher.

No entanto, é curioso que o processo da Revolução Cubana, em cujo programa político se reivindicava a luta contra desigualdades, racismo e diferentes formas de discriminação contra mulheres, além do fim de injustiças e brechas entre a cidade e o campo, não tenha se interessado pelos homossexuais e os considerado vítimas de discriminações de todos os tipos. A homofobia era a regra inclusive depois do triunfo da Revolução.

OM: Então ser homofóbico era algo “natural”?
MCE: A homofobia era a regra. O que se considerava anormal era o respeito a quem havia escolhido uma orientação sexual diferente. Mas, repito, não era algo específico de Cuba. A homofobia institucionalizada dos primeiros anos da Revolução refletia essa realidade e estava em consonância com a cultura da época. Zombar dos homossexuais era algo normal, assim como depreciá-los ou denegri-los. Era normal discriminá-los no mercado de trabalho, em sua vida profissional, e esse era o aspecto mais grave.

A Revolução permitiu ao povo cubano conseguir a soberania nacional e colocou em xeque inúmeros paradigmas, como a virgindade da mulher como condição prévia ao casamento, a ausência do divórcio, o status do homem como chefe da família, a fidelidade natural da mulher frente à infidelidade do homem, a desqualificação da família monoparental e da mulher solteira, mas não se interessou pelo problema da diversidade sexual.

OM: Entre 1965 e 1968, o Estado Cubano elaborou as Unidades Militares de Ajuda à Produção, as Umap, às quais os homossexuais foram integrados à força. Você poderia falar sobre esse obscuro episódio?
MCE: Primeiro, convém precisar que as Umap afetavam todos os homens em idade de entrar no serviço militar, não só os homossexuais. Alguns, inclusive, falaram de campos de concentração para homossexuais. Não creio que seja necessário exagerar, é preciso ser fiel à verdade histórica. As Umap afetaram a todo, menos aos que podia justificar [a não integração] com um emprego estável. Os estudantes tinham que colocar entre parênteses a carreira universitária para fazer o serviço militar.

É interessante também lembrar o contexto da época. Nosso país se encontrava constantemente sob a agressão dos Estados Unidos: a Baía dos Porcos em abril de 1961, a Crise dos Mísseis em 1962, e os grupos da CIA compostos por exilados cubanos, que multiplicavam os atentados terroristas. As bombas explodiam todos os dias em Cuba, queimavam canaviais, sabotavam as ferrovias, atacavam teatros com bazuca. Não se pode esquecer essa realidade, vivíamos em estado de sítio. Grupos paramilitares agiam nas montanhas do Escambray e assassinavam trabalhadores rurais favoráveis à Revolução, torturavam e executavam jovens professores que tinham se integrado à campanha de alfabetização. No total, 3.478 cubanos perderam a vida por conta do terrorismo naquela época. Foi um período muito difícil, nós nos encontrávamos permanentemente agredidos e a luta de classes estava em seu auge. Os latifundiários tinham reagido com muita violência à reforma agrária e não estavam dispostos a perder sua posição de poder na sociedade. Então havia uma mobilização geral para a defesa da nação, e neste contexto nasceram as Umap.

OM: Então porque as Umap foram associadas ao reino do arbitrário e da discriminação?
MCE: Como todos deveriam participar na defesa do país, grupos marginais, como os hippies, por exemplo, e os filhos da burguesia que haviam se acostumado com uma vida de ócio e não trabalhavam, pois tinham recursos, tiveram que se integrar às Umap. Grupos que não se sentiam comprometidos com o processo de transformação social iniciado em 1959 e preferiam um papel de observador tinham que se integrar e trabalhar nas fábricas ou na agricultura.


O exército criou então as Umap para apoiar os processos de produção. Mas a realidade foi outra. O Ministério do Interior tinha a tarefa de identificar esses grupos e integrá-los à força, pois o serviço era obrigatório.

Essas pessoas não tinham uma boa imagem na sociedade cubana, que os rechaçava por sua falta de comprometimento na construção da nova nação revolucionária, e os considerava parasitas.

Lembro, em minha juventude, de ouvir reflexões desagradáveis devido à minha relação familiar com meu tio e meu pai. Alguns diziam: “É uma menininha”, quer dizer, uma “filhinha de papai”, uma pessoa que gozava de uma posição privilegiada, que não tinha o mesmo padrão de vida que o resto por seus vínculos familiares. Eu sentia uma raiva terrível cada vez que isso acontecia e me esforçava para fazer tudo o que os demais faziam, rechaçando todo tipo de privilégio ou de favoritismo. Nunca suportei esse qualificativo, que era muito depreciativo.

OM: Esse método de integração era muito arbitrário.
MCE: Convém recordar que o procedimento era arbitrário e discriminatório. Houve vozes na sociedade cubana que se opuseram a essas medidas, entre elas a Federação de Mulheres Cubanas, assim como muitas personalidades. As denúncias que algumas mães fizeram desataram esse movimento contra as Umap.

OM: E os homossexuais? Foram vítimas de muitos abusos nas Umap?
MCE: Em uma sociedade homofóbica, nesse contexto de hegemonia masculina e viril, as autoridades consideraram que os homossexuais sem profissão tinham que ser integrados às Umap para serem verdadeiros “homens”. Em algumas delas, essas pessoas foram tratadas como todos os demais e não foram vítimas de discriminação. Em outras, onde reinava a arbitrariedade, eles foram separados injustamente dos demais jovens. Havia então o grupo dos homossexuais e dos travestis, o grupo dos religiosos e dos crentes, o grupo dos hippies, etc. Foi reservado a eles um tratamento especial com chacotas cotidianas e humilhações públicas. Em uma palavra, as discriminações que existiam na sociedade cubana se tornaram mais vivas e mais cruéis nas Umap.

Não resta a menor dúvida de que o processo de criação e de funcionamento das Umap foi arbitrário. Por isso, essas unidades foram fechadas definitivamente três anos depois. Mas, repito, a situação dos homossexuais no resto do mundo era similar, às vezes pior. Isso, evidentemente, não justifica em nada as discriminações das quais os homossexuais foram vítimas em Cuba.

OM: Qual era a situação das minorias sexuais no resto do mundo?
MCE: Há um estudo extremamente interessante de um pesquisador norte-americano chamado David Carter sobre os movimentos LGBT na América Latina e no resto do mundo. Por exemplo, no nosso continente, as ditaduras militares perseguiam impiedosamente os homossexuais. Essa realidade, no entanto, não deve nos impedir de analisar criticamente o que ocorreu em Cuba.

OM: Qual foi a responsabilidade de Fidel na criação das Umap?
MCE: Fidel Castro é como o Quixote. Sempre assumiu suas responsabilidades como líder do processo revolucionário. Em razão de seu cargo, considera que deve assumir a responsabilidade de tudo o que ocorreu em Cuba, tanto os aspectos positivos como os negativos. É uma posição muito honesta de sua parte, ainda que me pareça não ser justo, pois não deve assumir sozinho todos esses excessos, o que não aproxima da verdade histórica. Era uma época na qual emergia uma nova sociedade com a criação de novas instituições, em meio a agressões, traições, ameaças contra sua vida. Fidel foi vítima de mais de 600 tentativas de assassinato. Não podia cuidar de tudo e, portanto, delegava muitas tarefas.

OM: Concretamente, qual é o vínculo entre Fidel e as Umap?
MCE: Fidel Castro não desempenhou um papel nesta criação. Na realidade, o único vínculo dele com as Umap foi quando decidiu fechá-las, após numerosos protestos da sociedade civil, e a investigação levada a cabo a pela política das Forças Armadas, que concluiu que muitos abusos foram cometidos. A partir dessa data, decidiu-se não incluir os homossexuais no serviço militar para evitar discriminações em uma força marcada pela homofobia, não apenas em Cuba, mas no resto do mundo. Também se poderá argumentar que se tratava de uma nova discriminação em relação a eles, mas sua incorporação às forças armadas foi tão nefasta por conta dos preconceitos, que resultou nessa decisão.

OM: Qual era o ponto de vista do seu pai?
MCE: Falei muitas vezes sobre esse tema com meu pai e ele me explicou que era extremamente difícil eliminar os preconceitos sem uma política de educação. Por outro lado, o universo militar continua sendo muito machista em Cuba. Lamentavelmente, é notório que, em nossas sociedades, rechaçamos tudo o que se mostra diferente. Imagine então no contexto dos anos 1960. A esse respeito, o Cenesex lançou um programa de pesquisa sobre as Umap e estamos recolhendo os testemunhos das pessoas que sofreram com essa política.





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