Rejane Carolina Hoeveler
No último dia 29 de dezembro de 2015,
entrevistamos a professora e pesquisadora Virgínia Fontes em sua casa,
no Rio de Janeiro. Ela falou sobre o balanço de 2015 e as perspectivas
para as lutas sociais em 2016, entre outros temas. Confira a entrevista
na íntegra.
Blog Junho – O
ano de 2015 começou com manifestações da direita relativamente grandes,
que foram minguando, e que foram pequenas perante a possibilidade real
de impeachment da presidente Dilma. Em contraste, tivemos agora no final
do ano duas importantes mobilizações que vieram pela esquerda, a luta
das mulheres e a dos estudantes de São Paulo contra o fechamento de
escolas. Além disso, notou-se as mobilizações capitaneadas por CUT, UNE e
MST, contra o impeachment, foram maiores do que o esperado por muitos.
De que forma poderíamos fazer um balanço das ruas em 2015?
Virginia Fontes – Bom,
em primeiro lugar, eu acho que o que a gente está assistindo é uma
complexificação brutal das lutas sociais no Brasil, que correspondem à
complexificação real da vida social brasileira. Do ponto de vista dos
partidos, o que quer que a gente considere que tenha sido o papel do PT –
e a análise sobre o PT, ainda está sendo aberta, vai ser longa e
difícil – ele significou a chegada pela primeira vez no governo de um
partido que nasce no chão de fábrica, nasce de um movimento sindical e
de um movimento popular, com uma forte implantação, embora muito
desigual, na classe trabalhadora em escala nacional.
Então, é evidente que o início do ano de
2015 nos assustou, com as manifestações da direita, porque temos um
histórico de golpes, quarteladas, e tem também um histórico de que as
nossas classes dominantes peçam o apoio estrangeiro pra golpear aqui
dentro; por isso, é compreensível o temor que a gente viveu no início do
ano. No entanto, o que me parece, e o balanço do ano vai mais nessa
direção, é que as relações capitalistas estão muito espraiadas na
sociedade brasileira, e na verdade ninguém, nenhum grupo está sabendo
exatamente como lidar com isso e como enfrentar isso. Nem a direita nem a
esquerda.
Tudo indica que a gente entra no próximo
ano com lutas intensas, lutas complicadas, e movimentos/direções muito
diversificadas. Vai ser um ano onde, eu espero, fique mais claro o corte
de classe; mais claro pelo menos do que foi até aqui, porque até aqui o
corte está sendo um ‘esquerda e direita’ mais ou menos genérico.
Portanto, o balanço do ano é que foi um ano de muita luta, e o balanço
de uma dominação capitalista que se colocou de maneira quase que
incontornável nos últimos 30 anos no Brasil.
Blog Junho – A
atual conjuntura parece a muitos analistas como a de fim de uma “era” ou
de uma fase histórica no Brasil – seja ela chamada de lulo-petismo,
lulismo, Era Lula etc. Você concorda com essa análise?
Virginia Fontes – A
partir de 1990, o que a gente tem é a experiência da dominação burguesa
com feição hegemônica e, portanto, com feição democrática. Não tem nem
uma continuidade direta entre FHC e Lula, e nem uma ruptura entre eles,
na verdade eles dois são dois momentos dessa reconfiguração da dominação
burguesa no Brasil, que se organiza entre 1985 e 1995 mais ou menos,
com a explosão de aparelhos privados de hegemonia, e uma tentativa
burguesa de pautar o conjunto da vida, não apenas de desenhar o Estado –
embora ela continue desenhando o Estado.
Então em parte a crise política é a
crise de um dos partidos desse formato, e a crise de um dos partidos
desse formato significa imediatamente a crise do outro, porque eles são
mais ou menos complementares. Então esse é o primeiro ponto, não
acredito que o PT tenha acabado seu papel na história brasileira, e
provavelmente ele vai ainda cumprir papel similar ao dos partidos da
social-democracia estiolados no mundo europeu, ou o dos partidos
socialistas europeus que continuam fazendo um papel, digamos assim, de
uma ‘esquerda a baixos teores’ – mais do que admissível para o capital –
que vai fazer o jogo do capital de outra maneira. Então não tem, por
enquanto, como imaginar o fim do papel do PT no cenário político
brasileiro, a não ser que houvesse uma revolução, e com ela a irrupção
de uma força popular, que, ela sim, varresse essa direção.
Ao mesmo tempo, o que estamos assistindo
é o encolhimento dos espaços democráticos, um encolhimento visível na
judicialização da política, visível pelos contratos de trabalho
rebaixados, nas formas de contratação de trabalhadores inclusive no
serviço público, visível na diferenciação de um serviço público para o
grande capital e um serviço público para as grandes massas, rebaixamento
dos direitos… em suma, é um processo dramático, que não elimina o
estado de direito, mas vai acrescentando leis…
Blog Junho – Como a lei-antiterrorismo, ou a Garantia de Lei e Ordem (GLO)?
Virginia Fontes – Exatamente, como todas essas formas de criminalização das formas de luta que tenham um teor mais fortemente anti-capitalista.
Agora, esse encolhimento da democracia
não acontece só no Brasil. Desgraçadamente, a gente está assistindo esse
encolhimento no mundo inteiro. Se pegarmos os jornais europeus agora,
veremos um crescimento de racismo na Europa, um crescimento, nas
eleições, de partidos de direita; na França, estado de emergência e
desde a semana passada manifestações racistas anti-árabes diárias na
Córsega de uma violência impressionante. Tudo isso com um bloqueio
extensíssimo dos direitos democráticos, a ponto de o próprio Partido
Socialista estar dividido quanto à proposta do François Hollande e do
Manuel Valls, o atual primeiro-ministro francês, de praticamente
eliminar o direito à nacionalidade por direito de solo, e conservar o
direito de sangue, que é a proposta da extrema-direita desde sempre. É
uma situação muito tensa. Além disso, a gente ainda tem outras situações
dramáticas na Europa, que não dá pra desenvolver agora, mas o fato é
que mantém-se o estado de direito, mantém-se parcela das conquistas, há
jogo eleitoral, mas são estreitamente controladas as políticas
decorrentes de eventuais vitorias eleitorais [da esquerda], como é
claramente o caso do Syrisa na Grécia e do Podemos na Espanha, e espero
que não venha a ser o caso do Bloco de Esquerda em Portugal, mas sabemos
que tende a ser a mesma coisa. Então nós estamos diante de uma situação
política internacional extremamente complicada, e de alguma maneira o
Brasil hoje faz parte desse mesmo conjunto.
Blog Junho – Esses
avanços eleitorais da extrema-direita em países como a França, que você
mencionou, configuram um movimento internacional de avanço da direita,
um aumento de suas bases sociais?
Virginia Fontes – Eu
não sei se isso significa um aumento das bases sociais da direita. Sem
dúvida alguma há um avanço da direita, da força e da capacidade
organizativa da direita. Mas temos de tomar cuidado com isso, pois a
burguesia, ou o poder do capital, se espraia entre isso que a gente está
chamando de esquerda e direita no jogo político contemporâneo. O ciclo
dessa democracia e dos partidos políticos da ‘esquerda de baixos teores’
está desgastado e corroído até a medula no plano internacional.
Ainda que a gente tenha mais pessoas
votando pela direita, isso significa base social da direita? Eu não
tenho certeza, acho que seria precoce afirmar isso. Porque a massa de
trabalhadores hoje no mundo é muito maior que era há quarenta ou
cinqüenta anos atrás. A gente tem dificuldade de entender qual é o
comportamento que ela vai ter num contexto tão duro de estreitamento de
direitos.
Eu diria que a grande estratégia
burguesa internacional tem sido a de dividir a classe trabalhadora,
inclusive a partir desses contratos – quem tem direito, quem não tem;
quem é mais velho, quem é mais novo etc – mas isso tem um limite. A
gente não sabe onde está o limite pra isso. Por isso acho que tem um
avanço da direita sim, é inquietante e a gente tem que se inquietar. E
esse avanço da direita vem por essa seqüência, estreitamento da
democracia, fragmentação dos trabalhadores. Mas eu não perco de vista o
fato de que as burguesias internacionais não sabem como controlar essas
massas trabalhadoras nessas condições, e é aí que a gente tem de atuar.
Blog Junho – No
caso do Brasil, vimos em 2015 um Congresso bastante conservador
aprovando legislações como a redução da maioridade penal, a retomada do
PL 4330, das terceirizações, e a tentativa de aprovar o PL 5069-2013,
relacionado ao aborto. Ao mesmo tempo, a ocorrência de diversos
episódios nos quais fica claro que certos setores da sociedade estão
“colocando as asinhas de fora” – como, por exemplo, o recente episódio
envolvendo Chico Buarque. Você concorda com a ideia de que o
conservadorismo vem crescendo no Brasil? Qual seria a melhor forma de
entender esse fenômeno social?
Virginia Fontes – Eu
acho que o conservadorismo vem crescendo no Brasil como vem crescendo
fora; há um reforço de setores explicitamente conservadores. O que não
significa que toda a burguesia se perfile aí. De novo, tem um alerta
importante a ser dado aí, porque ela [a burguesia] vai oscilar entre os
seus partidos da ordem; essa extrema-direita não é o partido que a
burguesia quer, mas se for o partido que a burguesia precisa, ou que é obrigada a acatar, aí nós estamos de fato diante de situações proto-fascistas.
No caso brasileiro, acho que há um
aumento do conservadorismo, mas também não dá pra imaginar que o Brasil
era todo ‘popular’ e agora virou todo ‘conservador’… O Brasil não tem
uma cara única. É uma sociedade de classes, além disso, é uma sociedade
que vem de uma herança escravista, racista, brutalmente desigual, etc.
Evidente que essa diversidade e essa clivagem de classes não é
apresentada na mídia, então a gente fica achando que apareceu uma
direita e os outros todos desapareceram, e não é assim.
Existem desigualdades regionais, mas nós
vivemos uma verdadeira avalanche capitalista, nos últimos 60 anos, mas
com maior ímpeto nos últimos 30 anos, e isso redesenha o conjunto das
classes trabalhadoras, além de suscitar novas exigências, exigências da
juventude, dos negros, mais do que legítimas, das mulheres, dos
homossexuais, etc. Tudo isso é impossível de tratar unicamente com a
política do tipo Bolsonaro, na base da violência e da repressão. Então,
nós temos de um lado a permanência e o aval para o tratamento
policialesco das favelas, pra GLO, pra criminalização de movimento
social, pro assassinato, mesmo, de jovens negros das favelas e
periferias; mas de outro lado temos uma população grande que hoje tem
acesso a novos meios de informação, por mais precários que sejam, e que
dificilmente serão reduzidas a uma condição de silêncio. A luta de
classes está vivíssima nesse país! Ela pode não estar galvanizada por
algum partido, pode não estar centralizada por alguma instancia sindical
ou intersindical ou mesmo uma frente – até nas frentes a gente está com
várias, né – porém, há uma classe trabalhadora que não tem mais como
ser silenciada como há cinqüenta anos atrás.
Tem uma explicitação maior dessas
tensões, inclusive do racismo de determinados setores, que nos últimos
15 anos foram obrigados a tomar mais cuidado com seu racismo explicito,
seu sexismo explicito, escravismo explícito, e que de alguma maneira
estão recolocando isso pra fora. Isso acontece também nos Estados
Unidos, também por valores racistas e sexistas muito duros. Mas se é
verdade que tem uma direita mais avançada, é verdade também que ela
também tem muita dificuldade de penetrar para além de determinado
alcance e de determinado tempo. E isso, no caso brasileiro, onde as
desigualdades são muito grandes, torna todo o quadro muito instável,
porque não tem uma força política igualitária, efetivamente socialista,
que agregue o conjunto, ou pelo menos uma parte expressiva dos setores
populares e dos sindicatos – embora tenhamos partidos de esquerda de boa
qualidade, nomeadamente, o PSOL, o PCB e o PSTU. Então, nós temos
partidos, temos movimentos sociais como o MST, MTST, a Marcha Mundial
das Mulheres, temos uma quantidade de movimentos sociais de base popular
gigantesca também. Na CUT e no PT ainda tem também gente de esquerda,
mas com um núcleo dirigente mais acomodador do que enfrentador.
Essa instabilidade do conjunto da
direção, daquilo que eu chamo da ‘pilotagem de conjunto’, é um período
no qual a explicitação das posições tende a ser maior. O que vem
infelizmente acontecendo é que as principais forças que ainda
capitaneiam esse núcleo dos ‘partidos da ordem’, não têm piloto pra
dirigir o barco em situações de crise política. Quem, que personagem?
Cunha? Ninguém acredita no Cunha, nem a direita, nem a esquerda, nem a
classe trabalhadora, nem a burguesia, nem a classe média – acho que nem o
Cunha acredita no Cunha. [risos] Michel Temer? ‘O mordomo’, como diz o
José Simão? [risos]. Dilma? Aécio? Re-Lula? Não é impossível que em
algum momento uma parcela da burguesa prefira o Lula. Por conta
exatamente da falta de pilotagem. Então a gente não tem um quadro
formado politicamente nos grandes partidos da ordem à altura das
circunstâncias, então provavelmente ficaremos queimando ainda nesse
fogo, com ou sem impeachment, ao longo de 2016. Vai ser um ano duro, principalmente para a classe trabalhadora.
Blog Junho – Falando em impeachment,
já é possível mapear as diferentes posições do empresariado face ao
processo de impeachment da presidente Dilma? Quais você considera serem
hoje as principais clivagens internas nos setores dominantes?
Virginia Fontes – A situação ainda é muito obscura, tem muita gente fazendo interpretação a priori,
e eu sou capaz de entender a urgência que motiva isso, mas isso não
quer dizer que sejam explicações suficientes. A própria tomada de
posição da FIESP, por exemplo, pode significar tanto a posição de uma
certa burguesia a favor do impeachment, quanto o
enfraquecimento da burguesia paulista frente ao conjunto da burguesia na
escala nacional… Internacionalmente, não tem nenhum apoio para o impeachment – pelo menos até agora. E os grandes capitais monopólicos não estão se manifestando claramente a favor no impeachment. A gente ainda tem que analisar que contradições são essas.
A situação é muito complexa, e numa
entrevista curta não dá pra aprofundar, mas tem outro elemento que pode
ajudar a entender, que é o fato de que, no estado de direito, a gente
tem uma autonomização de certos órgãos, como o Ministério Público e a
Polícia Federal. Apenas em parte, pois mesmo nessa autonomização, eles
não são neutros, eles não estão fora das vinculações sociais, políticas,
etc. Num quadro de hegemonia, onde as alternativas dominantes são todas
alternativas dos dominantes, esse processo de autonomização que está
vindo à tona na Lava Jato trouxe a incriminação de políticos de
relevância – já aconteceu no governo Lula, mas agora está acontecendo
numa escala muito maior – e incriminando executivos de grandes empresas
brasileiras.
É preciso levar em conta que há um temor
enorme de parte da burguesia dessa autonomia Polícia Federal/Ministério
Público. A minha impressão é de que os grandes setores, apesar de
estarem organizados, não estão afinados, e estão com
medos díspares – inclusive o medo de serem atingidos por uma prática que
todos eles fizeram. Ora eles acham que dando o impeachment vão poder controlar isso; ora acham que não. Eles não tem nenhuma clareza com relação a esse fenômeno.
Então se pegarmos as clivagens internas
entre os grupos dominantes hoje, teremos que pegar uma seqüência de
elementos que eu listaria basicamente assim: estrutura do capital e da
propriedade; questão regional – origens regionais burguesas e tensões
entre grandes burguesias; e o temor frente a essa certa autonomização de
algumas instâncias.
E finalmente também um fator de
relevância, que também tem sido pouco estudado, ou estudado de maneira
unilateral, que é o seguinte: quando se expande capital pra fora, a luta
passa a ser de cachorro grande. É luta inter-capitalista crescente. Nós
estamos assistindo um período de tensões entre capitalistas altíssimas –
visível, por exemplo, no fato de a Turquia ter derrubado um avião da
Rússia, visível na questão síria, no rearmamento da China etc… os BRICS
estão em um bloco que não tem propriamente uma política comum, mas o que
eles querem – esta sempre foi minha interpretação e continua sendo – é
um lugar na ordem do grande capital, num momento em que não tem espaço
pra ‘novos’ no grande capital, e isso exacerba as tensões
inter-imperialistas. O Brasil estava expandindo empresas
capital-imperialistas, e, portanto, entrando numa guerra de grande
porte. Com a situação da Lava-Jato, isso desestabilizou a capacidade do
Estado de apoiar a expansão capital-imperialista brasileira. Petrobrás,
Vale, todas elas entraram agora em crises que elas próprias provocaram.
Terá o Estado brasileiro capacidade de ser um Estado burguês como os
Estados Unidos, de se endividar lá em cima para garantir suas empresas
capital-imperialistas? Aí a gente começa a ver que a luta de classes que
está acontecendo é funda e grande…qual é o nosso papel? É salvar as
multinacionais brasileiras? Ou é voltar ao cenário da
internacionalização da luta de classes hoje, ter claro que a gente
precisa enfrentar o ‘nosso’ capital, e os demais capital-imperialistas?
Blog Junho – E falando em Vale, ela esteve centro do maior crime ambiental do mundo em 2015…
Virginia Fontes – Pois
é, o Brasil perdeu a Copa do Mundo mas ganhou a Cop21!… Nós somos o
maior desastre ambiental do mundo em 2015… [A Vale é meia dona, junto
com a BHP, da Samarco].
Mas voltando ao ponto da clivagem, um
Estado capitalista que se pretende capital imperialista tem de conseguir
uma hegemonia burguesa sob direção democrática capitalista, tem que
conseguir enfrentar simultaneamente a manutenção de suas empresas
multinacionais, a garantia do funcionamento de seu mercado e o
apassivamento de sua classe trabalhadora. Essas três coisas ao mesmo
tempo, tem como fazer? Está conseguindo fazer?
Blog Junho – Você
tem estudado e orientado diversas pesquisas que analisam as formas de
organização das classes dominantes no Brasil e internacionalmente. Qual a
importância de estudar essas formas de atuação de classe da burguesia e
quais cuidados, na sua visão, devem ser tomados nas análises marxistas
das classes dominantes?
Virginia Fontes – Bem,
minha vida nos últimos 15 anos foi pra isso, em primeiro lugar porque
essa é a nossa tarefa. A burguesia analisa os movimentos sociais com
pente fino, inclusive através dos órgãos estatais, como a ABIN e as
polícias, que estão o tempo todo promovendo dados pra isso, sem falar
dos aparelhos privados de hegemonia. Ademais a gente tem hoje uma coisa
clara que é a penetração enorme de aparelhos privados de hegemonia das
classes dominantes dentro do Estado, e o volume disso ainda é muito
opaco pra nós, porque mesmo que a gente perceba a extensão disso, ainda
temos poucos estudos sistemáticos; alguns estudos propõem grandes
sínteses, mas ainda têm uma cara muito nacional, dos países nos quais
eles emergem, e as nossas necessidades estão numa escala muito maior…
Com relação aos cuidados eu diria, em
primeiro lugar, não repetir esquemas prontos, pensar a teoria antes de
fazer a análise da realidade concreta, como diria o Lenin, e não
simplesmente aplicar fórmulas. Sempre procurar os processos de extração
de mais-valor dos trabalhadores, não esquecendo que capital é relação
social de extração do mais-valor a partir do trabalho, e isso em escala
nacional e internacional. E sempre apontar para as contradições
intra-classe dominante tanto no âmbito interno como no âmbito externo, e
na mescla deles. Sempre alerto muito para o uso genérico da categoria
da financeirização, e a importância de observar as formas contemporâneas
da extração e circulação de mais-valor.
Nós temos um desafio hoje na pesquisa,
que é o de compreender as frações da classe dominante contemporânea, que
é algo bem mais complexo do que há cem anos atrás e mesmo há cinquenta
anos atrás. As frações não são sempre as mesmas, e seus interesses não
são sempre iguais, então a gente não tem separado bonitinho uma
burguesia comercial, uma burguesia industrial fabril, uma burguesia
bancária, arrumadinhas, tudo nas gavetinhas… Em algum momento isso fez
sentido, mas com certeza não faz hoje. A escala da concentração e da
centralização de capitais, a proximidade e penetração entre capitais
locais e estrangeiros, a forma do imperialismo contemporâneo que eu
chamo de capital imperialismo, complicou isso extremamente. Esse é o
nosso desafio. Não vale voltar pra posições simples, do tipo ‘tem a
burguesia nacional e tem o imperialismo’, sem dizer como eles estão
organizados e quais são os seus interesses naquele momento. O que
justifica determinadas posições táticas não pode nunca ser pra gente uma
simplificação analítica.
Nós temos a responsabilidade, como
pesquisadores, como historiadores, aqueles dentre a classe trabalhadora
que tiveram acesso ao conhecimento, de pesquisar de fato onde estão
essas contradições e onde está a extração de valor, porque é ali onde a
classe pode enfrentar o capital e incidir de maneira mais forte.
Blog Junho – No
contexto atual, como ficam as organizações da esquerda socialista?
Quais são os desafios colocados a ela e, na sua opinião, que
preocupações a militância de esquerda deveria ter neste momento?
Virginia Fontes – A
gente entra num cenário internacional da exasperação dos conflitos
sociais. Quem imaginou que chegar ao capitalismo e chegar à democracia
seria garantia de uma vida sossegada: bem-vindo ao mundo real! O mundo
real no capitalismo é isso, tensão o tempo todo, crise o tempo todo –
isso quando não tem guerra… Por enquanto, o cenário da guerra não está
colocado, mas não está descartado que haja uma ‘boa guerrinha’, que
sempre é uma alternativa capitalista. O armamento dos [países] capital
imperialistas subalternos, por exemplo, está crescendo. Espero que não, e
não estou fazendo nenhum prognóstico neste sentido, mas só lembrando
que esse é o contexto internacional, e não um cenário de paz,
tranqüilidade e capitalismo humanizado. A nossa mídia nos deixa muito
limitados, ela não compara, não mostra o que está acontecendo, as
turbulências num contexto mais amplo, então a gente fica muito voltados
pra dentro, olhando pro impeachment como se fosse uma coisa
muito exclusiva. A gente não pode esquecer que Portugal, por exemplo,
passou um ano e meio no maior sufoco, cortou salários dos trabalhadores e
ainda prendeu o ex-primeiro-ministro Sócrates, por roubo; na Grécia, na
Espanha, nos Estados Unidos, as tensões são enormes, e basta lembrar do
período do debate do seguro saúde com Obama…
Em suma, a gente vive um período de
expansão capitalista dramática, e isso gera crises cada vez maiores. Não
é porque ele se encolhe, é porque ele se expande – isso que eu
acho que é terrível! E no caso brasileiro, isso mostra que hegemonia
burguesa não é sinônimo de um mundo tranqüilo, com tudo funcionando
perfeitamente, nem nunca foi!
O que acho essencial, como historiadora,
é que a gente não se limite a interpretar a realidade de acordo com
nosso desejo militante. Devemos ser rigorosamente fiéis aos nossos valores e a nossa base teórica
que permitam enxergar a forma atual da dominação e da luta de classes,
de maneira a preparar e formar a classe trabalhadora para enfrentamentos
que vão ser, a cada dia, mais duros, mais difíceis, e com mais
propaganda em cima obscurecendo os verdadeiros cernes desses
enfrentamentos.
Então acho que essa é nossa tarefa é não
dar sopa pra escamotear a contradição. A gente pode querer que a coisa
esteja andando cor-de-rosa, mas não está. Nós temos a tarefa de preparar
a classe para que a própria classe possa intervir a qualquer momento.
Não é mais possível imaginar que na situação e na escala do capitalismo
em que a gente está, uma direção possa decidir sozinha e que depois a
ordem chegue a todos. É urgente que a gente volte à idéia do partido, à
idéia do Lenin mas para além das condições da época do Lenin: o último
soldado tem que saber qual é a luta, porque luta e como luta. Tem que
saber tomar decisões, porque tem que ser o primeiro-general em cada
momento. E se a gente não formar pra isso, vamos perder militantes, como
já perdemos muito nos últimos vinte anos. Não podemos mais perder
militantes assim. Precisamos garantir socialização de conhecimentos e
dos nossos valores, da igualdade, da solidariedade de classe, do
internacionalismo, da liberdade plena etc.