sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

100 anos de Noel Rosa

O poeta da vila conseguiu expressar no samba do morro o sentimento de toda a cidade

Pedro Nathan*

Se estivesse vivo, Noel Rosa teria completado 100 anos, em 11 de dezembro [do ano passado]. Além de sua contribuição na divulgação do samba, é necessário enfatizar sua preocupação em produzir uma arte de expressão popular. De sua vida e de sua obra ficam valiosas pistas aos que se aventuram nos caminhos do povo. Neste texto, uma breve apresentação do poeta, com algumas contextualizações.

Prazer em conhecê-lo
Noel de Medeiros Rosa, sambista e compositor, abandonou a faculdade de Medicina por uma vida dedicada ao samba. Nascido em 1910, no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Desde cedo teve contato com os moradores dos cortiços e dos morros, bem como com os ritmos que vinham de lá. Como poucos de sua época, soube retratar seu tempo e os tipos urbanos que ali viviam. Para alguns autores, inclusive, sua obra traz elementos para entendermos o processo e as contradições da formação histórica do Brasil.

Baleiro, jornaleiro, motoneiro,

Condutor e passageiro

Prestamista e vigarista

E um bonde que parece uma carroça

Coisa Nossa, Muito nossa!

(São Coisas Nossas, Noel Rosa)

Noel começou sua carreira musical junto com outros garotos de Vila Isabel, dentre eles também estava o compositor Braguinha, no conjunto Flor do tempo, que depois viria a se chamar ‘Bando dos tangarás’. O grupo começou tocando músicas no estilo da embolada nordestina, que era moda no país. É importante lembrar que naquele tempo, o Brasil ainda era basicamente rural.

Minha viola

Tá chorando com razão

Por causa de uma marvada

Que roubou meu coração

(Minha Viola, Noel Rosa)


Mais tarde, Noel trocaria esses ritmos pelo samba. Segundo o escritor Luiz Ricardo Leitão, ele já estaria antevendo a transformação do Brasil em um país urbano. Frequentou os botequins da Lapa do Rio de Janeiro dos anos 1930 e foi o primeiro a fazer parcerias com os novos compositores do morro, dentre os quais, Agenor de Oliveira, Cartola. Também foi um dos pioneiros a gravar suas canções no rádio, que só começava no Brasil (e que por um bom tempo, seria o principal veículo de comunicação de massa). Devido à sua saúde precária, faleceu em 4 de maio de 1937, vítima de uma tuberculose.

Mesmo que, hoje em dia, nem todas as pessoas conheçam quem foi Noel, se já não ouviram suas músicas, ao menos tomaram contato com alguma manifestação que lhe fizesse referência, mesmo indiretamente. Isso porque sua obra influenciou grande parte da produção cultural brasileira dos séculos 20 e 21. Mas se sua criação tem tanto a dizer para nossa realidade, é porque o contexto em que fora produzida nos legou heranças históricas.

Nuvem que passou
O período de produção musical de Noel Rosa - pelo menos no que se refere às músicas que fez a partir de quando se tornara um músico profissional - vai, mais ou menos, de 1929 a 1937. Nesse curto espaço de tempo ocorrem pelo menos três grandes acontecimentos políticos e econômicos de grande relevância: o ‘crack’, ou a quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, resultado da maior crise de superpordução até então ocorrida no capitalismo; a chamada revolução de 1930, processo que colocou Getúlio Vargas no poder, em benefício da burguesia industrial (até então, na República do ‘café com leite’, quem ditava a regra era a burguesia agrária); O “Estado Novo”, ditadura implantada pelo próprio governo Vargas, alguns meses após a morte de Noel (e dois anos depois, eclodiria a II Guerra mundial). Foi, portanto, um período de turbulência, em que a história até parece caminhar mais depressa.

Assim, se a referência tradicional do samba era a da malandragem individual, como um meio de sobrevivência e ascensão social, para Noel, o ponto de partida era o coletivo: a crise geral e a situação das maiorias.

Vivo contente embora esteja na miséria

Que se dane! Que se dane!

Com essa crise levo a vida na pilhéria

Que se dane! Que se dane!

(Que se Dane. Noel Rosa)


É verdade que não podemos reduzir a obra de Noel pura e simplesmente a um reflexo de sua época. Por outro lado, é certo que todos esses acontecimentos forneceram matéria-prima e condições suficientes para que o poeta se tornasse o artista que, de fato, se tornou

No rádio

Nesse mesmo período, o rádio começa a se desenvolver, seguindo política do governo Vargas de estimular sua difusão em âmbito nacional. Nesse bojo, o próprio samba viria a ser apropriado como uma forma de estabelecer uma identidade nacional. A indústria cultural apenas engatinhava. Mesmo assim, alguns dilemas já se faziam presentes:

Quem dá mais?

por um samba feito nas regras da arte

Sem introdução e sem segunda parte

Só tem estribilho, nasceu no Salgueiro

E exprime dois terços do Rio de Janeiro

(Quem dá mais? Noel Rosa)

O samba, enquanto expressão legítima de resistência de um povo, agora, passava a tocar no rádio. Mas nem todos os sambistas tiveram oportunidade de ouvir suas composições em cadeia nacional. Com o desenvolvimento dessa indústria, a música perderia cada vez mais o seu caráter de trabalho coletivo para, em sua forma de mercadoria, aparecer como mero entretenimento. Mesmo tocando nas rádios, era mais um sambinha que se dissolvia no ar:

Fiz um poema pra lhe dar

Cheio de rimas, que acabei de musicar

Se por capricho, não quiseres aceitar

Tenho que jogar no lixo mais um samba popular

(Mais um samba popular, Noel Rosa/Vadico)

Claro que o nível de padronização ainda não era tão grande, se comparado ao que fazem, hoje, as grande gravadoras. Porém, a canção das rádios e dos discos já era, claramente, tratada como artigo de troca. Havia, inclusive, os que comprassem até as autorias das músicas, como Francisco Alves e, anos depois, Roberto Carlos. A seguinte questão já se anunciava: como expressar o canto popular e agradar aos anunciantes, ao mesmo tempo?

Noel viveu essa situação, como todo artista de seu tempo. Não conseguiu dar uma solução para o problema – só mesmo uma revolução poderia resolver isso, já que se tratava de uma consequência do capitalismo internacional. Mesmo assim, fez claramente a opção pela música que vinha do morro, particularmente do Estácio de Sá.

Nasci no Estácio
É muito difícil entender a obra de Noel sem levar em conta a influência dos sambistas do morro do Estácio. Foi nesse morro que o samba ganhou o ritmo e a cadência modernos. Foi lá também que surgiu a primeira escola de samba (Deixa Falar) e, pelo menos, dois instrumentos que até hoje são utilizados em rodas de samba: o surdo e o tamborim. Realmente, o samba carioca nasceu no Estácio. Antes disso, era o samba praticado na casa de Tia Ciata, trazido da Bahia, derivado da umbigada (o semba,de Angola) e muito parecido com o ritmo do maxixe. Ismael Silva, um dos grandes nomes do Estácio e parceiro de Noel em algumas músicas é quem diz:

“O estilo (antigo) não dava para andar. Eu comecei a notar uma coisa. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar assim? Aí a gente começou a fazer um samba assim: bum bum patcumbumprugurudum”

(citado em livro de Sérgio Cabral,1996,p. 242)

Percebendo a força social do samba do Estácio, Noel contribuiu para sua expansão. Pelo bem e pelo mal, o samba já não era só um fenômeno do morro, foi apropriado pelas massas.

O samba, na realidade

Não vem do morro nem lá da cidade

E quem suportar uma paixão

Sentirá que o samba então

Nasce do coração

(Feitio de oração, Noel Rosa/Vadico)

Traga a conta, seu garçom!

Em seu tempo, Noel nos deixou pistas para o desenvolvimento de uma arte popular que pudesse traduzir o sentimento geral da população e seus problemas mais candentes. O exemplo que nos deixou, ao ir de encontro ao povo e se expressar através de sua realidade e de seu ritmo, certamente, nos vale até hoje. Na certa, as respostas encontradas na época de Noel não poderão dar conta dos desafios colocados, hoje, para a organização da classe trabalhadora.

Sem dúvida, ainda é necessário, se não ‘subir o morro’, ao menos, ‘pisar no barro’. Contudo, não basta. A sociedade se transforma, as mediações para esse tipo de trabalho também se tornam mais complexas. Antes de qualquer coisa, sabemos que a saída está em nos organizarmos coletivamente – mas, com que roupa?

*Pedro Nathan é cartunista e militante da organização Consulta Popular.

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