quarta-feira, 27 de maio de 2020

A história do antimaquiavelismo: um gênero da literatura política.

Machiavelli demoníaco

Por Alvaro Bianchi


Maquiavélico! Como o nome de um modesto secretário florentino, amante da liberdade, do povo e da República, se transformou em adjetivo que denota um comportamento pérfido, falso e malévolo? Quantos personagens há na obra de Maquiavel que poderiam ter ocupado esse indesejado lugar, o de dar nome ao mal: os cruéis Agátocles, Oliverotto de Fermo e Ramiro de Orco; o implacável César Bórgia; o obstinado Giuliano della Rovere. É verdade que a fama de Nicolau Maquiavel em Florença não era das melhores, e quando ocupava o posto de segundo secretário foi denunciado duas vezes: uma por práticas sexuais condenadas e outra por apropriar-se de documento oficial. Mas certamente não merecia esse adjetivo.

Talvez seja essa fama e as inimizades que angariou em Florença, ao lado daquela “grande e continua malignità di fortuna” da qual sempre reclamou, que fizeram a publicação de suas obras principais demorar tanto – O príncipe, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e História de Florença. Foi apenas em outubro de 1531, quatro anos depois da morte do autor, que o tipógrafo Antonio Blado, de Roma, publicou os Discursos. O príncipe saiu alguns meses mais tarde, em janeiro de 1532, e as Histórias em março. Pouco depois apareceram em Lyon, na França, as Óperas toscanas de seu ex-amigo, o poeta Luigi Alamanni, nas quais é feita referência jocosa a um “áureo livro moral”, que intérpretes julgaram ser O príncipe.

Alamanni, exilado na França depois de ter participado de uma fracassada conjuração para assassinar Giulio de Médici, nunca perdoou Nicolau por ter tentado se reaproximar dos senhores de Florença. Para alguns, o poeta foi o autor do primeiro documento do antimaquiavelismo. Inaugurou assim um gênero da literatura política. Outros o seguiram, como o cardeal Reginald Pole, que ouviu Thomas Cromwell, chanceler de Henrique VIII, referir-se ao florentino e mais tarde teve a oportunidade de lê-lo, durante uma estadia na Itália. Em um texto redigido em 1539, mas publicado apenas dois séculos depois, Pole definiu Maquiavel como “inimigo do gênero humano” e O príncipe como um livro “ditado pelo diabo”. Os ataques contra ele se tornam mais frequentes e intensos, porém, a partir da segunda metade do século 16, e seu nome passou a integrar o Index de livros e autores censurados ou proibidos já em 1557, quando foi incluído na categoria de “culpado”. Também entrou no Index librorum prohibitorum a Summo Pontifice, publicado em 1564, durante a última sessão do Concílio de Trento, quando o florentino passou a fazer parte da categoria “primeira classe”, composta de autores que tiveram não apenas as obras condenadas, mas também o próprio nome.

Embora a antimachiavellistica seja vasta e tenha se espraiado pelos séculos, a imagem esculpida por Pole era também de outros tantos, e o secretário florentino passou a ser visto como uma figura demoníaca. Para o huguenote Innocent Gentillet, que publicou, em 1579 um discurso contra Maquiavel, tratava-se de um defensor das tiranias e responsável por ter ensinado aos franceses “ateísmo, sodomia, perfídia, crueldade, usura e outros vícios semelhantes”. O livro de Gentillet circulou por toda a Europa e foi rapidamente traduzido em latim, inglês, holandês e alemão. Ao todo foram 24 edições nos 75 anos após a primeira publicação. Outros livros se seguiram e nas últimas décadas do século Maquiavel se tornou um personagem conhecido de muitos. Sinal dessa difusão era sua presença no teatro elisabetano, frequentemente como a própria encarnação do demônio, o qual muitas vezes recebia o apelido de Old Nick. Marlowe colocou o próprio florentino na abertura de O judeu de Malta, fê-lo dizer “para alguns, talvez meu nome seja odioso”, e Shakespeare se referiu em Henrique VI ao “assassino Machiavel”.

A história da antimachiavellistica procede sem interrupção pelos séculos, mas os argumentos principais já estavam todos postos no 16. Os contextos são outros e os atores políticos muito diferentes, mas a imagem demoníaca perdura e resiste até mesmo em plenos séculos 20 e 21. É bastante conhecido o comentário de Leo Strauss, em 1958, o qual considerava a doutrina de Maquiavel  “diabólica e ele próprio é um diabo”. Ideia semelhante aparece em livreco de Olavo de Carvalho, publicado em 2011, no qual o objetivo de Maquiavel é definido como a construção de um “Estado pós-cristão ou anticristão”, o que exigia “abolir a Fortuna em nome da Virtù, subjugar Deus a uma vontade humana que escolheu livremente o Inferno”. Conclui o astrólogo afirmando: “Se isso não é diabolismo em estado puro […], então é preciso rever a definição de diabo”.

Como compreender essa interpretação teológica – escatológica, às vezes – e sua persistência? Fosse ela meramente ficcional não poderia ter durado tanto. Mesmo a mentira precisa da verdade para sobreviver. Benedetto Croce pode ajudar a resolver esse enigma. Em um pequeno texto, publicado em 1925, o qual se tornaria peça-chave da machiavellistica contemporânea, o crítico abrucês anunciou: “Maquiavel descobriu a necessidade e a autonomia da política, que está além – ou melhor, aquém – do bem e do mal moral, que tem leis contra as quais é inútil rebelar-se, que não pode ser exorcizada nem expulsa do mundo com água benta”.



Essa revolução copernicana, essa descoberta da autonomia da política levada a cabo por Maquiavel, era interpretada por Croce no âmbito de sua filosofia dos distintos, a qual distinguia o espírito teórico do espírito prático, produtor de ações e não de teorias, e por sua vez distinguia neste último as dimensões da Economia ou da Política, referente ao útil, e da Ética, própria do bem. Croce esclarecia que o conceito de útil não se confundiria com o mero egoísmo. Por essa razão, embora Economia e Política fossem atividades amorais, não era imorais. A relação da Economia e da Política com a Ética não era, assim, de antagonismo, e sim de distinção.

A invenção de Maquiavel, segundo Croce, era em primeiro lugar uma descoberta filosófica. O que havia de verdadeiramente revolucionário na obra do secretário florentino era sua filosofia, e não naquelas máximas da política prática que fizeram sua fama. Embora poderosa, a interpretação croceana era falha. Croce negava ao florentino uma moral que lhe era imanente. Não é possível deixar de notar uma moral laica, terrena, na obra de Maquiavel, na qual a resistência do povo à opressão é a própria medida da política. É nessa chave que ganha sentido a crítica do florentino à Igreja, essa colossal força heterônoma que subjugava as cidades e condenava o povo à dominação. Naqueles dois humores que segundo Maquiavel sempre habitam as cidades – o povo que “não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes” e “os grandes [que] desejam comandar e oprimir o povo” –, a Igreja sempre esteve do lado dos grandes, enquanto o florentino sempre depositou sua esperança no povo. Apenas este poderia assegurar a liberdade da cidade.

Por um lado, a relação de Maquiavel com a moral cristã não era de mera indiferença, como sugere Croce. O pensamento do florentino assumia uma atitude hostil e fortemente antagônica a essa moral. Têm razão aqueles que desde o século 16 o acusam de violar preceitos caros ao cristianismo. Nessa crítica, é bom lembrar, católicos como Pole e protestantes como Gentillet sempre concordaram. Mas o princípio cristão mais importante que Maquiavel violou foi o da autoridade – e, em primeiro lugar, a autoridade da Igreja, vista como uma força corrupta e dissolvente, causa das misérias e sofrimentos do povo da península Itálica. A autonomia da política era não apenas um princípio heurístico, um “cânone de interpretação”, como diria Croce. Era, também, um desafio político ao poder da Igreja.

É por essa razão que o antimaquiavelismo foi predominantemente conservador ou reacionário. Maquiavel não ofendeu muitas almas sensíveis e piedosas que consideravam aberrante seu realismo político. As pessoas que se sentiram ofendidas eram, em sua maioria, representantes dos poderes políticos e eclesiásticos dominantes. Se tem algo que elas nunca perdoaram em Maquiavel não foi aquela máxima que recomendava ao príncipe ser temido, ou a outra que dizia para usar bem a crueldade, ou ainda aquela que prescrevia realizar as injúrias “todas juntas” e os benefícios “pouco a pouco”. A Igreja da Inquisição não precisava do florentino para saber disso, e os jesuítas, seus adversários ferrenhos, não estavam muito dispostos à autoacusação. O que nunca perdoaram em Maquiavel foi a afirmação de uma moralidade laica, mundana e feroz, que via no povo o guardião da liberdade e nos grandes a fonte da dominação e da opressão. Essa é a verdade do antimaquiavelismo e essa é a lição do secretário florentino para nosso presente, para um tempo no qual a liberdade se encontra sob ameaça. E é por isso que para os grandes ele continuará sendo sempre demoníaco.

Alvaro Bianchi é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor livre-docente da mesma instituição. Coordena o Laboratório de Pensamento Político (Pepol/Unicamp) e dirige o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas  da Unicamp.


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