Por Monteiro Lobato
Na frente do palácio de certo rei do
Oriente havia um morro que lhe estragava o prazer. Esse rei, apesar de ser
vesgo, tinha uma grande vontade de “dominar a paisagem”; vontade tão grande que
ele não pôde resistir, e lá um belo dia resolveu secretamente arrasar o morro.
Tratava-se, porém, de um morro sagrado, chamado o Morro da Democracia, e
defendido pelas leis básicas do reino. Nem essas leis nem o povo jamais
consentiriam em sua demolição, porque era justamente o obstáculo que limitava o
poder do rei. Sem ele o rei dominaria ditatorialmente a paisagem, o que todos
tinham como um grande mal.
Mas aquele rei, que além de vesgo era
malandro, tanto espremeu os miolos que teve uma ideia. Piscou e chamou uns cavouqueiros,
aos quais disse:
– Tirem-me um pouco de terra desse
morro, ali há umas touceiras de craguatá espinhento. Se o povo protestar contra minha mexida no
morro, direi que é para destruir o craguatá espinhento; e que se tirei um pouco
de terra foi para que não ficasse no chão nem uma raiz ou semente.
Os cavouqueiros arrancaram os pés de
craguatá e removeram várias carroças de terra. O povo não protestou; não achou
que fosse caso disso. Só alguns ranzinzas murmuraram, ao que os apaziguadores
responderam:
– Foi muito pequena a quantidade de
terra tirada; não fará falta nenhuma.
Vendo que não houve protesto, o rei,
logo depois, deu nova ordem aos cavouqueiros para que arrancassem outro pé de
qualquer coisa, mas com terra – ele fazia muita questão de que a planta
condenada saísse sempre com um bocadinho de terra... Continuando o povo a não
protestar, prosseguiu o rei por muito tempo naquela política de “extirpação das
plantas daninhas do morro”, e as foi arrancando, sempre “com terra”, até que um
dia...
– Que é do morro?
Já não havia morro nenhum no reino.
Desaparecera o Morro da Democracia, e o rei pôde, afinal, estender o seu olho
vesgo por todo o país e governá-lo despoticamente – não pelo breve espaço de
apenas quinze anos, mas trinta e tantos, segundo rezam as crônicas históricas.
Isso foi no Oriente. Mas nada impede que
aqui aconteça o mesmo, porque também temos o nosso morrinho da Democracia,
cheio dessas plantas más que costumam nascer em tais morros. É preciso, pois,
que o povo se mantenha sempre vigilante, para que os nossos reis vesgos não as
arranquem “com terra”. Do contrário o morro se acaba – e... como é? Ditadura
outra vez? Tribunalzinho de Segurança outra vez? Paizinho dos pobres outra vez?
Este comício tem essa significação. È um
protesto do povo contra as primeiras carroçadas de terra que o nosso rei, sob o
pretexto de arrancar o craguatá espinhento do comunismo, tirou do nosso Morro
da Democracia. Cesteiro que faz um cesto faz cem. Quem tira uma carroçada de
terra tira mil. Se não reagirmos energicamente, um dia estaremos privados do
nosso morro e com um terrível soba dominando toda a planície.
E se tal acontecer, e esse soba
instituir o relho como instrumento de convicção, será muitíssimo bem feito,
porque outra coisa não merece um povo que deixa seus governantes despojarem-no
pouco a pouco das suas mais belas conquistas liberais.
O preço da liberdade é uma vigilância
barulhenta como os gansos do Capitólio.
(*) NOTA:
Texto
elaborado pelo autor em junho de 1947, por ocasião de comício realizado no Vale
do Anhangabaú, São Paulo, em protesto contra a proibição das atividades do
Partido Comunista e a iminente cassação de seus parlamentares.
FONTE:
Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Justiça Eleitoral: uma retrospectiva.
São Paulo: Imprensa Oficial, 2005, p. 90.
ontem, como hoje, as idéias democráticas são um perigo para os donos do poder (que, hàbilmente, se escondem atrás de várias bandeiras e as agitam para a patuléia insana se divertir)
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