Por Anita Leocadia Prestes**
Impossível referir-se ao golpe civil-militar de 1º de abril de 1964, sem uma referência ao papel do governo João Goulart, então deposto. Não tenho dúvida em afirmar que foi o presidente mais progressista que tivemos no Brasil. Foi o único que, embora um representante da burguesia, tomou medidas concretas no caminho das Reformas de Base – a principal demanda das forças progressistas da época. Isso apesar da resistência do grande capital internacionalizado e dos latifundiários, que dispunham de maioria no Congresso Nacional. Jango chegou a assinar, em janeiro de 1964, o decreto que limitava a remessa de lucros das empresas imperialistas sediadas no Brasil. Ao mesmo tempo, atendeu a numerosas reivindicações dos trabalhadores. Segundo pesquisa do Ibope, em março de 64, ele mantinha alta porcentagem de apoio da opinião pública das grandes cidades: com 45% de “ótimo” e “bom” na avaliação do governo e 49% das intenções de voto para 1965.
As medidas adotadas por Jango, apesar de inegáveis vacilações de sua parte, enfureceram o grande capital nacional e, em particular, o imperialismo, que partiram para a conspiração altamente financiada por eles visando a deposição do presidente. Foram criados os famosos institutos IPES e IBAD, profundamente estudados por René Dreyfuss e a grande imprensa assim como a alta hierarquia da Igreja católica se mobilizaram em apoio à essa conspiração, cujos principais executores foram as Forças Armadas. Tudo isso hoje está bem estudado e documentos então secretos dos governos dos EUA são hoje conhecidos o confirmam amplamente.
Entretanto, por que não houve resistência popular ao golpe? Penso ser esta uma questão muito atual. Na realidade, Jango ficou isolado. A direita nacional e internacional jogou todas as cartas na sua deposição investindo pesado nesse sentido, inclusive através da campanha anticomunista e anti-Jango na quase totalidade dos meios de comunicação, regiamente por ela financiados. Por outro lado as esquerdas, o movimento sindical e as entidades populares não foram capazes de organizar, mobilizar e conscientizar amplas massas de trabalhadores na defesa dos seus interesses e, no caso, das Reformas de Base e do governo Jango. Faltou, por parte das esquerdas, inclusive do PCB, do qual eu fazia parte à época, uma avaliação correta dessa necessidade de organização popular. Falava-se e escrevia-se muito a respeito, mas na realidade tanto o movimento sindical, quanto o estudantil e também outras lideranças estavam afastados das massas. Tínhamos o tradicional cupulismo profundamente arraigado nas esquerdas brasileiras.
Faltou a Jango apoio popular para resistir ao golpe. A greve geral convocada pelos sindicatos fracassou. É a verdade que devemos conhecer.
Hoje essa experiência, a meu ver, nos ensina que urge que as lideranças dos movimentos populares que irão surgindo diante das terríveis condições que estão sendo impostas aos trabalhadores se lembrem desses ensinamentos. Sem organização, mobilização e conscientização de amplos setores populares o fascismo não será derrotado. No máximo, será alcançado algum pacto entre as elites dominantes, como sempre, desfavorável aos trabalhadores e à grande maioria da nação.
* Análise de Anita Prestes sobre o golpe de 1964, apresentada no Caminhando Jornal Tv 48. Disponível no canal Caminhando Jornal Tv, no YouTube, a partir de 22min e 36 seg. Link: https://www.youtube.com/watch?v=A_LRSIA9J2s.
** Anita Leocadia Prestes nasceu em 27 de novembro de 1936 na prisão de mulheres de Barnimstrasse, em Berlim, na Alemanha nazista, filha dos revolucionários comunistas Luiz Carlos Prestes, brasileiro, e Olga Benario Prestes, alemã. Autora de vasta obra sobre a atuação política de Luiz Carlos Prestes e a história do comunismo no Brasil, é doutora em história social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Os mais recentes livros foram publicados pela Boitempo: "Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro" (2015), "Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo" (2017) e "Viver é tomar partido: memórias" (2019).
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