Entrevista de Antonio Candido, a propósito dos 50 anos da publicação de Formação da Literatura Brasileira (24/10/2009):
Zero Hora – À distância de 50 anos, a Formação da Literatura Brasileira (FLB) lhe parece padecer de algum traço nacionalista, como se costuma dizer? Se o senhor escrevesse a obra hoje, faria diferente, especificamente na abordagem do nacional ou, ao contrário, na integração do não-nacional?
Antonio Candido – Começando pelo fim, lembre quanto ao “não-nacional” que eu refiro sempre os autores brasileiros aos inspiradores ou afins europeus, porque a nossa é uma literatura que pertence organicamente ao quadro das literaturas ocidentais. Muitas vezes, o que escrevemos parece, aos outros, diferente do que nos parece. O fato de a FLB estudar o nacionalismo crítico não quer dizer que se enquadre nele. O que penso a respeito pode ser lido num trecho da introdução: “(...) o nacionalismo crítico, herdado dos românticos, pressupõe também, como ficou dito, que o valor da obra dependia do seu caráter representativo. Dum ponto de vista histórico, é evidente que o conteúdo brasileiro foi algo positivo, mesmo como fator de eficácia estética, dando pontos de apoio à imaginação e músculos à forma. Deve-se, pois, considerá-lo subsídio da avaliação, nos momentos estudados, lembrando que, após ter sido recurso ideológico, numa fase de construção e autodefinição, é atualmente inviável como critério, constituindo um calamitoso erro de visão”. Terei incorrido neste erro? Levar em conta a ocorrência nas obras de elementos característicos do país, tanto humanos quanto naturais, é necessário num trabalho de história literária, mas nem é exclusividade do nacionalismo crítico, nem basta para caracterizá-lo. O nacionalismo crítico propriamente dito tem entre os seus pressupostos a noção de que o conteúdo temático local determina o valor das obras. Isso não estava nas minhas intenções, mas é possível que tenha se infiltrado. Seja como for, continuo aceitando os pontos de vista da FLB, que, no entanto, é um livro de outro tempo. Portanto, desgastado. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade num dos seus mais belos poemas, sinto que sobre ele o tempo abateu a sua mão pesada. Sobretudo levando em conta que, no último meio século, constituiu-se e amadureceu, de Norte a Sul, a crítica universitária, investigadora e retificadora por natureza. Quando escrevi a FLB, a partir de 1945, ela estava começando.
ZH – O prefácio da segunda edição da FLB identifica “o último quartel do século 19” como “o momento em que a nossa literatura aparece integrada, articulada com a sociedade”. A identificação desse momento é baseada em qual grau de articulação com qual porção da sociedade?
Candido – A parte final do século 19 me parece o momento no qual a nossa literatura já demonstrava um grau de integração autor-obra-público que, segundo o meu ponto de vista, permite considerá-la atividade contínua, marcada por uma tradição local, sendo que o público, isto é, a parte da sociedade com a qual se articula, era essencialmente a minoria capaz de ler. Por isso, parei o livro naquela altura. Quem o lê percebe que a pesquisa sobre tradição, implícita o tempo todo, é um fio condutor, porque a tradição é a prova de que o sistema vai se constituindo, de que a literatura vai se institucionalizando, ao longo de um processo esboçado em meados do século 18. Creio que a FLB chocou a rotina, preocupada com a ocorrência dos fatos literários, não com a sua articulação e a sua continuidade. A nossa historiografia procurava, por exemplo, estabelecer quando a literatura começou aqui (com a Carta de Caminha, com Bento Teixeira, com os “baianos”?), ou como foi exprimindo cada vez mais a realidade local. Ora, ela não começou em momento nenhum, porque veio pronta de Portugal, ou veio vindo, com todo o peso erudito do Renascimento. Quanto à importância da tradição como força constitutiva, a meu ver, a literatura amadurece quando é possível a um escritor reportar-se, para elaborar a sua linguagem e os seus temas, ao exemplo de escritores precedentes do seu país. Quais os antecessores locais de Gregório de Matos? Não há, é claro. A formação do sistema pressupõe a continuidade, que determina a fisionomia geral da literatura. É o que me parece haver no fim do século 19. Mas sou obrigado a reconhecer que grande parte dos equívocos sobre o meu livro deve ter sido motivada pelo título impróprio. Deveria ser: Arcádia e Romantismo – Momentos Decisivos na Formação do Sistema Literário Brasileiro. Mas isso o editor não aceitaria, nem eu ousaria propor, porque ele já estava sendo compreensivo demais ao aceitar que eu lhe desse, ao cabo de 12 anos, não a pequena história que havia encomendado, mas uma coisa inteiramente diversa. A propósito, lembro que escrevi em 1987 e publiquei em 1997 um resumo, no qual, aí sim, apresento o conjunto, à luz do que denominei sistema literário: Iniciação à Literatura Brasileira.
ZH – Vários intelectuais que lhe foram próximos, como Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda, e mesmo alguém não próximo, como Gilberto Freyre, parecem não ter compreendido a importância de Machado de Assis (Mário preferia Alencar a Machado, Sérgio considerava Machado a “flor da estufa do formalismo” etc). Até que ponto a FLB pode ser vista como uma tentativa de explicar essa importância a tais figuras?
Candido – Isso nunca me passou pela cabeça, mas aproveito para aludir ao significado de Machado de Assis no projeto do meu livro. Ele foi o primeiro escritor verdadeiramente genial de nossa literatura e marcou a superação do nacionalismo, inclusive sob seus aspectos pitorescos, valorizados pelos estrangeiros interessados, sobretudo, em nosso lado exótico (Denis, Monglave, Garrett etc). De maneira muito própria, ele traduziu a nossa realidade humana em valor universal, mas – aqui, entra o meu ponto de vista – isso não quer dizer, como se disse durante muito tempo, que tenha sido uma espécie de bólido caído no Brasil não se sabe por quê. É certo que não foi um produto necessário do que lhe era anterior, mas o fato é que pressupõe as tentativas precedentes, que sublimou e coroou, porque já havia aqui uma tradição em andamento. Ele incorporou e transcendeu os esforços medíocres de (Joaquim Manuel de) Macedo e os mais consistentes de (José de) Alencar, fazendo da ficção narrativa um instrumento refinado e moderno de análise da personalidade e da sociedade, com uma visão, por assim dizer, essencial, que o situa no nível dos grandes ficcionistas europeus do seu tempo. Com ele, personalidade e sociedade deixam de ser na ficção objetos de validade local para se tornarem universais. Daí o valor simbólico que lhe atribuí, como sinal de coroamento do processo de formação do sistema literário.
ZH – A última história da literatura brasileira importante foi a de Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, escrita há mais de três décadas. A que se pode atribuir o silêncio atual na tarefa de historiar a literatura brasileira?
Candido – Hoje, a tarefa de escrever uma história da nossa literatura que ultrapasse a escala de compêndio ou, como se dizia dantes, de bosquejo, dificilmente poderá ser realizada por um só autor. Afrânio Coutinho sentiu isso bem quando recorreu, já nos anos de 1950, a uma equipe variada para realizar o seu importante A Literatura do Brasil, em seis volumes. A experiência pessoal me mostrou que mesmo o estudo mais ou menos aprofundado de apenas dois períodos era tarefa pesada demais quando a empreendi, de 1945 a 1957. Daí tantas lacunas na FLB. De lá para cá, a investigação se desenvolveu de maneira considerável, devido sobretudo aos programas de pós-graduacão, apoiados por bolsas de estudos. Do Amazonas ao Chuí, como se dizia, milhares de estudiosos, com mais ou menos talento, com mais ou menos êxito, vêm realizando um esquadrinhamento que torna difícil a uma só pessoa a tarefa de escrever uma história, mesmo curta. O livro de Alfredo Bosi é notável, e eu mencionaria também o de Luciana Stegagno Picchio. E há outra questão: será que ainda há interesse nesse tipo de livro? Houve modificação profunda nos estudos literários, e o tratamento histórico parece ter perdido o prestígio anterior, o que é uma pena e, sobretudo, uma perda.
ZH – O Modernismo da década de 1920 contribuiu para a afirmação nacionalista no estudo da literatura brasileira. Para críticos estrangeiros, como Erich Auerbach e Edmund Wilson, o nacionalismo não é um problema a ser pensado. A que o senhor atribui essa necessidade do nacionalismo no Brasil? Não parece ter havido influência demasiada do Modernismo na historiografia brasileira?
Candido – O nacionalismo dos românticos foi um instrumento de afirmação nacional e sobretudo patriótica, sendo tentativa de demonstrar que a literatura brasileira era diferente da portuguesa, porque tinha temas e sentimentos próprios. Foi uma espécie de compreensível reforço do processo de independência, processo lento que começa com a vinda de Dom João em 1808 e vai até a última revolta local em 1849. Foi um ponto de vista historicamente compreensível e válido, marcado pelo patriotismo e a euforia. O que se chama de nacionalismo dos modernistas de 1922 me parece outra coisa. Teve cunho crítico e desmistificador, procurando destacar aspectos considerados negativos pela ideologia tradicional: o negro, o imigrante, o pobre, a fala e a cultura popular etc. Sem falar que substituiu a euforia pela ironia, parecendo, às vezes, um antinacionalismo. Tanto assim que talvez o retrato mais significativo do Brasil que surgiu então foi Macunaíma. O que se poderia aproximar do nacionalismo originário é o verde-amarelismo, derivante secundária que deu no que deu. Quanto aos críticos estrangeiros, é bom lembrar que o nacionalismo romântico foi importante porque o Brasil era um país novo, precisava afirmar sua singularidade e sua valia, começando pela beleza da paisagem e chegando ao índio transfigurado. Fenômeno de adolescência sem sentido nos países velhos.
ZH – Aos 50 anos da FLB, que balanço íntimo o senhor faz? Ocorre-lhe alguma crítica que a obra poderia ter recebido e, para surpresa sua, não veio?
Candido – O que me causou estranheza é sobretudo o fato de FLB ter sido tratada como se fosse uma história truncada ou uma teoria geral. Creio que a maioria se limitou a comentar a pertinência do prefácio e da introdução, quando os quadros e critérios que eles propõem sempre me pareceram menos importantes do que as análises, escolhas, filiações, articulações das obras e dos autores. Esta é a matéria do livro, e dela não se fala. Tenho razão em considerar Santa Rita Durão um passadista e Basílio da Gama um inovador? O Uraguai é uma obra-prima mal composta? Houve de fato um “pré-romantismo franco-brasileiro”? A relação do Arcadismo e do Romantismo pode ser considerada de cunho dialético? Sousa Caldas é de fato um crítico ilustrado da tradição clássica? O gênero romance foi uma espécie de descoberta progressiva do país? A obra de (José de) Alencar vale mais pelo realismo do que pelo indianismo? O conto Ierecê a Guaná, de Taunay, pode ser considerado mola inconsciente de Inocência? Esses são alguns exemplos das dezenas de proposições da FLB às quais ninguém deu atenção. Mas não faltou quem dissesse que, para mim, a literatura brasileira começa em 1750. Essa atenção aos pressupostos e esse desinteresse pela realização me fazem pensar que não fui capaz de explicar claramente o que pretendia. Mas como o livro continua a ser editado meio século depois parece que tem sido mais apreciado pelos estudantes, pelos professores e pelos leitores em geral do que pela crítica. Por outro lado, mais recentemente, a FLB vem sendo elevada a alturas que não merece. De fato, alguns o situam ao lado de Casa-Grande & Senzala e Raízes do Brasil como interpretação do Brasil, o que é constrangedor pelo exagero e equivocado como juízo. Não apenas a sua escala é incomparavelmente mais modesta, mas as interpretações pressupõem a abordagem da realidade social diretamente registrada na documentação, sendo por isso efetuada por historiadores, sociólogos, economistas. Ora, a literatura é uma transfiguração da realidade, de maneira que não pode servir de base para as interpretações.
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