Escrito por Hemerson Ferreira *
Depois de Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, um sucesso de vendas lançado pelo então desconhecido Leandro Narloch, chegou a vez de Guia Politicamente Incorreto da América Latina, do mesmo autor, agora unido ao jornalista Duda Teixeira. Provavelmente também venderá como batata em fim de feira, sobretudo depois de ser propagandeado nos programas do Jô, Faustão e Ana Maria Braga.
“Politicamente incorreto” virou termo da moda, arranjado para substituir tudo quanto é tipo de besteirol, preconceito e ignorância. Ninguém é “politicamente incorreto” ao dizer, por exemplo, que “mulher gosta de apanhar”, “judeu ou palestino tem que morrer”, “negro é tudo macaco” ou que “veado (ou bicha) merece uma bela surra”. Sem eufemismos, o nome correto para isso é machismo, anti-semitismo, racismo e homofobia, respectivamente. É o que existe de mais velho em nossa sociedade, apresentado com “sarcasmo inteligente” e como sendo novidade.
Os dois livros de Narloch e Teixeira tiveram por objetivo atacar personagens históricos que, segundo seus autores, seriam figuras “caricatas” e “desprezíveis” só que “sacralizadas” por “historiadores e professores marxistas” ao longo dos anos. “Mitos” maldosa e trapaceiramente inventados por “comunistas”, com finalidade de “doutrinar” com suas idéias nefastas estudantes inocentes e indefesos.
Confunde-se aqui teoria historiográfica com militância política. Muitos historiadores marxistas realmente foram ou são ligados a partidos políticos, social-democratas, socialistas ou comunistas, um direito de todos. Certamente existiram mais historiadores conservadores e ligados à direita que historiadores de esquerda, mas desconhecemos estudos estatísticos neste sentido.
Para alguns, a produção historiográfica teve uma finalidade muito além das questões partidárias, sendo, sim, pessoalmente, uma obrigação profissional, moral e social. Já outros certamente mais fizeram uso desta ou daquela corrente historiográfica com fins apenas carreiristas e burocráticos. Muitos nunca militaram em partido político algum, seja de esquerda, centro ou de direita, mas enfocaram suas pesquisas em conflitos sociais, influenciados ou não pelo marxismo.
Além do mais, faz algum tempo que o culturalismo, o relativismo e a verborragia “pós-moderna” roubaram a cena nas academias. As razões disso, a chamada “crise de paradigmas”, são extensas demais para serem tratadas aqui. Falar hoje em modo de produção, exploração, imperialismo, burguesia, proletários, classes, luta de classes e demais conceitos marxistas atrai olhares esnobes, de quem vê essas questões como superadas e démodé.
Os “politicamente incorretos” Narloch e Teixeira reconhecem e até elogiam este “novo” cenário historiográfico, que, segundo dizem, “nos últimos 15 ou 20 anos vem produzindo” livros “bem melhores” e “menos politizados”. Os Guias politicamente Incorretos... são apresentados assim porque, a despeito de todo o esforço da “nova-história” da qual julgam fazer parte, “alguns velhos mitos esquerdistas” ainda persistem.
Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro, Lampião, Luiz Carlos Prestes, Simon Bolívar, Salvador Allende e Che Guevara, entre outros, são alguns nomes tratados na versão I e II dos “politicamente incorretos”. Não teríamos espaço aqui para tratar e rebater cada uma das besteiras escritas a respeito dos mesmos. A maioria delas já foi publicada há algum tempo, em outros livros mais sérios e específicos. Os Guias, portanto, não apresentam praticamente nada de novo. São apenas versões caricatas e resumidas do que já foi dito antes. Mostram assim, por exemplo, um Zumbi dos Palmares como sendo também “um senhor de escravos”. Só não nos dizem por que trabalhadores escravizados do século 17 assim que podiam fugiam imediatamente dos engenhos escravistas alagoanos e pernambucanos para o quilombo dos Palmares, que era um refúgio de cativos e não o inverso.
As críticas a Simon Bolívar, por sua vez, visam mais atacar o atual presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que falar de História da colonização, dos processos de independência ou do liberalismo na América Latina no séc. XIX. Não tem nada de “história isenta” ali. É puro proselitismo político-ideológico, mas os “politicamente incorretos” pensam que apenas os historiadores de esquerda é que têm ideologias.
Che Guevara é novamente tratado como um “frio assassino” e “mau estrategista”. Mas seguindo matéria já apresentada pela revista Veja recentemente, acrescentam que o guerrilheiro seria também “fedorento” por “não gostar de tomar banho”. Ora, eles queriam que o argentino fizesse uma revolução nas selvas e serras cubanas levando consigo chuveiro portátil na mochila e exalando perfumes franceses.
Não existe nada mais antigo na História que atacar tais personagens latino-americanos. A própria “História da América Latina”, em si, já foi taxada como “coisa de comunista” por certa corrente mais conservadora. O profissional de história seria sinônimo de “perigoso subversivo esquerdista”. História “boa”, para essa gente, é aquela que destaca apenas datas e “homens de bem” das classes dominantes, iniciando na Grécia e terminando nos EUA.
Como lembrou o escritor Luis Fernando Veríssimo, não bastou aos assassinos matarem Zapata. Eles tinham que capturar e tentar matar também seu cavalo, que galopava sozinho pelos campos e fazia com que os camponeses pensassem que seu dono o conduzisse, mantendo vivas as suas causas.
Zapata, Zumbi, Conselheiro, Lampião, Bolívar, Prestes, Salvador Allende ou Che Guevara morreram (a maioria assassinada porque ousou lutar) e estão enterrados há muito tempo na América Latina. Entretanto, continuam sendo símbolos populares da luta contra a exploração deste continente por impérios, governos, cartéis e banqueiros estrangeiros no plano internacional, e contra uma classe de parasitas ricos, poderosos, autoritários e corruptos, dentro de cada um de seus respectivos países.
Os “espíritos” (isto é, o que simbolizam e representam os atacados pelos “politicamente incorretos”) ainda inspiram e percorrem a imaginação, os sonhos, os anseios e as necessidades reais de imensas camadas sociais pobres e exploradas na América Latina. São lendas vivas, bandeiras de liberdade e igualdade que percorrem nossos campos e cidades. É isto que incomoda os “politicamente incorretos”.
*Hemerson Ferreira é mestre em História e professor municipal do Ensino Médio no estado do Rio Grande do Sul.
FONTE: Correio da Cidadania
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