Precursora na luta pelos direitos das mulheres no Brasil
Por Raul Milliet Filho
Do blog Deixa Falar
Eneida de Moraes |
“Quem seria aquela mulher de fala dura e enérgica?” – indagou Graciliano Ramos aos amigos e companheiros de prisão nos períodos mais duros do “Estado Novo”.
Prossegue Graciliano: “[...] quem seria a criatura feminina de pulmões tão rijos e garganta macha [...] Foi Valdemar Bessa quem me satisfez a curiosidade: a mulher de voz forte era Eneida. E apertava-se uma dúzia delas na sala 4. Olga Prestes, Nise da Silveira, Elisa Berger, Cármem Ghioldi, Maria Werneck, Rosa Meireles, outras”.[1]
Aquela mulher de olhos verdes e personalidade pulsante era Eneida, nascida em Belém em 1904, batizada como Eneida Vilas Boas Costa; depois do casamento, Eneida de Moraes. Tempos depois, só Eneida.
Essa nossa personagem foi uma mulher incomum, parecia “à frente do seu tempo” – mas era uma importante face de seu tempo. Procurando com lupa em todos os rodapés das conjunturas históricas que viveu, salta aos olhos a pluralidade e a riqueza de sua trajetória, sempre na contracorrente dos preconceitos do mundo e do Brasil. Mãe, militante, artista, jornalista, escritora e carnavalesca. Muitas faces em uma só mulher.
Ainda criança, sai de Belém para estudar interna no colégio Sion, em Petrópolis, Rio de Janeiro, onde é submetida a uma educação disciplinadora e rígida, com imposições próprias dos ditames das escolas mais tradicionais.
Em 1919, perde sua melhor amiga, a mãe Júlia, acometida pela gripe espanhola.
Para conhecer quem foi Eneida de Moraes, é indispensável recuar a sua infância, quando foi obrigada pela avó a vestir azul e branco até completar 15 anos.
Mergulhando em “Promessa em Azul e Branco”, conto de Eneida, transformado em curta-metragem em 2013 pela diretora paraense Zienhe Castro (exibido em mostra paralela no Festival de Cannes), é possível desvendar esta passagem de sua vida por meio da prosa delicada e forte da escritora.
[...] Sim, sim, recordo muito bem; vestia apenas azul claro e branco e, de início, minha infância turbulenta e sadia não prestou atenção ao fato. Um dia, naturalmente, uma outra menina ou talvez a governanta ou – quem sabe? – a professora chamou-me ao conhecimento dessa prisão. Isso naturalmente deve ter acontecido num momento em que nascia a minha vaidade. Senti ou mostraram-me que todas as meninas da minha cidade, de meu país e do mundo usavam roupas de cores diversas e eu não. Por quê? Por quê? Perguntei à minha mãe, sempre pronta a responder às minhas perguntas:
- Foi uma promessa. Seu pai andou mal, muito mal, quase morria e sua avó fez uma promessa a N.S.ª de Nazaré: se ele sarasse, se vivesse, você, que acabara de nascer, vestiria até os quinze anos somente vestidos azul-claros e brancos.
- Até quinze anos? Então quer dizer que vou ficar assim, diferente de todas as meninas até ficar velha?
(Sempre se acha aos seis anos que ter quinze é estar velha). Só depois, muito mais tarde é que aprendi que a vida passa depressa, é curtinha, tão pequenina que nem dá para se viver plenamente todos os momentos [...]
Eneida descreve as pegadas de sua caminhada neste e em outros contos e crônicas. Pouco antes do falecimento de sua mãe, retorna a Belém em 1918. O retorno de Eneida a Belém nos remete obrigatoriamente aos trabalhos de Eunice Ferreira dos Santos, estudiosa da nossa personagem, autora do livro Eneida: memória e militância política e da tese de doutorado “Eneida de Moraes: militância e memória”, pela Faculdade de Letras da UFMG. Assinala Eunice:
“Eneida voltou a Belém em 1918, época de profundas mudanças na sociedade belenense. Mudanças que incluíam, entre outros, o aparecimento de associações literárias, revistas e jornais; o ressurgimento da Academia Paraense de Letras; a fundação da Associação de Imprensa do Pará. É também o ano de circulação de duas importantes revistas locais: Guajarina e A Semana”.[2]
Novos ventos
Os ventos do Modernismo, da Revolução Russa, dos novos rumos das artes plásticas aportavam em Belém. A veia literária de Eneida já brotara desde o tempo do colégio Sion. Em troca de chocolates e outras guloseimas, ela escrevia cartas amorosas pelas colegas. Em paralelo, estabeleceu uma longa e profícua correspondência com sua mãe, desabafando sua inadaptação ao dia a dia do internato.
Outra lembrança nos faz recuar ainda mais na vida de Eneida. Aos sete anos, ganha um concurso de contos infantis. Ela inscrevera secretamente seu conto sobre o lenhador e espantou a todos os familiares quando saiu o resultado. Essa saga precoce lhe valeu um prêmio de vinte mil réis e o seu nome estampado na revista Tico-Tico, promotora do certame.
Eneida |
Chegamos a 1920. Nem bem completara dezessete anos, Eneida entra no jornalismo como secretária e colaboradora eventual da revista A Semana.
Mesmo vocacionada para a literatura, ingressa na faculdade de odontologia com o objetivo de alcançar sua independência financeira e romper com o pátrio poder. Em 1921 já frequentava na capital paraense reuniões da chamada “Academia ao ar livre”, no terraço do Grande Hotel, debatendo com Edgar Proença, Raul Bopp e Paulo de Oliveira, publicando crônicas e poemas.
Casa-se com Genáro Baima de Moraes, tendo pouco depois seus filhos Lea e Octavio Sérgio. Nunca seguiu a carreira de odontologia.
Na revista A Semana, adota o pseudônimo de “Miss Felicidade”, tendo no amigo Peregrino Junior seu maior incentivador.
Em 1925, em uma viagem a passeio ao Rio de Janeiro, conhece um casal de intelectuais e militantes de esquerda, Eugênia e Álvaro Moreyra, iniciando uma amizade que marcaria sua vida para sempre.
Volta para Belém, separa-se do marido, passando a assinar seus escritos apenas como Eneida. Escreve para o jornal Para todos (do Rio de Janeiro), dirigido pelo amigo recente Álvaro Moreyra, iniciando em paralelo uma colaboração na revista Belém Nova.
Ao fazer parte do grupo de colaboradores da Belém Nova, alia-se ao movimento contestatório de cor local e escreve Canto Novo do Brasil, uma crônica de louvação aos poetas que aderiram aos temas da estética modernista. E neste caldeamento doutrinário, Eneida faz eco ao manifesto Flamin-n’-assu lançado por Abeguar Bastos e publicado na Belém Nova. O flamin-n’-assu conclamava poetas e prosadores a formarem uma corrente de pensamento que contestava alguns itens do movimento Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. [3]
Estas divergências, desprovidas de um norte mais claro, não alcançaram voo longo, pouco tempo depois Eneida escreve para a revista Antropofagia, dirigida pelo próprio Oswald, publicando dois poemas nos quais deixa eclodir as cores da temática paraense: Banho de Cheiro e Assahi.
A década de 1920 assistiu a uma multiplicidade de transformações sociais, políticas e culturais, impulsionando Eneida na direção de um caminho sem volta, selando seu destino de revolucionária em diversos campos da sociedade. Foi a década, como destacou Carlos Nelson Coutinho, na qual se acelerou o processo de ocidentalização da sociedade brasileira [4]. A fundação do Partido Comunista do Brasil; a Coluna Prestes; a Semana de Arte Moderna de 1922; a efervescência da cultura popular com a popularização do futebol (a experiência pioneira do Vasco da Gama em 1923, campeão com time de negros e mulatos); e o primeiro desfile de uma Escola de Samba, a Deixa Falar, em 1928, no bairro do Estácio no Rio de Janeiro.
Na segunda metade dos anos 20, nossa personagem ingressa no jornal O Estado do Pará, tribuna de oposição ao governo estadual. Além de escrever críticas literárias, poemas, Eneida publica crônicas com perfil claramente contestatório, trilhando o ofício de cronista militante que vai acompanhá-la em toda a sua vida. Publica em 1929 seu primeiro livro, Terra Verde, uma seleta de poemas amazônicos já divulgados em periódicos diversos.
Em 1930, recebe uma homenagem que lhe cala fundo: um grupo de intelectuais paraenses e amazonenses, sob a liderança de Raimundo de Morais, confere-lhe o prêmio “Muiraquitan” por sua participação nos movimentos literários de seu Estado.
Decide fixar residência no Rio de Janeiro, ingressando logo a seguir (1932) no Partido Comunista Brasileiro. Nesta fase, dedica-se apenas à crônica e ao conto. Seu nome literário de militante política, possivelmente por sugestão de sua amiga Eugênia Moreyra, passa a ser Eneida. Reside algum tempo no mesmo prédio de Manuel Bandeira. Através de artigos em jornais e revistas, participava ativamente dos debates políticos da época.
Eneida tinha na casa de Álvaro e Eugênia Moreyra, em Copacabana, aconchego, alegria e fonte inesgotável para aprofundar seus conhecimentos sobre a arte popular brasileira.
A jovem adentra autores como Marx, Lênin, Engels e Bukarin. Intuitivamente, antes mesmo da obra de Gramsci ser conhecida, Eneida enveredava com seu ativismo incansável nos novos “aparelhos privados de hegemonia”, principalmente aqueles vinculados à cultura popular, sempre iluminada pela convivência com Eugênia e Álvaro.
O casal Moreyra tinha em sua casa um reduto permanente de debates, saraus literários e musicais, bem como abrigo certo e seguro para perseguidos e clandestinos políticos. Não é difícil imaginar a alegria de Eneida ao conhecer Di Cavalcanti, Vinicius de Moraes, Valério Konder, Wilson Baptista, Paulo da Portela, Rubem Braga, dentre tantos outros.
Eneida não para. Tem alma de viajante, espírito guerreiro, uma apaixonada pelas cores e cheiros paraenses, samba e carnaval. Aproxima-se cada vez mais do campo socialista e do marxismo, deixando brotar seu futuro de “intelectual orgânica”, na acepção gramsciana do termo.
Em 1932, Eugênia Moreyra integra a primeira comissão julgadora de desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Por iniciativa do jornal O Mundo Sportivo, de Mário Filho, foram convidados, além de Eugênia, seu marido Álvaro, Orestes Barbosa, Raimundo Magalhães Júnior (pai da carnavalesca Rosa Magalhães), José Lira e Fernando Costa. Segundo relatos que o autor deste artigo ouviu de amigos de Eneida, nossa personagem ficou exultante com a escolha, comparecendo ao desfile e vibrando junto com a amiga Eugênia.
Não nos parece demasiado aprofundar o ambiente da residência do casal Moreyra, que a tantos encantou e que tantos ainda preservam na memória. Recorremos a dois mestres da crônica brasileira para ilustrar a afirmativa. Em 18 de junho de 1948, escrevia Rubem Braga, no Diário de Notícias, crônica intitulada “DONA EUGÊNIA”:
[...] mais tarde fiquei freguês da feijoada aos domingos na casa branca da Rua Xavier da Silveira [...] a mesa era grande, sempre cabia mais um no banco, e os donos da casa eram cordiais. O magro jornalista podia tomar sua cachacinha, comer o bastante para esquecer a miséria de alguma pensão do Catete, pegar um bom livro na estante e fazer o que entendesse: ler versos, ouvir música, conversar ou dormir.
Houve tempos alegres, e fases de sonho e entusiasmo; houve depois tempos negros, ruins, de hospital, de prisão. Em qualquer tempo aquela mulher que espantava o homem da rua com sua franja, seu charuto, suas joias pesadas, sua voz alta e às vezes até um mico – era a mesma. Sempre promovendo alguma coisa, sempre trabalhando duro, ajudando os outros, fazendo arte e política, discutindo, organizando, às vezes brigando, e conseguindo ser no meio de tudo isso, a mais dedicada das mães e das vós [...].
E era espantoso como agia, como se jogava em canseiras, aborrecimentos, dificuldades, para atender a qualquer necessitado [...] E se era difícil ajeitar em algum canto o pobre – então o próprio 99 da Xavier da Silveira se transformava em asilo ou enfermaria [...].
Essa paixão de ajudar os outros é que a levou com Álvaro, para o comunismo. Quem quiser saber de seu devotamento e de sua capacidade de trabalho que pergunte a qualquer camarada de partido; quem quiser saber de sua coragem e de sua dignidade, pergunte aos homens da polícia, que nestes últimos 13 anos de estupidez quase contínua puderam muitas vezes encher aquela casa de aflição, de tristeza, mas nunca de humilhação. [5]
Segundo diversos amigos como João Saldanha, Valério Konder, Otávio Sérgio, filho de Eneida, a casa de número 99 da Rua Xavier da Silveira, em Copacabana, foi o principal ponto de apoio e influência por muitos anos na vida de nossa personagem.
Em 4 de dezembro de 1954, Sérgio Porto publicou na revista Manchete, no espaço “Um episódio por semana”, crônica intitulada “AS AMARGAS, NÃO...”, título do principal livro de Álvaro Moreyra, grande sucesso de público e crítica. Escreveu Sérgio:
Os personagens iam mudando, o mundo também, só Alvinho [Álvaro Moreyra] era o mesmo. Dava igual atenção a todos [...]
[...] Depois Oscar Niemeyer, um jovem arquiteto reformou a casa e a conversa passou a ser na varanda [...]
[...] Quando Di Cavalcanti aparecia, a conversa se animava, tomava-se vinho. No Natal, havia uma ceia grande para quase uma centena de pessoas. Era permitido levar a namorada. Sandro [filho de Álvaro e Eugênia] criou um caso – levou duas. [6]
O popular e o comunismo em Eneida tinham no seu humor importante ponto de apoio. Um humor onde a alegria era extensão de sua própria vida, não era inventado, mas vivido, gostado e praticado. O humor de Eneida pode ser situado na linha do historiador e linguista russo Bakhtin.. Um humor que se transmuta em riso como forma de bater no fígado do discurso oficial, impedindo que o sério se imponha com a prepotência de gala dos dominadores.
As prisões na vida de Eneida
Eneida sempre demonstrou arrojo e disciplina partidária em sua militância comunista, sem perder a alegria e o encantamento pelas manifestações da cultura popular brasileira. Envolveu-se diretamente na Revolução de 1932, residindo provisoriamente na capital paulista. Era uma entusiasta da causa proletária. Abre mão de sua origem de classe em nome de sua nova posição de classe.
Recorremos mais uma vez à palavra precisa de Eunice Ferreira dos Santos, situando o ativismo de Eneida, conduzido com harmonia entre o ofício de cronista e seu o destino de intelectual orgânica [7], numa conjuntura em que o PCB incorporava a proletarização e o obreirismo como orientação a seus quadros, em contraposição ao modo de vida da intelectualidade pequeno-burguesa.
Representam o locus da rememoração do projeto político da cronista militante:
“A primeira vez que li O Manifesto Comunista, de Marx e Engels, fui tomada de um entusiasmo tão grande que cada uma de suas palavras repercutia profundamente dentro de mim”. [...] Para se afinar a este discurso e provar que estava pronta para ser militante, Eneida começa a apagar “os resquícios pequeno-burgueses”, que herdara da mãe: “As belas jóias que tive, perdi em casa de penhores na etapa em que encontrei o meu caminho; justamente no momento do qual me orgulho: o da escolha de um futuro”. [8]
O entorno da Revolução Constitucionalista aquece e impulsiona a jovem militante. O PCB avaliou que São Paulo seria um terreno fértil para a luta operária. Eneida atuava na agitação e propaganda, além de redigir e distribuir panfletos e tabloides.
Conforme registro policial do período, coletado e publicado por Eunice Ferreira dos Santos:
Eneida da Costa de Moraes (sic), conhecida agitadora comunista, possuía em sua residência um custoso mimeógrafo adquirido pelo “Socorro Vermelho Internacional” e a ela entregue para confecção de boletins de propaganda subversivo-comunista. Ali foram encontrados centenas de boletins, já empacotados, prontos para expedição, e muita correspondência do Partido Comunista. [9]
Eneida foi presa, submetida a interrogatórios intermitentes. Fica detida por quatro meses. Quando solta, permaneceu em São Paulo, escondida no interior do estado por alguns meses, retornando ao Rio de Janeiro por orientação da direção partidária. Nesta fase, Eneida passa por grandes dificuldades financeiras, sendo ajudada por amigas como Eugênia Moreyra. Trabalha como operária mas não deixa de lado seu trabalho intelectual, continua a realizar traduções para complementar seu parco orçamento pessoal.
A atividade política é incessante; participa da Aliança Nacional Libertadora e da União Feminina do Brasil. Desmantelada a tentativa de tomada do poder em 1935, fecha-se o cerco em torno das principais lideranças do movimento. Eneida é detida em janeiro de 1936.
As revoluções de 1932 e 1935 lhe custaram cárcere privado, torturas, clandestinidade e exílio. Colecionou prisões. Não desistia. Nunca desistiu. Até 1946, é presa onze vezes.
A prisão em 1936 lhe custou um ano e meio de privação de liberdade, humilhações e um por à prova tudo que amava e sonhava. Detida no “Pavilhão dos Primários”, compartilha o mesmo espaço com outras vinte e quatro mulheres. Lá, em companhia de outras intelectuais, liderou movimentos contra maus tratos e escreveu um livro de contos, Quarteirão, que permaneceu inédito. Um dos contos, “O guarda-chuva”, veio a ser incluído em uma antologia organizada por Graciliano Ramos. A permanência de Eneida na prisão foi profícua em sua literatura. Um de seus escritos mais reconhecidos e elogiados, “Companheiras” [10], foi escrito na Casa de Detenção.
Éramos vinte e cinco mulheres presas políticas numa sala da Casa de Detenção, Pavilhão dos Primários, 1935, 1936, 1937, 1938. Quem já esqueceu o sombrio fascínio do Estado Novo com seus crimes, perseguições, assassinatos, desaparecimentos, torturas?
[...] Vinte e cinco mulheres, vinte e cinco camas, vinte e cinco milhões de problemas. Havia louras, negras, mulatas, de cabelos escuros e claros; de roupas caras e trajes modestos. Datilógrafas, médicas, domésticas, advogadas, mulheres intelectuais e operárias. [...]
[...] Havia as tristes, silenciosas, metidas dentro de si próprias; as vibráteis, sempre prontas ao riso, aproveitando todos os momentos para não se deixarem abater. [...]
Estes dezoito meses na Casa de Detenção sintetizam a vida de Eneida. Uma lente ampliada de todos os seus caminhos com os diversos meandros de percursos sinuosos, um microcosmo que os poetas da imagem e da linguagem perseguem em sua busca constante na tentativa de revelar o universal no particular.
Esta foi Eneida, retratada por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere, ora com tristeza, ora com uma alegria irônica.
Fiquemos apenas com as passagens mais alegres.
Tomei o copo de leite, fui ao consultório, onde o médico me aplicou a injeção de vitamina. Ao regressar, notei que haviam recolhido a mesinha do “crapoud” deixada à porta.
- Vá tomar banho e mudar a roupa, disse-me Eneida. Você não vai receber sua mulher assim vestido em pijama.
O diretor me anunciara na véspera uma visita para aquela manhã. Achava-me com bastante preguiça:
- Minha mulher não é de cerimônia. Já me viu deste jeito muitas vezes.
- Não senhor. Mude a roupa.
- Que impertinência! Vá lá. [11]
Das muitas amigas e companheiras destes tempos de privação de liberdade, uma em particular encantou Eneida, nunca saindo de sua lembrança. Qualquer esboço de texto que envidasse não teria a força das palavras de nossa personagem:
Esta mulher se chamava Elisa Soborovsk Asabo Berger, mulher de Henry Berger [...] Seu corpo guardava ainda as vergastadas do chicote policial. Jogavam-na de prisão em prisão. Ora era metida em cela de prostitutas, ora no meio das ladras ou ébrias. Durante mais de dois meses sofreu humilhações físicas e morais [...]
O governo Getúlio Vargas entregou-a mais tarde à Gestapo. Hitler matou-a. Sabo, para mim, foi uma revelação; jamais conheci mulher tão culta, tão humana, tão valente. Uma mulher tão bela. Nunca a esquecerei.
Na noite em que ela partiu com Olga Benário para o navio que as levaria a Hitler, era inverno e tiritávamos de frio, sofríamos ainda mais, porque tínhamos aprendido a amá-la.
Recordando-a agora, cumpro um dever. Jamais esquecerei também as vinte e cinco mulheres da sala ora fria, ora quente, do Pavilhão dos Primários.
Grandes mulheres; boas companheiras.
Novos tempos
Absolvida em 1937 pelo Tribunal de Segurança Nacional, quando foi solta, Eneida, sempre inquieta, não descansa, volta a ser presa seguidas vezes, perseguida e acusada por redigir material doutrinário e angariar fundos para o Socorro Vermelho do PCB. Logo após sua saída da prisão do Estado Novo, passa a escrever para diversos periódicos alternativos de cunho partidário.
É importante salientar que Eneida de Moraes sempre foi uma militante, não tendo nunca em seu percurso no PCB assumido cargo de direção. Na verdade, sua grande vocação política ainda estaria por se revelar, a de liderança e intelectual orgânica do carnaval, do samba e da cultura popular brasileira de maneira geral. Entendemos, dentro do que Benedict Anderson conceituou ao definir uma Nação como uma comunidade política imaginada, que o samba, o carnaval e o futebol constituem os pilares centrais da autoestima da população brasileira, do imaginário do nosso Estado-Nação [12].
Em 1947, inicia uma colaboração estreita com o jornal Momento Feminino, participando do primeiro congresso de escritores e da fundação da União Brasileira de Escritores.
Eneida aprofunda sua visão de feminismo, desenvolvendo uma série de trabalhos que tiveram início em 1928. À época, publica a crônica “Conversando”, por meio da qual critica as limitações do movimento sufragista, em seu entender incapaz de garantir a igualdade dos gêneros e a libertação mais ampla das mulheres.
Após alguns anos, mais precisamente em 1950, Eneida exila-se na França, fixando residência em Paris. Tempo de reflexão e autocrítica de sua militância política. De sua vida. Tempo de estio. Da França, começa a escrever colunas para Diário Carioca, Diário de Notícias, Senhor, Manchete e outros periódicos. Seu vínculo com o Diário de Notícias dura vinte anos, nele publicando a coluna “Encontro Matinal”. Este vínculo durará até seu falecimento em abril de 1971.
Retornando ao Brasil, embora continue firme em suas convicções, abre seus horizontes para novas frentes de trabalho, cada vez mais direcionados ao campo da arte popular. Os ares parisienses despertam em Eneida um retorno a suas origens paraenses, num caldo de cultura com o carnaval e o samba carioca. Na Europa, aproxima-se do meio literário e artístico, em particular do escritor português Ferreira de Castro e do pintor Antonio Bandeira.
Aqui, paira uma dúvida recorrente. Em sua estada na França, Eneida não terá tido contato com os escritos de Gramsci e Bakhtin, autores de obrasque permeiam problemáticas presentes na práxis de nossa personagem? Permanece a indagação se as teses destes autores brotam em Eneida racionalmente, por meio de leituras ou por associação empírica e reflexão independente, produto de sua criatividade intensa, de seu instinto amazônico.
Seu filho Octávio Sergio da Costa Moraes
Não é desconhecido dos contemporâneos de Eneida o fato de que os rumos políticos de sua vida tiveram para ela um preço alto. Foi obrigada a deixar a família, ex-marido e filhos em Belém para fixar residência no Rio de Janeiro e trilhar sua militância política, pois sabia dos perigos e da clandestinidade que possivelmente iria enfrentar. Dois anos depois, Genáro Baima de Moraes vem para o Rio com os filhos, que só voltam a ter algum tipo de contato com a mãe no Natal de 1955.
Octávio destacou-se como um craque do futebol carioca, com um estilo clássico, de passadas elegantes em campo, passes precisos e chutes certeiros. Conquistou o campeonato de 1948 pelo Botafogo, sendo artilheiro do certame com 21 gols. Seu feito não foi nada fácil, pois substituiu um ídolo do time da Estrela Solitária, Heleno de Freitas. Octávio chegou à seleção brasileira.
Uma característica peculiar da vida carioca reaproximou Octávio de sua mãe. Tinham vários amigos em comum, como, por exemplo, Sandro Moreyra, filho de Álvaro e Eugênia. Além de Sandro, Octávio era frequentador assíduo de vários redutos boêmios que Eneida cultivava, dentre eles o clube Marimbás, no Posto 6, praia de Copacabana. Outros amigos em comum foram Oscar Niemeyer e João Saldanha. Segundo diversos relatos, Eneida assistia sem se fazer notara os jogos disputados pelo filho nos campeonatos da praia de Copacabana, sendo certo que esteve presente no estádio de General Severiano (em Botafogo) para acompanhar a grande final do campeonato de 48, em que o Botafogo derrotou o Vasco da Gama por 3x1.
Seria impensável dissociar a paixão de Eneida de Moraes pela cultura popular de seu encantamento pela atuação do filho em um dos grandes clubes cariocas, sendo o futebol, ao lado do samba, arte e paixão popular.
Octávio formou-se em arquitetura, sendo responsável pelo projeto da concentração da seleção brasileira em Teresópolis.
Livros de Eneida publicados
Na década de 1950 e no início dos anos 60, Eneida publica a maior parte de seus livros: Terra verde (1929); Cão da madrugada (1954); Alguns personagens (1954); Aruanda (1957); História do carnaval carioca (1958); Caminhos da terra: URSS, Tchecoslováquia, China (1959); Copacabana: história dos subúrbios (1959); Romancistas também personagens (1962); Banho de cheiro (1962); Boa noite, Professor (1965); Molière narrado para crianças (1965).
Livros inéditos
O quarteirão; Paris e outras histórias; Sujinho de terra.
O Baile do Pierrô e o Salgueiro
A partir da segunda metade da década de 50, Eneida se aproxima cada vez mais do cotidiano do carnaval carioca. Torna-se uma salgueirense de coração, admirando as inovações de Fernando Pamplona, e idealiza o Baile do Pierrô.
O primeiro baile dos pierrôs foi no “Aubon gourmet”, em 1958, sendo um sucesso espetacular frequentado principalmente por escritores e artistas. Quem narra é a própria Eneida em uma de suas várias crônicas: “Alugávamos uma boate, fazíamos a quota de quanto cabia a cada um e durante três carnavais nosso baile foi de abafar”. Depois do primeiro, o segundo também no “Aubon gourmet”, idem o terceiro até 1967. O último foi na “Sucata”, em 1968.
Em 1965, o Salgueiro realiza seu carnaval baseando o enredo no livro de Eneida História do carnaval carioca, conquistando o primeiro lugar no desfile. Eneida desfila exatamente na ala dos pierrôs.
Neste mesmo ano, foi criada sob a liderança de Albino Pinheiro, com apoio de vários artistas, intelectuais e jornalistas, a Banda de Ipanema, com duplo intuito: retomar o carnaval de rua no Rio de Janeiro e realizar, dentro dos limites do possível, uma crítica bem-humorada à ditadura militar. Em 1967, Eneida desfila como a rainha da Banda de Ipanema, lugar que no ano anterior fora de Leila Diniz.
Nos anos subsequentes, até seu falecimento em 1971, a saúde de Eneida se fragiliza progressivamente.
Em 1973, a Acadêmicos do Salgueiro promove Joãozinho Trinta e Maria Augusta ao posto de carnavalescos da escola. A dupla de carnavalescos desenvolve o enredo “Eneida, amor e Fantasia”. O Salgueiro fica em terceiro lugar no desfile. O samba-enredo de autoria de Geraldo Babão fala por si:
Eneida, Amor e Fantasia
O povo sambando,
Cantando a melodia,
Salgueiro traz o tema
Eneida, amor e fantasia
A mulher que veio do Norte
Para o Rio de Janeiro
Com idéia genial,
Em busca da glória
Na literatura nacional.
Expoente jornalista,
Suas crônicas são imortais,
Foi amiga dos sambistas,
Fatos que não esquecemos jamais (coração).
Coração puro e nobre, foi benquista
Entre ricos e pobres,
É famoso o seu Baile de Pierrôs,
Onde a Colombina procura o seu amor
A escritora de lirismo invulgar
Enriqueceu o folclore nacional,
Hoje o mundo a conhece
Através da história do carnaval.
É açaí,
É tacacá,
Coisa gostosa lá do Pará.
Em 1990, o carnavalesco Eduardo Gonçalves, da Paraíso do Tuiuti, apresenta, pelo Grupo A do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, o enredo “Eneida, o pierrô está de volta”, com o samba-enredo de Aldir, Parim, Jorge Neguinho e Fernando J..
É carnaval, é alegria
É manifestação popular
A emoção que alegra a vida
Folclore e fantasia
O povo quer cantar
Eneida
O seu amor foi carnaval
E na arte e na cultura
Marco da literatura foi sem igual
Deslumbrando as escolas de samba
Raízes de gente bamba
Que faz a passarela delirar
Vem burrinhas, Zé pequeno
Pirata da perna de pau
Arlequins, bloco de sujo
A euforia é geral
Desfilam luxuosas fantasias
No Baile do Municipal
O corso pelas ruas da cidade
Ranchos e sociedades tradicionais
Eu sou o seu pierrô
Tu és minha colombina
No salão todo enfeitado
De confete e serpentina
Pierrôs e colombinas, personagens do carnaval, estavam presentes em praticamente todas as alas do desfile da Paraíso do Tuiuti.
Nota do autor: Escrevi este texto para um livro que está prestes a ser lançado. "Mulheres intérpretes do Brasil". ORG. Marcos Silva.
Raul Milliet Filho é Historiador, criador e editor responsável deste blog, mestre em História Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como professor, pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas sociais, idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva para crianças e jovens. Autor de “Vida que segue: João Saldanha e as copas de 1966 e 1970” e do artigo “Eric Hobsbawm e o futebol”, dentre outros. Dirigiu os documentários: “Quem não faz, leva: as máximas e expressões do futebol brasileiro” e “A mulher no esporte brasileiro”.
FONTE:Deixa Falar
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