sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Apresentação à Ontologia de Lukács



12.02.07_Apresentação Lukács


Por José Paulo Netto.


1.
Comecemos por uma nota pessoal.
A 28 de abril de 1963 falecia Gertrud Bortstierb Lukács, que Lukács conhecera em 1906, com quem travara estreitas relações em 1917 e que, em 1919, tomara como companheira. A significação de Gertrud na vida de Lukács foi absolutamente excepcional[1] – e sua morte foi para ele um duro golpe.
No verão daquele ano, o filósofo redigiu, em trabalho a que se entregou catarticamente, um ensaio sobre uma peça de Lessing (Minna von Barnhelm, de 1767) em que, sem nenhuma alusão direta à companheira, prestava-lhe um tributo comovedor: na personagem do ilustrado alemão, Lukács de fato via Gertrud – sábia, a sua “sabedoria” não está “acima da vida”, “não é uma superioridade teórica”; “é o simples impulso intacto de um autêntico ser humano que quer uma vida com sentido, só realizável na comunidade e no amor. É, pois, o impulso a ver homens concretos em sua concreta humanidade”. Em Minna – e, para Lukács, em Gertrud – “encarnou-se, do modo mais simples, o humanamente melhor da Ilustração germânica”[2].
Mas a grande homenagem explícita à companheira, na imediata sequência da sua morte, Lukács prestava-a – exatas quatro décadas depois de dedicar-lhe o seu livro mais célebre[3] – no pórtico da sua Estética: afirma ali que pretendia oferecer a Gertrud, “como modesta tentativa de agradecer mais de quarenta anos de comunidade de vida e pensamento, de trabalho e luta”, “as obras em que penso reunir os principais resultados da minha evolução filosófica, da minha ética e da minha estética”. E lamenta só poder fazê-lo à sua memória[4].
Pois bem: esta Ontologia… que o leitor de língua portuguesa tem hoje em mãos é parte do legado que Lukács dedicou à sua companheira.
12.02.07_Apresentação Lukács_Gertrude
2.
O primeiro livro que Lukács ofereceu a Gertrud – História e consciência de classe – veio à luz naquela que foi, muito provavelmente, a década mais produtiva da história do marxismo na primeira metade do século XX, a década que se seguiu à Revolução de Outubro. Ali se encontra a sementeira de originais ensaios de Bloch, do próprio Lukács e do que de melhor produziu Korsch[5], as raízes do pensamento maduro de Gramsci e as bases do que de criativo (pense-se, a título de exemplo, em Marcuse, Lefebvre e, noutro registro, em L. Kofler) haveria de sobreviver à longa noite inaugurada pelo stalinismo. Já o livro que dedicou à memória de Gertrud na abertura dos anos 1960 – a Estética – conheceu a publicidade ao cabo de três decênios de paralisia teórica no campo da tradição teórico-política fundada por Marx e Engels, decênios em que a vulgata “marxista-leninista” congelara a reflexão e a investigação no chamado campo socialista e aviltara boa parte do pensamento comunista no Ocidente.
Poucos como Lukács experimentaram o peso da era stalinista e, sob ela, exercitaram a resistência possível – no seu caso, com ônus expressivos em sua vida e em sua obra. Por isso, já septuagenário, também como poucos visualizou nos desdobramentos da crítica “oficial” ao stalinismo, iniciada, em 1956, no XX Congresso do PCUS (cujos limites reconheceu e criticou, progressiva e cada vez mais radicalmente), a possibilidade, e sobretudo a incontornável urgência, de um movimento teórico que levasse ao que várias vezes designou como renascimento do marxismo.
As condições objetivas em que Lukács se encontrava, desde o final da década de 1950, lhe eram propícias para impulsionar esse movimento. A “normalização” operada por Kadar na Hungria, depois da rebelião de outubro de 1956, incluiu a alternativa de seu retorno (do desterro na Romênia) a Budapeste, mesmo com restrições à sua atividade política; o regime húngaro viu-se compelido a suportá-lo e ele gradualmente rompeu o círculo de silêncio com o qual as autoridades governamentais procuravam isolá-lo (bem como cessou a campanha caluniosa que contra ele empreendia J. Szigéti, apoiado por B. Fogarasi). A pouco e pouco – não tendo sido menor, aqui, o papel mediador exercido por G. Aczél, um dos responsáveis pela política cultural húngara do período –, Lukács reinseriu-se inteiramente na cena pública, e para tanto também contribuiu a ressonância que sua obra, naqueles anos, começara a encontrar no Ocidente[6]. Esse processo culminou em 1967, com sua reintegração ao Partido Comunista.
Assim, na entrada dos anos 1960, pode-se verificar que Lukács, desfrutando de uma espécie de otium cum dignitade, contava, malgrado a deterioração paulatina de sua saúde (curso natural na vida de quem nasceu a 13 de abril de 1885), com uma situação objetiva bastante favorável para empreender a tarefa que se impunha e com a qual se comprometeu com ardor juvenil: ativar o/participar do renascimento do marxismo[7].
Ademais, sua convicção de que havia a possibilidade concreta para um tal renascimento não derivava de qualquer aspiração puramente subjetiva – possuía suportes efetivos. De uma parte, em vários países do “campo socialista” já eram visíveis sinais de um ressurgimento da cultura marxista, que logo se explicitariam (por exemplo, na Polônia, com os novos trabalhos de A. Schaff e, na Tchecoslováquia, com as investigações de K. Kosik etc.). De outra parte, no mundo capitalista, vitalizando-se o movimento operário na Europa Ocidental e aprofundando-se a luta antiimperialista nas periferias, o recurso à herança marxista e novas contribuições (boa parte delas críticas) a seu acervo expressavam-se com força[8].
Lukács tinha como pressuposto, para que tal renascimento se operasse com êxito, a elaboração de uma crítica (radical e contemporânea) da dinâmica econômica do capitalismo atual – não poucas vezes, mencionou a premência de construir um O capital do século XX (aparentemente, ele não acompanhava o trabalho de marxistas ocidentais no trato do capitalismo pós-1945, pois chegou a observar nos anos 1960, decerto equivocadamente, que a última análise econômico-política relevante fora a de Lenin, redigida em 1916 e publicada no ano seguinte, O imperialismo…). Mas tinha também a consciência de que, se essa tarefa lhe escapava, ela não poderia travar seu próprio esforço no plano teórico-filosófico. E se a Estética fora planejada para enfrentar, especial mas não exclusivamente, o complexo filosófico – referido à arte – do materialismo dialético/materialismo histórico nas suas primeira e terceira partes [9], e se sua primeira parte foi concluída (em 1960) antes de Lukács explicitar a ideia do renascimento do marxismo, ela é indiscutivelmente um componente – o componente inicial – constitutivo desse projeto. Assim, a Estética está envolvida no projeto – tal como posteriormente formulado – e, por isso mesmo, a dedicatória a Gertrud cabe não só à Estética, mas ao conjunto que ele resumiu como “as obras em que penso reunir os principais resultados da minha evolução filosófica, da minha ética e da minha estética”: a Ontologia… seria a introdução à Ética.
Com efeito, considerando como exemplar o universalismo filosófico da estética de Hegel e sua modalidade histórico-sistemática de sintetizar a reflexão sobre o fenômeno artístico[10], Lukács rompe decididamente com alguns componentes essenciais da vulgata “marxista-leninista”[11]. Não é esta a oportunidade para debater a Estética; aqui, basta assinalar o tratamento peculiar que Lukács dá à categoria de reflexo (particularmente quando trata da mímese operada pela música) para sugerir a imensa distância entre suas concepções e a dogmatização própria do “marxismo-leninismo”; ou, como outro indicador, é suficiente referir a teoria da vida cotidiana que se esboça na obra; ou, no mesmo sentido, sua conceptualização da categoria da particularidade; ou, enfim, no cuidado da obra de arte como ente-para-si. Essencialmente, a Estética rompe com a esclerose do marxismo no seu trato rigoroso, direcionado por uma metodologia histórico-sistemática, da estética a partir de uma impostação ontológica – impostação que, realmente, subjaz ao pensamento de Lukács desde os anos 1930[12].
Ora, para Lukács, um dos fundamentos da paralisia teórica do marxismo residia justamente na liquidação da inspiração ontológica de Marx – não por acaso, em algum lugar ele observou que muito do pensamento staliniano e stalinista expressava uma invasão neopositivista na tradição marxista. Combater as refrações do neopositivismo (e de seu corolário, o epistemologismo), substantivamente uma negação da ontologia, era enfrentar abertamente aquela paralisia. A Estética, de modo concreto e específico, configura sistematicamente esse enfrentamento. Nessa exata medida, ela é uma pedra angular do renascimento do marxismo.
Mas curiosamente, na Estética, a parca referência explícita à ontologia é essencialmente negativa – em especial, na remissão a Heidegger. E embora seja mais frequente o recurso de Lukács a Hartmann – sempre com respeito, corroborando algumas de suas observações, mas sempre ressaltando os limites de seu “idealismo” – , ele não valoriza expressa e formalmente a ontologia[13] (é essencial notar que, na obra, a crítica contundente ao idealismo faz-se em termos muito diversos daqueles a que a reduziu a vulgata “marxista-leninista”; para não entrar na discussão a que aqui só se alude, o Lenin que subjaz à Estéticanão é o de Materialismo e empiriocriticismo, mas o dos Cadernos sobre a dialética de Hegel). É só depois de publicada a Estética, quando Lukács explicita a ideia do renascimento do marxismo, que sua recorrência à ontologia torna-se praticamente contínua[14].
Com toda a evidência, Lukács compreendia que o renascimento em questão desbordava a análise econômico-política e a elaboração teórico-filosófica. Sua lucidez colocava também, em seu âmbito, a problematização em profundidade da política – mais precisamente: da prática política – que acompanhou, como nó problemático e interagente de causalidades e consequências, a paralisia do marxismo. Se pouco pôde contribuir para aquela análise (embora indicasse fenômenos de que ela deveria cuidar – por exemplo, a capacidade manipuladora do movimento contemporâneo do capital), também em relação àquela última problematização seu contributo não foi extenso, ainda que significativo (cf. as suas muitas entrevistas “políticas” dos anos 1960 e, em especial, “O processo de democratização” e o “Testamento político” [15]).
De fato, o aporte essencial de Lukács ao renascimento do marxismo operou-se no plano teórico-filosófico – com a Estética e a Ontologia…


3.
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Já há uma larga bibliografia que remete à Ontologia[16], bem como larga é a documentação que permite situá-la na complexa biografia intelectual de Lukács[17]. Esta apresentação deve limitar-se, pois, a umas poucas palavras indispensáveis.
Mencionando, na dedicatória já referida a Gertrud, “os principais resultados da minha evolução filosófica, da minha ética e da minha estética”, Lukács apontava exatamente para o que foram seus pontos de partida – as searas que lavrou na juventude: o pensamento do último Lukács centra-se nos núcleos temáticos essenciais que imantaram a reflexão do jovem Lukács. Não se trata, porém e absolutamente, de um retorno; o pensador dos anos 1960 não regressa meramente aos campos epistêmico-filosóficos de seu passado. Há continuidade temática com o jovem Lukács– mantêm-se as “principais linhas esquemáticas de uma ideia sintetizadora fundamental” de que falou Mészáros em texto seminal sobre a obra lukácsiana[18]; mas a estruturação e a articulação teóricas da estética e da ética do último Lukács são evidentemente outras: quase meio século de experiência marxista determinou uma profunda reelaboração categorial nos dois âmbitos. Ademais, o gume da crítica lukácsiana, dirigido agora contra os vetores da paralisia do marxismo (basicamente, a negação ontológica operada pelo neopositivismo), requer um tratamento específico. Concluída a Estética, Lukács volta-se para a Ética: seu objetivo é conferir-lhe o cuidado histórico-sistemático que metodologicamente matrizou a obra terminada em 1960 e publicada em 1963.
Ao avançar para a construção da sua Ética, Lukács foi levado a reconhecer que haveria de fundá-la expressamente – pretendendo uma formulação histórico-sistemática efetivamente materialista e dialética rigorosamente fiel à inspiração de Marx – na especificidade do ser social. Havia, portanto, de estabelecer, em primeiro lugar, a determinação histórico-concreta do modo de ser e de reproduzir-se do ser social. Vale dizer: sem uma teoria do ser (uma ontologia)social, a ética seria insustentável (enquanto uma ética materialista e dialética). Assim, na investigação que conduzia para a elaboração da Ética, Lukács viu-se obrigado a preparar uma “introdução” a ela – “introdução” que apresentaria justamente os seus fundamentos ontológicos. Dessa forma, nasceu a Ontologia…: o filósofo dedicou-se tão intensivamente à “introdução”, com aquele ardor juvenil atrás referido, que esta se constituiu numa obra autônoma (e a Ética nunca foi escrita, embora até o fim de seus dias Lukács pretendesse redigi-la).
Se o indicativo da construção da Ética é subsequente à conclusão da Estética(1960), os trabalhos para sua elaboração não começam de imediato. Mas, uma vez iniciados, vão resultar na Ontologia…, que tem sua redação terminada provavelmente em finais de 1968. A “introdução” não se alongou excessivamente, tornando-se a Ontologia… por motivos idiossincráticos. Ela adquiriu sua peculiar magnitude em função de duas razões principais: de uma parte, e a mais importante, não fora conferido à ontologia, até então, na tradição marxista, nenhum tratamento específico e histórico-sistemático (e, insista-se, materialista e dialético)[19] – donde a necessidade, para Lukács, de uma exaustiva e abrangente investigação, que implicou originais desenvolvimentos teóricos a partir de tematizações marxianas (ou seja, de indicações, pistas e formulações do próprio Marx, desdobradas sobre uma análise imanente da textualidade marxiana); de outra, porque oferecia a Lukács o terreno para uma crítica radical ao neopositivismo – mesmo que a crítica também se dirija às concepções tradicional-idealistas e irracionalistas da ontologia contemporânea (v.g., Heidegger)[20].
Redigida em alemão [Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins], a primeira edição integral da obra saiu em húngaro em 1976. No mesmo ano publicou-se em italiano a sua primeira parte [Per l´ontologia dell´essere sociale], com a segunda vindo à luz nesse idioma em 1981. Em alemão, a edição integral é de 1984.
Como o leitor constatará na presente edição, depois de estabelecer a crítica do neopositivismo e do existencialismo, Lukács detém-se sobre a contribuição de Hartmann – que valoriza, ao mesmo tempo que aponta seus problemas –, avança para a análise e a problematização da ontologia hegeliana e só então resgata o que designa por “princípios ontológicos fundamentais de Marx”, segmento em que realiza uma notável interpretação da impostação ontológica que vertebra a obra marxiana. Só então – na segunda parte[21] – volta-se para o tratamento dos “complexos de problemas mais importantes”, com a elaboração sistemática dos “complexos” do trabalho, da reprodução social, do ideal e da ideologia e, enfim, do estranhamento. É precisamente no tratamento dos “complexos” que ressalta a originalidade do pensamento do último Lukács, originalidade que não faz tabula rasa da obra marxiana, antes toma-a como fundamento das novas determinações que estabelece e/ou descobre – seja, por exemplo, no cuidado com a relação trabalho/práxis ou com a relação “sujeito-objeto” no trabalho, seja na abordagem criadora da reprodução social, seja na profunda renovação do enfoque da ideologia.
Mas toda a documentação disponível revela que Lukács não se deu por satisfeito com a arquitetura da Ontologia…. Muito especialmente, a ele desagradou a forma expositiva, em que o tratamento histórico não se articula adequadamente ao tratamento teórico-sistemático. Mas também se lhe afiguraram insuficientes algumas ênfases e mesmo desenvolvimentos no cuidado com os “complexos de problemas”. Por isso, ele empenhou-se em redigir uma nova versão da obra, em esforço que o consumiu até os seus últimos dias – porém, concluído o texto, tudo indica em princípios de 1971, ele não pôde revisá-lo (recorde-se que Lukács faleceu a 4 de junho daquele ano). Este novo texto, Prolegomena zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins. Prinzipienfragen einer heute möglich gewordenen Ontologie [Prolegômenos para uma ontologia do ser social. Questões de princípio para uma ontologia hoje tornada possível], só foi publicado em 1984 (em alemão; posteriormente, em 1990, saiu a edição italiana).
Como se pode constatar no exame dos Prolegômenos…[22], o fato de ser o derradeiro escrito de Lukács, que nem sequer (como já se observou) o reviu, faz dele um texto com claras insuficiências formais. Mas elas não impedem a compreensão das reflexões que, ausentes na Ontologia…, agora são formuladas por Lukács, nem a apreensão de novas ênfases conferidas a núcleos tratados na obra anterior – que, em nenhuma altura do texto (mal) concluído em 1971, tem passagens infirmadas[23]. Trata-se, efetivamente, de obras complementares; o título Prolegômenos… não é casual: mesmo redigidos depois da Ontologia…, são como que uma introdução a ela.
4.
12.02.07_Apresentação Lukács_Lukács
Cuidemos de resumir – mesmo que introduzindo umas poucas notações ausentes nas páginas anteriores – o essencial pertinente a esta rápida apresentação.
Em 1960, Lukács concluiu a redação da Estética (que seria publicada em 1963), embasada na direção ontológica em que seu pensamento se desenvolvia desde o início dos anos 1930, mesmo que desde então a designação ontologia não fosse empregada por ele senão de modo crítico-negativo. A conclusão da Estética(mais precisamente: apenas da primeira das três partes que deveriam constituí-la na integralidade) faz-se em condições sociopolíticas que já permitem uma análise crescentemente aprofundada da paralisia teórica – intimamente relacionada ao modus operandi da era stalinista – que afetou a tradição marxista a partir de finais dos anos 1920 e, simultaneamente, que também permitem projetar alternativas para a superação dessa paralisia. Lukács pode conjugar, então, a síntese que pretendia oferecer de sua evolução teórica (estética e, mais inclusivamente, filosófica) com uma contribuição diretamente relacionada à possibilidade de um renascimento do marxismo – o processo emergente de ruptura com a dogmática do “marxismo-leninismo”. Assim, ao publicar aEstética, projeta uma Ética, retomando, sobre bases materialistas e dialéticas, suas preocupações de juventude (ou, caso se queira, de seu período pré-marxista).
Nas investigações para calçar teórico-filosoficamente a Ética projetada, que o ocupam no curso dos anos 1960, a direção ontológica de seu pensamento, subjacente à Estética, ganha exponencial centralidade: a ontologia se lhe põe como fundamento necessário e explícito, sem o qual torna-se inviável uma crítica sólida de um dos pilares da dogmática (a contaminação neopositivista). Cumpre-lhe, pois, uma tarefa hercúlea: extrair de Marx e elaborar a partir da obra marxiana uma ontologia. Os materiais que deveriam constituir uma “introdução” à Ética adquirem, assim, o estatuto de fundacionais de uma nova ontologia. Publicados, são-no como a Ontologia… e os Prolegômenos…
Cabe salientar: trata-se mesmo de uma nova ontologia em um duplo sentido – nova no interior da tradição marxista, que até então não a sistematizara, e nova em contraste com a tradição filosófica, no interior da qual se articulou sobre a base dos mais diversos idealismos e/ou no marco de sistemas irracionalistas (no caso das vertentes neopositivistas, ela foi liquidada). Mas a substantiva originalidade da ontologia que o último Lukács elabora, como toda autêntica originalidade, é tanto ruptura como continuidade com a tradição filosófica – ela não ignora as melhores criações desta última (v.g., Aristóteles e Hegel), e o é igualmente em face da produção lukácsiana posterior a 1930 (basta lembrar o monumental ensaio sobre o jovem Hegel, concluído em 1938 e publicado dez anos depois[24]).
 A contribuição de Lukács, com a Ontologia… (e seus Prolegômenos…), não foi ainda suficientemente analisada. Certamente que não passa sem problemas[25], nem é, também certamente, a solução para o renascimento do marxismo. Mas em relação a ela se pode afirmar, com inteira segurança, que: 1º) abre um novo horizonte teórico-filosófico para o desenvolvimento do marxismo; 2º) não haverá nenhum renascimento do marxismo se ela for ignorada.
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Se iniciamos esta brevíssima apresentação com uma nota de caráter pessoal, seja-nos permitido concluí-la com outra.
Carlos Nelson Coutinho, que faleceu há pouco (20 de setembro, aos 69 anos de idade[26]), foi, como todos sabem, o principal teórico brasileiro a representar, entre nós, o pensamento de Lukács – divulgou-o em traduções e coletâneas e dele se valeu, criativamente, em sua crítica literária e filosófica. No caso da Ontologia…, foi Carlos Nelson o primeiro a empenhar-se por sua publicação no Brasil, traduzindo – em 1979 – dois de seus capítulos para um empreendimento editorial (pioneiro e inconcluso) de Raul Mateos Castell[27].
Evoco agora, dias depois de sua morte, o encontro “físico” de Carlos Nelson com a obra.
Numa madrugada dos primeiros dias de dezembro de 1976, sob neve, vagávamos (amargados pela solidão do exílio e bem calibrados por algumas garrafas de vinho) por ruelas do centro histórico de Bolonha, cidade em que Carlos Nelson viveu os meses iniciais de seu desterro. De repente, e sem o querer, demos de cara com as vitrinas de uma das livrarias Rinascita – e estava ali, exposto como último lançamento da editora comunista italiana Riuniti, o volume I da Ontologia (Per l’ontologia dell’essere sociale I) sobre a qual tanto especulávamos naqueles anos.
Por longos minutos, ficamos estáticos os dois, em silêncio reverencial – compreende-se: éramos ainda relativamente jovens e estávamos quase bêbados… E Carlos Nelson, mal equilibrando-se em sua alta estatura, quebrou a nossa mudez: “J. Paulo [era como me chamava], se tiver só este exemplar, é meu. É meu… eu vi primeiro que você. Vamos ficar aqui até a livraria abrir”. Inútil discutir quem viu primeiro, como inútil seria ficar horas plantados à porta de uma livraria que só abriria às 10 da manhã. Fomos para casa (na Via Gaudenzi, 7), mas a simples visão da Ontologia… não nos deixou dormir.
Às 10 horas menos um quarto, estávamos, dois sonolentos vitimados por uma carraspana homérica, à porta da Rinascita. Fomos os primeiros a entrar, trêfegos, e, ante o olhar surpreso dos vendedores, agarramos, avidamente, cada um o seu exemplar, como se fosse o único, embora houvesse ali uma verdadeira montanha ontológica…
No tempo seguinte, em verdade nos anos seguintes – largos anos –, a Ontologia…, em nosso permanente diálogo, foi objeto de longas cartas, intermináveis conversas e várias discrepâncias. Carlos Nelson nunca conseguiu, mas jamais desistiu de convencer-me da compatibilidade/complementaridade entre Lukács e Gramsci[28].
Apesar de ser homem de pouco sonhar, Carlos Nelson alimentou pela vida um grande sonho editorial: ver publicado em português o essencial de Lukács e de Gramsci. Quanto a Gramsci, ele tornou real parte desse desejo[29]. Com esta edição da Ontologia…, que ele não pôde ver, a Boitempo Editorial realiza a outra parte do sonho do amigo que perdi.
Recreio dos Bandeirantes, outubro de 2012
Publicado originalmente como apresentação da primeira edição brasileira de  Para uma ontologia do ser social I, de György Lukács (Boitempo, 2012).
Notas
[1] “Desde que encontrei G[ertrud], ser aprovado por ela se tornou o problema central da minha vida” – anotou Lukács no “roteiro” para Pensamento vivido: autobiografia em diálogo (São Paulo/Viçosa, Ad Hominem/Editora da UFV, 1999), p. 160.
[2] G. Lukács, “Minna von Barnhelm”, in Goethe und seine Zeit(Neuwied/Berlim, Luchterhand, 1964). Nesse texto, “Lukács utilizou a comédia de Lessing para expressar seus pensamentos mais íntimos sobre Gertrud e o amor. O ensaio de Lukács, como tributo ao amor, deve ser colocado entre os maiores já escritos”, Arpad Kadarkay, Georg Lukács (Valencia, Alfons el Magnànim, 1994), p. 749.
[3] Recorde-se que História e consciência de classe, publicado em 1923, foi dedicado a Gertrud.
[4] Literalmente: Die Werke, in denen ich die wesentlichsten Ergebnisse meiner Entwicklung zusammenzufassen gedenke, meine Ethik und meine Ästhetik, deren erster, selbständiger Teil hier vorliegt, sollten als bescheidener Versuch einer Danksagung für mehr als vierzig Jahre Gemeinschaft an Leben und Denken, an Arbeit und Kampf Gertrud Bortstieber Lukács, gestorben am 28. April 1963, gewidmet sein. Jetzt kann ich sie nur ihrem Andenken widmen, G. Lukács, Ästhetik Teil I. Die Eigenart des Ästhetischen (Newied, H. Luchterhand, 1963), p.5.
[5] Veja-se K. Korsch, Marxismo e filosofia (Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2008).
[6] Na França, em 1960, a edição (não autorizada) de História e consciência de classe repercutiu profundamente. Na Itália, seus escritos obtiveram grande audiência. Na Alemanha (então “Ocidental”), em 1962, a Luchterhand anunciou a publicação de suas obras completas – a Werke, de início prevista para quinze volumes. Pouco depois, a Grijalbo (Barcelona) deu a partida no projeto (mais tarde interrompido) de também editar sua obra completa, originalmente programada para 26 volumes.
[7] O entusiasmo com que Lukács viveu esse período de sua vida é atestado por inúmeros depoimentos. Leandro Konder, por exemplo, que o visitou em finais dos anos 1960, surpreendeu-se com um ancião que trabalhava diariamente por oito horas, recebia afavelmente os visitantes que o procuravam e mantinha ativa correspondência internacional.
[8] É expressiva desse clima ideocultural a afirmação sartriana de 1965 segundo a qual “o marxismo, como quadro formal de todo pensamento filosófico de hoje, é insuperável”, Jean-Paul Sartre, carta a Garaudy, reproduzida em Roger Garaudy, Perspectivas do homem (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965), p. 113.
[9] Recorde-se que o plano original da Estética contemplava três partes. Só a primeira (intitulada A peculiaridade do estético [Die Eigenart des Ästhetischen]) foi publicada – por isso, a obra é, às vezes, referida como Estética I.
[10] Cf. G. Lukács, Ästhetic. Teil I. Die Eigenart des Ästhetischen. 1. Halbband(Neuwied, Luchterhand, 1963), p. 14.
[11] Em escritos anteriores de Lukács, muito dessa ruptura comparecia in nuce, dadas as condições sociopolíticas sob as quais ele trabalhava. Na Estética I, desaparecidos os constrangimentos sociopolíticos, aqueles discretos componentes afloram abertamente.
[12] Aludo a essa impostação em “Georg Lukács: um exílio na pós-modernidade”, inserido em Maria Orlanda Pinassi e Sérgio Lessa (orgs.), Lukács e a atualidade do marxismo (São Paulo, Boitempo, 2002).
[13] Carlos Nelson Coutinho tematiza rapidamente, em seu ensaio “Lukács, a ontologia e a política” (inserido em Ricardo Antunes e Walquíria L. Rêgo (orgs.),Lukács; um Galileu no século XX, São Paulo, Boitempo, 1996), a opção posterior de Lukács pelo emprego positivo do termo “ontologia”.
[14] Numa utilização que deixou incomodados alguns estudiosos próximos a Lukács. Veja-se, por exemplo, em Hans Heinz Holz et al.Conversando com Lukács (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969), passagens do seu diálogo com Holz e Leo Kofler – respectivamente às p. 15s e 75s.
[15] Ambos contidos em G. Lukács, Socialismo e democratização: escritos políticos 1956-1971 (Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2008).
[16] Não cabe aqui listar as inúmeras contribuições, históricas e/ou críticas, à Ontologia… Dentre os autores que a tematizaram, recorde-se, entre muitos, os nomes de István Eörsi, Alberto Scarponi, Csaba Varga, Paul Browne, Costanzo Preve, Fariborz Shafai, Antonino Infranca, Werner Jung, Ernest Joos, Vittoria Franco, Andre Tosel, Tibor Szabó, além das conhecidas (e extremamente problemáticas) censuras publicitadas, na segunda metade dos anos 1970, pelo grupo chefiado por Agnes Heller (a própria, Ferenc Feher, György Markus e Mihály Vajda: cf. Ferenc Feher et al., “Annotazione sull´Ontologia per il compagno Lukács”, Aut-Aut, n. 157-8, 1977). Algumas contribuições de autores estrangeiros estão acessíveis em português – por exemplo, o belo ensaio de Guido Oldrini, “Em busca das raízes da ontologia (marxista) de Lukács”, emMaria Orlanda Pinassi e Sérgio Lessa (orgs.), Lukács e a atualidade do marxismo, cit. De autores brasileiros que se ocuparam da Ontologia…, realce-se, entre vários, os nomes de Carlos Nelson Coutinho, José Chasin, Sérgio Lessa, Ricardo Antunes, Ester Vaisman e, mais recentemente, Celso Frederico, Mario Duayer, João L. Medeiros e Vitor B. Sartori. Cumpre observar que, em muitas entrevistas de meados e fins dos anos 1960, Lukács comentou a elaboração da Ontologia… – veja-se, por exemplo, Hans Heinz Holz et al.Conversando com Lukács, cit.
[17] Também não é este o espaço para arrolar a documentação pertinente à biobibliografia de Lukács, na qual é importante recorrer ao já citado Pensamento vivido e em que se contam, entre tantos, os diferenciados contributos de Lucien Goldmann, István Mészáros, G. H. R. Parkinson, Peter Ludz, Laura Boella, Marzio Vacatello, José Ignácio López-Soria, Mary Gluck, Andrew Arato e Paul Breines, Frank Benseler, István Hermann, György I. Mezei, Elio Matassi, Guido Oldrini, Arpad Kadarkay e do brasileiro Carlos Eduardo Jordão Machado. Da bibliografia acessível em português, pode-se consultar, entre outros, o ensaio de Fredric Jameson,“Em defesa de G. Lukács”, contido em seu livro Marxismo e forma (São Paulo, Hucitec, 1985) e, ainda, Michael Löwy, A evolução política de Lukács: 1909-1929 (São Paulo, Cortez, 1998) e Nicolas Tertulian, Georg Lukács: etapas do seu pensamento estético (São Paulo, Editora UNESP, 2008). O trato da política pelo filósofo húngaro é abordado na introdução de José Paulo Netto (“Sobre Lukács e a política”) a G. Lukács, Socialismo e democratização: escritos políticos 1956-1971, cit. Quanto a outros materiais pertinentes produzidos no Brasil, cf., por exemplo, Leandro Konder,Lukács (Porto Alegre, L&PM, 1980, Coleção Fontes do Pensamento Político); José Paulo Netto, Lukács (São Paulo, Ática, 1981, Coleção Grandes Cientistas Sociais); e textos coligidos em Ricardo Antunes e Walquíria L. Rêgo (orgs.), Lukács: um Galileu no século XX, cit.; a título introdutório, vale recorrer a José Paulo Netto, Lukács, o guerreiro sem repouso (São Paulo, Brasiliense, 1983) e Celso Frederico, Lukács, um clássico do século XX (São Paulo, Moderna, 1997). Uma síntese biobibliográfica de Lukács está disponível em G. Lukács, O jovem Marx e outros escritos de filosofia (Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2007).
[18] István Mészáros, Lukács’ concept of dialectic (Londres, Merlin, 1972), p. 17.
[19] Os belos textos sobre ontologia de Ernst Bloch, que Lukács conhecia, estão longe de um tal tratamento.
[20] Desenvolvendo e inovando no trato do moderno irracionalismo, explorado por Lukács (1954) em Die Zerstörung der Vernunft [A destruição da razão].
[21] A ser lançada pela Boitempo em 2013.
[22] O livro foi publicado, com este título, pela Boitempo, em 2010. O prefácio de Ester Vaisman e Ronaldo Vielmi Fortes é rico em informações sobre a relação entre ele e a Ontologia…, bem como é relevante o posfácio de Nicolas Tertulian.
[23] Com o que fica factualmente contestada a versão – que partiu de Agnes Heller e seu grupo – segundo a qual Lukács teria se dedicado a “refazer” a Ontologia… em função das críticas que a “escola de Budapeste” levantou quando conheceu o manuscrito, críticas sumariadas no documento citado na nota 16.
[24] G. Lukács, Der junge Hegel und die Probleme der kapitalistischen Gesellschaft [O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista] (Berlim, Aufbau1954).
[25] Vários deles observados pelos autores nomeados na nota 16.
[26] Sobre Carlos Nelson, cf. o indispensável volume de ensaios organizado por Marcelo Braz, Carlos Nelson Coutinho: marxista convicto e confesso (São Paulo, Expressão Popular, 2012).
[27] Cf. G. Lukács, Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx Ontologia do ser social. A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel (São Paulo, Ciências Humanas, 1979). Pouco depois, páginas da Ontologia… (excerto do capítulo sobre Marx, citado, numa primeira versão da tradução de Carlos Nelson) foram republicadas na antologia (citada na nota 17) que preparei para a editora Ática.
[28] Como se constata no ensaio “Lukács e Gramsci: apontamentos preliminares para uma análise comparativa”, parte de seu último livro publicado: De Rousseau a Gramsci (São Paulo, Boitempo, 2011).
[29] Entre 1999 e 2005, a editora Civilização Brasileira (Rio de Janeiro) publicou, em edição por ele organizada, os seis volumes dos Cadernos do cárcere, dois dos Escritos políticos e dois das Cartas do cárcere.

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