Há algo de patético em parte dos analistas internacionais e nacionais que, diante da revolta no Egito, só conseguem se lembrar do risco do advento de um governo islâmico. Parece que de nada adianta lembrar que o que se ouve na Tunísia e no Egito são palavras de ordem pedindo democracia, fim do arbítrio, liberdade.
Palavras vindas, principalmente, de jovens que não veem futuro em regimes que misturaram ditadura e liberalismo econômico.
Também não adianta lembrar que, na Tunísia, o maior movimento organizado por trás da revolta é um sindicato (União Geral dos Trabalhadores da Tunísia) e, no Egito, o grupo religioso Irmandade Muçulmana é apenas uma dentre as várias organizações presentes nas manifestações.
Organização que não está na origem das manifestações e que sequer tem um líder capaz de capitalizar os protestos.
Na verdade, precisamos desesperadamente da narrativa que consiste em dizer que, no mundo árabe, só pode haver ou regimes teológico-políticos ou "autocracias" amistosas.
Afinal, como justificar que durante 30 anos nós, arautos dos direitos humanos, apoiamos um regime despótico, com eleições de fachada, assassinato de opositores, censura rígida e plutocracia? Só mesmo inventando que, se não fosse isso, teríamos que engolir o fundamentalismo islâmico.
Mas vejam que engraçado.
Se há um regime no mundo árabe que impôs à vida social um código jurídico totalmente religioso, regime onde os direitos das mulheres, das minorias e as liberdades individuais são massacrados, esse é a Arábia Saudita.
Comparado aos sauditas, os iranianos vivem numa democracia escandinava. Mas você nunca ouviu uma liderança ocidental criticar o regime saudita. O problema do Ocidente não é com a junção reacionária entre religião e política. O problema é com a distinção, digna de Carl Schmitt, entre "amigo" e "inimigo".
O que talvez certos governos ocidentais realmente temam é o aparecimento de um governo laico, democrático, de grande participação popular, mas que não está disposto a submeter-se aos interesses econômicos e geoestratégicos das potências que sempre viram aquela região do mundo como seu "protetorado".
No entanto é isso o que realmente pode acontecer no momento. As comparações com a queda da cortina de ferro no Leste europeu são justificadas. Só que, nesse caso, os árabes usam nossos valores para mostrar que ninguém no Ocidente os levava a sério.
Senão, como explicar uma pérola como a fornecida pelo vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Binden: "Não podemos chamar Mubarak de ditador". Bem, Joe, e como você prefere chamá-lo? De grande amigo e estadista com mãos sujas de sangue?
Fonte: Folha de São Paulo, 01/02/2011.
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