Por Diego Paulo
Tão logo surgiram as primeiras
elaborações sobre o golpe de 1964 e a ditadura que o seguiu, em que pese
a diversidade de abordagens, algumas características foram ressaltadas
como tópicos discursivos necessários às várias interpretações.
Dentre elas, consta o ataque à democracia e as reformas pretendidas
pelos setores mais à esquerda no espectro político dos anos 60. Essa
visão, reinante nas duas décadas posteriores ao primeiro de abril,
começou a ser relativizada nos anos 1990, com a publicação de Democracia ou Reformas?, pela
cientista política Argelina Figueiredo. Com uma perspectiva sustentada
no estudo das alternativas dos “atores políticos relevantes”, a autora
sentencia que então “nem a esquerda nem a direita possuíam apego ao
regime democrático”[1],
abrindo caminho para a suposição de que estaria em curso no país um
duplo golpe, tramado tanto pelas esquerdas quanto pelas direitas. O
ataque à democracia, por conseguinte, deixa de ser uma especificidade do
golpe que efetivamente ocorreu, antes sendo uma expressão do agir político do período. Em outras palavras, se todos eram contra a democracia, alguém poderia ser responsabilizado por ser antidemocrático?
A hipótese de Figueiredo, em certo
sentido fecunda, seria rapidamente encampada por diversos historiadores.
Jorge Ferreira, talvez algo inspirado por Aristides Lobo, opinou que,
frente à radicalização dos extremos do espectro político, a população apenas assistia a tudo silenciosa[2]. O golpe, portanto, seria produto do déficit democrático daqueles atores políticos, ideia que aparece mais claramente em Daniel Aarão Reis[3].
Um indício do avanço dessa perspectiva é o tratamento que um jornalista
dá ao tema. Em sua obra sobre a ditadura, Élio Gaspari, a propósito do
golpe, comenta de passagem que “havia dois golpes em marcha”[4]. A peremptoriedade com que tal hipótese é anunciada sugere o avanço de sua hegemonia na historiografia sobre o tema.
Esse processo foi argutamente observado por Demian de Melo[5]. Debruçando-se sobre a produção historiográfica mais recente sobre a questão, o autor identifica uma corrente revisionista, lastreada naquela hipótese, fetichizada de realidade, de Argelina Figueiredo. Com efeito, o revisionismo em marcha procura quando muito repartir a responsabilidade pelo
golpe à democracia desfechado em 1964, nesse sentindo nublando o
caráter de classe apontado pelo trabalho pioneiro de René Dreifuss.
Nessa ambiência, faz sentido, portanto, que a vítima de primeira hora
dessa reconstrução discursiva seja justamente seu 1964: A conquista do Estado,
obra em que, amparado em pesquisa documental de intenso fôlego, o autor
conclui que um golpe classista, articulado pela burguesia brasileira
associada a congêneres internacionais, pôs fim ao regime político
iniciado em 1945. De acordo com os revisionistas, o trabalho de Dreifuss
atribui uma “onipotência” às organizações empresariais que, entretanto,
na prática não teria se verificado. Para sustentar tal argumentação,
nenhum ponto do livro é especialmente ressaltado, nenhuma prova
apresentada, sua proposta restando solta no ar.
Retirar o caráter de classe do golpe de
1964 caminha junto com a proposta inicial de Argelina Figueiredo. Com
efeito, para os que entendem que um duplo golpe estava em marcha no
período, é a radicalização e o tal déficit democrático que
explicam a queda do regime, não um projeto societário que, para ser
implementado, demandava a conquista do Estado. Entendemos, assim, que a
proposta de um giro interpretativo sobre a ditadura caminha pari pasu ao deslocamento da iniciativa classista do golpe, e, por conseguinte, do regime por ele implantado.
Brizola, Mayrink Veiga e o golpe antidemocrático
Resistindo à maré montante do
revisionismo, Caio Navarro de Toledo publicou, em 2004, artigo
sustentando o caráter antidemocrático do golpe de 1964[6]. Ressaltando a reação do movimento político-militar às reformas e à ampliação da democracia em processo, Toledo inverte a proposição que ganhou campo a partir de Democracia ou reformas?. À sua maneira, o autor lembra que os “atores políticos” identificados com o reformismo queriam, ao mesmo tempo, reformas e democracia.
Tendo tal perspectiva no horizonte,
procedi à pesquisa dos setores considerados mais potencialmente
antidemocráticos pela historiografia revisionista. A ideia era verificar
se o famigerado duplo déficit democrático correspondia à realidade. Para tanto, o estudo dos políticos tidos como mais radicais entre os das esquerdas
me pareceu necessário. Assim, recuperando Jorge Ferreira, fui atrás dos
discursos de Leonel Brizola na rádio Mayrink Veiga, apontada por ele
como lócus da radicalização antidemocrática[7].
O material, gravado pela polícia política da Guanabara, está disposto
no acervo do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) localizado
no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Em estado
precário e mal datado, o conjunto documental que interessou à pesquisa –
as escutas das intervenções brizolistas na rádio – é composto por cinco
fitas k-7 que, em que pese sua deterioração, ainda fornece importante
testemunho sobre a crise brasileira dos anos 60.
A partir de sua audição, as vozes do
passado trazem um Brizola bastante diferente do apresentado pela
historiografia atualmente hegemônica. Assim, não resiste à análise
documental a caracterização do líder petebista conforme proposta por
Ferreira. Ora, este autor o qualifica como “sectário”, “radical”, dado a
“rupturas institucionais” e “pregações revolucionária”[8].
No entanto, apesar de as intervenções no rádio anunciarem um político
impositivo na defesa pelas reformas, nada justifica sua qualificação
daquela forma.
Para sustentar a argumentação, daremos
voz ao maior envolvido nisso tudo: Leonel Brizola. Do conjunto de
discursos analisados, o fragmento mais combativo, mais potencialmente antidemocrático, é o que se refere aos Grupos de Onze, qualificados pela imprensa da época como células revolucionárias. Portanto, iniciativas contra o regime vigente. Precisamente isso guiou minha escolha. O trecho eu transcrevo abaixo.
[É preciso] organização popular para atuar, para agir, para lutar. Não para tomar chá. Essas unidades [os Grupos de Onze] irão atuar e se reunir não para tomar chá ou para fazer crochê. Não! [Se reunirão] exatamente com o propósito de defender as conquistas democráticas do nosso povo e avançar. Pela realização de uma democracia autêntica. Pela realização imediata das reformas e pela conquista de nossa libertação. Se pretenderem golpear as nossas liberdades, as nossas conquistas democráticas, não tenham dúvida. A luta vai sair! Vai haver luta! [grifos meus][9]
Como se vê, Brizola apregoa pelo rádio
a…defesa da democracia e das reformas. Não sua ruptura, mas seu
aprofundamento. Ameaça a luta, mas para assegurar a democracia, não para
dissolvê-la. É claro que se poderia contrapor a argumentação, alegando
algo provincianamente que uma coisa é o que se diz, outra coisa é o que
se faz. Mas qual fato, por assim dizer, da realidade justifica
as acusações de Ferreira? Nenhum. Inexistem. Os jornais do período bem
que tentaram qualificar a Rádio Mayrink Veiga como um aparelho de
subversão, financiadora da luta armada dos comunistas, mas as
denuncias da grande imprensa não resultaram na apresentação de nenhuma
prova de que levantes armados estavam em preparação.
Se abandonarmos a metafísica e voltarmos à terra, uma atitude a ser tomada com intuito de fazer história sobre o golpe de 64 é pesquisar os documentos disponíveis, baseando
neles nossas interpretações. Outra medida possível, que surge como
desdobramento da primeira, é dar voz aos envolvidos, a fim de que eles
falem sobre seus supostos déficits, quaisquer que sejam. Nesse sentido,
cai por terra, portanto, a argumentação revisionista que aceita a
qualificação do golpe como reativo à tentativa de interrupção
democrática pelas esquerdas. Ora, nem mesmo os grupos de onze,
entendidos pelos apoiadores do golpe como uma vanguarda revolucionária[10], serviam
à interrupção democrática. Eram instrumentalizados, ao contrário, para
realizar as reformas por meio de pressão popular, por distribuição de
panfletos e realização de palestras sobre o tema[11].
Não contra a democracia, pois. Aceitar aquela visão é repetir o
discurso dos opositores de Brizola, que, como o mesmo sabia, utilizavam
de todos artifícios disponíveis para espalhar o medo e a agitação,
objetivando a instabilidade política que facilitaria o golpe, não o das
esquerdas, mas o seu.
Para essa minoria [de privilegiados
opositores do regime], como o que já ocorre agora, os que lutam contra
esse estado de coisas são radicais, agitadores, comunistas, fidelistas,
etc. E daí caminham para o estado de sítio, para as medidas policiais
contra o que chamam de agitação, para a restrição de liberdades públicas
e individuais, para as tentativas de impor um governo forte, para o
golpe e a ditadura[12].
Vemos, por essas passagens ilustrativas
do conteúdo existente no acervo do DOPS, que Brizola não atentou contra a
democracia. Antes, denunciou aqueles que planejavam sua suspensão.
Antecipando o golpe, previu a ditadura. Sua luta política, à frente dos
microfones da Mayrink Veiga, foi uma luta pela manutenção do regime
vigente, entendido como meio de se assegurar a realização das reformas
almejadas.
O que se depreende do que foi lido?
Certamente que democracia é um conceito polissêmico. Dependendo do lugar
no espectro político de onde se fala, seu conteúdo pode adquirir
significados divergentes. Para o Brizola dos anos 1960, democracia era a
inclusão social assegurada pela expansão do direito do voto; democracia
era a inclusão na ordem capitalista propiciada pela expansão
do acesso à propriedade da terra; democracia, pois, envolvia não apenas
um aspecto regimental, a saber, a escolha periódica de elites governantes via
processo eleitoral, mas um meio para se atingir as reformas entendidas
como fundamentais para o desenvolvimento nacional. Se os revisionistas
não consideram essas características como sendo democráticas, certamente
isso revela mais sobre os revisionistas do que sobre a democracia.
Notas:
[1] FIGUEIREDO, Argelina. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política. Rio de Janeiro: Paz e Terra ,1993.
[2]
FERREIRA, Jorge. O governo João Goulart e o golpe civil-militar de
1964. In: _______, DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org). O Brasil
republicano. Tempo de experiência democrática. Da democratização de 1945
ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2003, v.3.
[3] REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
[4] GASPARI, Élio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 51
[5]
MELO, Demian. O golpe de 1964 e meio século de controvérsias. O estado
atual da questão. In: MELO, Demian (org). A miséria da historiografia.
Uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro, Consequência,
2014.
[6]
TOLEDO, Caio Navarro. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia.
Revista Brasileira de História. V. 24, nº 47, São Paulo, 2004.
[7] FERREIRA, Jorge. João Goulart. Uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 372-373.
[8]
______ . O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In:
FERREIRA, Jorge. DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org). O Brasil
republicano. Tempo de experiência democrática. Da democratização de 1945
ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2003, v.3, p. 356.
[9] Fundo BR APERJ DOPS/GB CX 2 fita 1
[10] Um panfleto apócrifo dos Grupos de Onze circula pela internet, principalmente em sites apologéticos do regime empresarial-militar. Nele, as células populares de Brizola são comparadas a um proto-exército vermelho, inspirado na guarda soviética. Ver: http://www.ternuma.com.br/index.php/noticias/2106-a-historia-do-terrorismo-no-brasil (acessado em 01/07/2015, às 23:58)
[11]
PACHECO, Diego. Os times do povo. Os grupos de onze e a memória
trabalhista em Santa Catarina. Visão Global, Joaçaba, v. 14, n. 2, p.
229-250, jul/dez, 2011.
[12] Fundo BR APERJ DOPS/GB CX 2 fita 3
FONTE: blog Junho
Nenhum comentário:
Postar um comentário