sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

HISTÓRIA DO REI VESGO*


Por Monteiro Lobato

Na frente do palácio de certo rei do Oriente havia um morro que lhe estragava o prazer. Esse rei, apesar de ser vesgo, tinha uma grande vontade de “dominar a paisagem”; vontade tão grande que ele não pôde resistir, e lá um belo dia resolveu secretamente arrasar o morro. Tratava-se, porém, de um morro sagrado, chamado o Morro da Democracia, e defendido pelas leis básicas do reino. Nem essas leis nem o povo jamais consentiriam em sua demolição, porque era justamente o obstáculo que limitava o poder do rei. Sem ele o rei dominaria ditatorialmente a paisagem, o que todos tinham como um grande mal.

Mas aquele rei, que além de vesgo era malandro, tanto espremeu os miolos que teve uma ideia. Piscou e chamou uns cavouqueiros, aos quais disse:

– Tirem-me um pouco de terra desse morro, ali há umas touceiras de craguatá espinhento.  Se o povo protestar contra minha mexida no morro, direi que é para destruir o craguatá espinhento; e que se tirei um pouco de terra foi para que não ficasse no chão nem uma raiz ou semente.

Os cavouqueiros arrancaram os pés de craguatá e removeram várias carroças de terra. O povo não protestou; não achou que fosse caso disso. Só alguns ranzinzas murmuraram, ao que os apaziguadores responderam:

– Foi muito pequena a quantidade de terra tirada; não fará falta nenhuma.

Vendo que não houve protesto, o rei, logo depois, deu nova ordem aos cavouqueiros para que arrancassem outro pé de qualquer coisa, mas com terra – ele fazia muita questão de que a planta condenada saísse sempre com um bocadinho de terra... Continuando o povo a não protestar, prosseguiu o rei por muito tempo naquela política de “extirpação das plantas daninhas do morro”, e as foi arrancando, sempre “com terra”, até que um dia...

– Que é do morro?

Já não havia morro nenhum no reino. Desaparecera o Morro da Democracia, e o rei pôde, afinal, estender o seu olho vesgo por todo o país e governá-lo despoticamente – não pelo breve espaço de apenas quinze anos, mas trinta e tantos, segundo rezam as crônicas históricas.

Isso foi no Oriente. Mas nada impede que aqui aconteça o mesmo, porque também temos o nosso morrinho da Democracia, cheio dessas plantas más que costumam nascer em tais morros. É preciso, pois, que o povo se mantenha sempre vigilante, para que os nossos reis vesgos não as arranquem “com terra”. Do contrário o morro se acaba – e... como é? Ditadura outra vez? Tribunalzinho de Segurança outra vez? Paizinho dos pobres outra vez?

Este comício tem essa significação. È um protesto do povo contra as primeiras carroçadas de terra que o nosso rei, sob o pretexto de arrancar o craguatá espinhento do comunismo, tirou do nosso Morro da Democracia. Cesteiro que faz um cesto faz cem. Quem tira uma carroçada de terra tira mil. Se não reagirmos energicamente, um dia estaremos privados do nosso morro e com um terrível soba dominando toda a planície.

E se tal acontecer, e esse soba instituir o relho como instrumento de convicção, será muitíssimo bem feito, porque outra coisa não merece um povo que deixa seus governantes despojarem-no pouco a pouco das suas mais belas conquistas liberais.

O preço da liberdade é uma vigilância barulhenta como os gansos do Capitólio.


(*) NOTA: Texto elaborado pelo autor em junho de 1947, por ocasião de comício realizado no Vale do Anhangabaú, São Paulo, em protesto contra a proibição das atividades do Partido Comunista e a iminente cassação de seus parlamentares.


FONTE: Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Justiça Eleitoral: uma retrospectiva. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005, p. 90.

Um comentário:

  1. ontem, como hoje, as idéias democráticas são um perigo para os donos do poder (que, hàbilmente, se escondem atrás de várias bandeiras e as agitam para a patuléia insana se divertir)

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