Resenha escrita por Duarte Pereira
A editora catarinense Letras Contemporâneas acaba de publicar o ensaio do poeta, historiador e militante antilhano negro Aimé Césaire, ‘Discurso sobre o colonialismo’, em tradução do professor Anísio Garcez Homem e com apresentação do advogado paranaense Cláudio Antonio Ribeiro.
Escrito na primeira década posterior à Segunda Guerra Mundial, quando se intensificava a luta pela emancipação das colônias européias na Ásia, na África, no Oriente Médio e nas Antilhas, o ensaio poderia parecer desatualizado. Com a vitória da maioria dessas lutas emancipadoras, a dominação colonial e direta deixou de ser a principal forma de opressão nacional, embora ainda persista até mesmo em nossa fronteira amazônica com a permanência da Guiana Francesa, ou na proximidade marítima da Argentina com a ocupação das Ilhas Malvinas reafirmada pela Grã-Bretanha.
É indiscutível, porém, que a opressão imperialista assumiu novas configurações nas últimas décadas do século XX, privilegiando formas dissimuladas de domínio indireto, através da dependência econômica e financeira, das pressões diplomáticas e militares, da invasão cultural e tecnológica e da aliança com frações das classes dominantes locais.
Apesar dessa mudança na forma principal da dominação imperialista, com o trânsito do colonialismo para o neocolonialismo, a denúncia erudita e indignada de Aimé Césaire, lida com a atenção que merece, conserva sua terrível atualidade. Oferece, inclusive, uma perspectiva iluminadora para a compreensão de tragédias recentes, como as invasões do Iraque e do Afeganistão, a nova cruzada contra as nações árabes e islâmicas ou a ocupação e devastação do Haiti – neste caso com a participação brasileira.
A argumentação de Aimé Césaire resistiu ao transcurso dos anos por causa da perspectiva histórica e abrangente adotada por ele e exposta já nos primeiros parágrafos de seu ensaio: "Uma civilização que se mostra incapaz de resolver os problemas que suscita seu funcionamento é uma civilização decadente. (...) O fato é que a civilização chamada ‘européia’, a civilização ‘ocidental’, é incapaz de resolver os dois principais problemas que sua existência originou: o problema do proletariado e o problema colonial."
Um dos méritos de Aimé Césaire é que ele não se limita a recordar os métodos violentos, a espoliação material ou a devastação cultural efetivados pelo transbordamento colonial das grandes potências européias, a que se seguiu no século XX gradativamente, como indica com clarividência, a expansão neocolonial e concorrente dos Estados Unidos. Aimé Césaire vai além e desencava citações chocantes e surpreendentes de líderes políticos e militares, de missionários cristãos e de cientistas e escritores ocidentais, que tentaram justificar a colonização pela suposta existência de raças superiores e inferiores e por uma imaginária missão civilizadora atribuída pela história à raça branca superior.
Aimé Césare refuta essas alegações tendenciosas e insustentáveis e evidencia que, ao contrário, a colonização tem "descivilizado" as potências capitalistas dominantes, contaminado-as com os métodos truculentos e a insensibilidade moral empregados na conquista e na administração dos territórios e povos subjugados. Como verbera: "A Europa colonizadora enxertou o abuso moderno na antiga injustiça; o odioso racismo na velha desigualdade."
São pedagógicas as aproximações que estabelece entre as práticas européias nas "atrasadas" colônias e as práticas de Hitler na "civilizada" Europa. Hoje, poderia fazer analogias semelhantes entre a atuação dos "democráticos" Estados Unidos e de seus aliados no Iraque, no Afeganistão, no Haiti ou em Guantánamo e as regressões que se observam na vida política interna das potências ocidentais.
Aimé Césaire nasceu em 1913 na ilha de Martinica, colonizada pela França, e nela faleceu em 2008, com a Martinica ainda mantida como um Departamento Ultramarino da França nas Pequenas Antilhas. Além da militância política, realizou investigações historiográficas e redigiu ensaios, peças de teatro e, influenciado pelo surrealismo, poemas muito valorizados pelos surrealistas franceses André Breton e Benjamin Péret.
A editora Letras Contemporâneas, que já publicou uma coletânea dos principais poemas de Aimé Césaire, está preparando uma tradução integral de um de seus livros de poemas mais apreciado, Cahier d’um retour au pays natal (Caderno de um retorno à terra natal). Criador do polêmico conceito de "negritude", juntamente com o senegalês Léopold Senghor, o inventivo martiniquenho ostenta em sua obra, com orgulho, as marcas de reelaboradas heranças culturais africanas.
O advogado Cláudio Antonio Ribeiro, que prefacia a edição brasileira do ensaio sobre o colonialismo, atuou no movimento sindical bancário, militou na Ação Popular e foi preso e cruelmente torturado pelos esbirros da última ditadura tecnocrático-militar brasileira. Hoje é um advogado trabalhista combativo na circunscrição do Paraná e de Santa Catarina. Em visita à Martinica, teve a oportunidade de conhecer Aimé Césaire, já envelhecido e alquebrado, e prometeu que ajudaria a publicar seu ensaio no Brasil, promessa agora cumprida. Na apresentação, Cláudio compara, com procedência, a importância do Discurso sobre o colonialismo de Aimé Césaire à do famoso libelo de Émile Zola, ‘Eu acuso’, a propósito do caso Dreyfus no final do século XIX. São textos indeléveis que nenhum militante socialista e internacionalista deveria ignorar.
FONTE: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/4959/9/
A editora catarinense Letras Contemporâneas acaba de publicar o ensaio do poeta, historiador e militante antilhano negro Aimé Césaire, ‘Discurso sobre o colonialismo’, em tradução do professor Anísio Garcez Homem e com apresentação do advogado paranaense Cláudio Antonio Ribeiro.
Escrito na primeira década posterior à Segunda Guerra Mundial, quando se intensificava a luta pela emancipação das colônias européias na Ásia, na África, no Oriente Médio e nas Antilhas, o ensaio poderia parecer desatualizado. Com a vitória da maioria dessas lutas emancipadoras, a dominação colonial e direta deixou de ser a principal forma de opressão nacional, embora ainda persista até mesmo em nossa fronteira amazônica com a permanência da Guiana Francesa, ou na proximidade marítima da Argentina com a ocupação das Ilhas Malvinas reafirmada pela Grã-Bretanha.
É indiscutível, porém, que a opressão imperialista assumiu novas configurações nas últimas décadas do século XX, privilegiando formas dissimuladas de domínio indireto, através da dependência econômica e financeira, das pressões diplomáticas e militares, da invasão cultural e tecnológica e da aliança com frações das classes dominantes locais.
Apesar dessa mudança na forma principal da dominação imperialista, com o trânsito do colonialismo para o neocolonialismo, a denúncia erudita e indignada de Aimé Césaire, lida com a atenção que merece, conserva sua terrível atualidade. Oferece, inclusive, uma perspectiva iluminadora para a compreensão de tragédias recentes, como as invasões do Iraque e do Afeganistão, a nova cruzada contra as nações árabes e islâmicas ou a ocupação e devastação do Haiti – neste caso com a participação brasileira.
A argumentação de Aimé Césaire resistiu ao transcurso dos anos por causa da perspectiva histórica e abrangente adotada por ele e exposta já nos primeiros parágrafos de seu ensaio: "Uma civilização que se mostra incapaz de resolver os problemas que suscita seu funcionamento é uma civilização decadente. (...) O fato é que a civilização chamada ‘européia’, a civilização ‘ocidental’, é incapaz de resolver os dois principais problemas que sua existência originou: o problema do proletariado e o problema colonial."
Um dos méritos de Aimé Césaire é que ele não se limita a recordar os métodos violentos, a espoliação material ou a devastação cultural efetivados pelo transbordamento colonial das grandes potências européias, a que se seguiu no século XX gradativamente, como indica com clarividência, a expansão neocolonial e concorrente dos Estados Unidos. Aimé Césaire vai além e desencava citações chocantes e surpreendentes de líderes políticos e militares, de missionários cristãos e de cientistas e escritores ocidentais, que tentaram justificar a colonização pela suposta existência de raças superiores e inferiores e por uma imaginária missão civilizadora atribuída pela história à raça branca superior.
Aimé Césare refuta essas alegações tendenciosas e insustentáveis e evidencia que, ao contrário, a colonização tem "descivilizado" as potências capitalistas dominantes, contaminado-as com os métodos truculentos e a insensibilidade moral empregados na conquista e na administração dos territórios e povos subjugados. Como verbera: "A Europa colonizadora enxertou o abuso moderno na antiga injustiça; o odioso racismo na velha desigualdade."
São pedagógicas as aproximações que estabelece entre as práticas européias nas "atrasadas" colônias e as práticas de Hitler na "civilizada" Europa. Hoje, poderia fazer analogias semelhantes entre a atuação dos "democráticos" Estados Unidos e de seus aliados no Iraque, no Afeganistão, no Haiti ou em Guantánamo e as regressões que se observam na vida política interna das potências ocidentais.
Aimé Césaire nasceu em 1913 na ilha de Martinica, colonizada pela França, e nela faleceu em 2008, com a Martinica ainda mantida como um Departamento Ultramarino da França nas Pequenas Antilhas. Além da militância política, realizou investigações historiográficas e redigiu ensaios, peças de teatro e, influenciado pelo surrealismo, poemas muito valorizados pelos surrealistas franceses André Breton e Benjamin Péret.
A editora Letras Contemporâneas, que já publicou uma coletânea dos principais poemas de Aimé Césaire, está preparando uma tradução integral de um de seus livros de poemas mais apreciado, Cahier d’um retour au pays natal (Caderno de um retorno à terra natal). Criador do polêmico conceito de "negritude", juntamente com o senegalês Léopold Senghor, o inventivo martiniquenho ostenta em sua obra, com orgulho, as marcas de reelaboradas heranças culturais africanas.
O advogado Cláudio Antonio Ribeiro, que prefacia a edição brasileira do ensaio sobre o colonialismo, atuou no movimento sindical bancário, militou na Ação Popular e foi preso e cruelmente torturado pelos esbirros da última ditadura tecnocrático-militar brasileira. Hoje é um advogado trabalhista combativo na circunscrição do Paraná e de Santa Catarina. Em visita à Martinica, teve a oportunidade de conhecer Aimé Césaire, já envelhecido e alquebrado, e prometeu que ajudaria a publicar seu ensaio no Brasil, promessa agora cumprida. Na apresentação, Cláudio compara, com procedência, a importância do Discurso sobre o colonialismo de Aimé Césaire à do famoso libelo de Émile Zola, ‘Eu acuso’, a propósito do caso Dreyfus no final do século XIX. São textos indeléveis que nenhum militante socialista e internacionalista deveria ignorar.
FONTE: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/4959/9/
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