Por Urariano Mota.
A notícia cujo título estampava “ler poesia é mais útil para o cérebro que livros de autoajuda”, na Folha de São Paulo, me faz agora pegar um afluente ou um desvio. Antes, vale a pena recuperar o texto da boa-nova.
“Ler autores clássicos, como Shakespeare, William Wordsworth e T.S. Eliot, estimula a mente e a poesia pode ser mais eficaz em tratamentos do que os livros de autoajuda, segundo um estudo da Universidade de Liverpool publicado nesta terça-feira (15).
Especialistas em ciência, psicologia e literatura inglesa da universidade monitoraram a atividade cerebral de 30 voluntários que leram primeiro trechos de textos clássicos e depois essas mesmas passagens traduzidas para a ‘linguagem coloquial’.
Os resultados da pesquisa, antecipados pelo jornal britânico Daily Telegraph, mostram que a atividade do cérebro ‘dispara’ quando o leitor encontra palavras incomuns ou frases com uma estrutura semântica complexa, mas não reage quando esse mesmo conteúdo se expressa com fórmulas de uso cotidiano.
Esses estímulos se mantêm durante um tempo, potencializando a atenção do indivíduo, segundo o estudo, que utilizou textos de autores ingleses como Henry Vaughan, John Donne, Elizabeth Barrett Browning e Philip Larkin.
Os especialistas descobriram que a poesia “é mais útil que os livros de autoajuda”, já que afeta o lado direito do cérebro, onde são armazenadas as lembranças autobiográficas, e ajuda a refletir sobre eles e entendê-los desde outra perspectiva.
“A poesia não é só uma questão de estilo. A descrição profunda de experiências acrescenta elementos emocionais e biográficos ao conhecimento cognitivo que já possuímos de nossas lembranças”, explica o professor David, encarregado de apresentar o estudo.
Após o descobrimento, os especialistas buscam agora compreender como afetaram a atividade cerebral as contínuas revisões de alguns clássicos da literatura para adaptá-los à linguagem atual, caso das obras de Charles Dickens.
Para essa nova, espero que, a pretexto de um didatismo que pressupõe incapacidades, não adaptem os clássicos a versões de quadrinhos ou a leituras mais simplificadas. Porque aí o cérebro estaciona. Entendam, por favor, se eu puder atingir a clareza.
Nem de longe me refiro ao poder pedagógico, estimulante, que têm os quadrinhos, o que chamam hoje de HQ. Aliás, o gibi da nossa infância. Eu me refiro às adaptações dos clássicos aos quadrinhos. A uma, por exemplo, adaptação de Os lusíadas, ou de Guerra e paz a quadrinhos. Uma hipótese terrível a nível de pesadelo. Uma adaptação do gênero empobrece o que em si é fonte viva de conhecimento e de inteligência: a leitura a partir do texto, que é infinitamente superior em gozo à sua simplificação. E não se espantem por favor do que pode parecer uma afirmação sectária: adaptar a literatura a outras formas é simplificá-la. É a pior das traduções, pelo que ela perde de alumbramento e significados. Em outra ponta de versão, pense-se no cinema, pense-se no fracasso (como sensibilidade e descoberta do mundo) de Guerra e paz nas telas. Ou do ridículo que foi Em busca do tempo perdido nas telas, que geraria, por si, um outro artigo, ou ensaio, se eu pudesse.
Entendam. Nada contra o papel dos quadrinhos até como ferramenta de aprendizagem da leitura. De viva experiência, lembro que na infância aprendi a ler para ler aquelas figurinhas e o que elas falavam. Mas não posso nem devo aceitar que em nome de facilidades se aceitem coisas como “os alunos percebem que uma mesma mensagem pode ser transmitida de diferentes maneiras e que não há uma mais nobre que a outra”, como tenho lido aqui e ali. Essa indiferentetradutibilidade, uma palavra feia, é falsa, diria até, danosa. Todos podemos dar versões, aproximações, mas é perigosa a crença de que Shakespeare no palco é o mesmo Shakespeare em HQ, por exemplo. Quem assim acredita age como o personagem da anedota em que Einstein foi solicitado por um repórter, que insistente pedia A Teoria da Relatividade mais palatável. O paciente cientista se pôs então a explicar a sua teoria em palavras mais simples, recorrendo a imagens do cotidiano. E perguntava:
– Entendeu?
E o repórter respondia:
– Doutor Einstein, eu, sim. Mas os leitores… não haverá um modo mais simples na Relatividade?
E o cientista voltava com novos recursos de imagens, para perguntar depois de bom tempo:
– Entendeu?
E o repórter, finalmente satisfeito:
– Sim, agora, sim.
E o grande Einstein desalentado:
– É, mas já agora não é a Teoria da Relatividade.
As HQs e o cinema apenas deixam a impressão de que se conhece um clássico a partir da sua versão. (Em alguns casos, autênticas aversões.) Mas notem. É curioso como todos compreendemos que uma pintura ou uma obra musical não se substituem por uma narração em prosa. Substituir Vivaldi, por exemplo, por um livro que refletisse Vivaldi. Ou até as imagens, na tela, que substituam a visão do quadro mesmo, como me senti em relação às gravuras de Goya, quando mergulhei numa arrebentação íntima, com aquelas suas gravuras sobre a guerra. Isso compreendemos. No entanto, a maioria aceita que uma narração venha a ser substituída por uma HQ ou um filme. Não é tragicômico? As HQs e o cinema são expressões de arte autônoma, que podem (e devem) dialogar com outras expressões. Mas daí não se tire a conclusão de que podemos conhecer um romance por sua recriação em meios tão limitados. Esta é a palavra, limitados. O que na expressão literária é um oceano de sentidos, nas demais vemos piscinas, piscininhas, que nos dão a ilusão de que “o mar pode ser visto nesta porção de água”.
Para ser mais claro, enfim, pense-se nas obras recontadas, como o Dom Quixote, que mais de uma boa intenção achou por bem recontar em livrinho não faz muito tempo. Todo jovem, toda criança que ler esse resumo pensará que conhece o Dom Quixote. Se assim é de um texto oceânico para um textinho de riacho, riacho temporário, já se vê, imagine-se A divina comédia em HQ (já se fez)…
Por último e por fim. De Goethe, no livro Poesia e verdade, guardei: “Como distinguir o que eu pusera de minha vida e de meus sofrimentos nessa composição, se jovem e despercebido eu vivera se não no mistério, pelo menos na obscuridade?”. Assim o fundamental poeta refletiu sobre a recepção do Werther na Europa. Fico a imaginar como seria pôr essa luminosidade em um balãozinho.
FONTE: Blog da Boitempo
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