Por Anita
Leocadia Prestes, historiadora
Diante do fenômeno “Bolsonaro” que se
explicitou com as eleições deste ano, parte das “esquerdas” se depara com a seguinte
questão: podemos afirmar que existe uma ameaça fascista em nosso país? Seria
correto identificar esse fenômeno com o fascismo?
Enquanto alguns empregam o termo fascismo como sinônimo de autoritarismo,
identificando qualquer forma de regime autoritário com essa designação, outros
a associam exclusivamente a regimes que se estabeleceram na Europa, durante os
anos de 1920/1930, em especial os que contaram com as lideranças de Hitler na
Alemanha e Mussolini na Itália.
Entre os últimos é comum recorrer à
definição, proposta, em 1935, por Jorge Dimitrov, conhecido dirigente da
Internacional Comunista, para afirmar que o avanço atual da direita no Brasil
não deve ser associado ao fascismo. Segundo Dimitrov, o fascismo no poder se
caracteriza por ser “a ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários,
mais chovinistas e mais imperialistas do capital financeiro”[1]. Os críticos da adoção
dessa definição para a situação que vem se configurando atualmente em nosso
país não só questionam sua aplicação à nossa realidade, como, para justificar
sua rejeição, recorrem a outros traços do fascismo europeu dos anos que
antecederam a Segunda Guerra Mundial - a existência de partidos de massa, o
expansionismo militar, o racismo declarado, etc. -, os quais não estariam
presentes no Brasil.
Cabe lembrar que Jorge Dimitrov
escrevera também que é tarefa do fascismo “assegurar no sentido político o
êxito da ofensiva do capital, da exploração e do saque das massas populares
pela minoria capitalista e garantir a unidade da dominação dessa minoria sobre
a maioria popular” [2].
Para o dirigente comunista, o recurso ao fascismo se explica pela necessidade
do capitalismo assegurar sua sobrevivência e sua continuidade em momentos de
crise – algo que, tudo indica, está acontecendo no Brasil de hoje.
Ao buscar explicação para os regimes
autoritários que se estabeleceram na América Latina durante os anos 1960/1970,
o dirigente comunista de El Salvador, Schafik Handal, deu valiosa contribuição
ao lembrar que “o fascismo acima de tudo é uma contrarrevolução”, afirmação que
tanto pode ser entendida no sentido de salvar
o capitalismo dos efeitos da Revolução Cubana, como afirma esse dirigente
referindo-se ao período citado[3], quanto no sentido de salvar o capitalismo da grave crise que
atravessamos agora no Brasil e em nosso continente e, em particular, do perigo potencial constituído pela
possibilidade de revolta das massas frente às sérias consequências dessa crise,
e das políticas adotadas pelos governos burgueses, para suas vidas e seu
futuro.
Shafik Handal destacava o papel
modernizador do fascismo na América Latina, em comparação com a função dos
“regimes tradicionais”, “conservadora,
visando favorecer as oligarquias latifundiárias e burguesas”, acrescentando:
a
função do fascismo é salvar o
capitalismo dependente frente à revolução
e modernizá-lo, favorecendo os consórcios transnacionais e os burgueses
locais seus associados, salvar e
consolidar a hegemonia política e militar do imperialismo ianque, ameaçada de
colapso em nossa região.[4]
Pode-se argumentar que hoje não
existe no Brasil a ameaça de uma revolução. Entretanto, a experiência histórica
mundial revela que as classes dominantes têm sempre preocupação com a
possibilidade de uma insurgência popular e tratam de adotar medidas preventivas para salvar o regime
capitalista. O fascismo é uma arma à qual os setores mais reacionários do
capital financeiro recorrem para assegurar seus interesses. O panorama europeu
atual é revelador nesse sentido.
Não seria atitude coerente com uma
análise marxista encaixar dogmaticamente a situação de hoje em esquemas
elaborados para a Europa de oitenta anos atrás. Trata-se de captar a essência
do fenômeno fascista para alcançar sucesso em possíveis analogias, que
contribuam para o esclarecimento do momento atual.
Uma
eventual vitória eleitoral de Jair Bolsonaro significaria a opção pelo fascismo
de setores da extrema direita do capital financeiro internacionalizado na busca
de uma saída anti-povo para a grave crise que afeta o Brasil nos últimos anos. Certamente,
não é por acaso que o economista Paulo Guedes, seu principal assessor e
provável ministro da Fazenda do seu governo, é um dos fundadores do Instituto
Millenium (Imil), entidade que sabidamente defende e difunde os valores e os
interesses do grande capital.[5]
Se o grande capital optou na Alemanha, em
1933, pela entrega do poder a Hitler, o grande capital internacionalizado pode
hoje, no Brasil, sem outra opção, entregar o poder a Bolsonaro, da mesma forma
que o fez com Hitler, através de processos eleitorais, reveladores da grande
insatisfação de numerosos setores sociais. Num país como o Brasil, onde
inexiste tradição partidária, isso pode acontecer sem partido fascista, sem
uniformes fascistas e sem a mística fascista dos anos 1930, sem expansionismo
militar declarado e sem racismo explicito.
As formas são outras, mais elaboradas, com a utilização em larga escala
dos meios fornecidos pela informática, mantendo sempre o discurso anticomunista
e propagando a violência contra todos que se opõem aos seus objetivos,
inclusive por meio da ação de hordas fascistas. Vale lembrar como exemplo desse
emprego “moderno” da informática a colaboração com a campanha de Bolsonaro de Steve Bannon,
estrategista de Donald Trump e
especialista em desinformação.[6]
Se
a eleição de Bolsonaro representa uma ameaça fascista, o que pode ser feito
para impedi-la?
É
necessário ter presente que a atual campanha eleitoral adquiriu características
especiais: não estamos diante de uma campanha “normal”; ela acontece no bojo de
grave crise econômica, social e política, marcada pela presença de um altíssimo
índice de desemprego, de crescente deterioração das condições de vida de
milhões de brasileiros, de acentuada insatisfação popular com a chamada “classe
política” tanto pela sua inoperância quanto pelas denúncias de corrupção –
expediente utilizado pela direita contra o PT, mas que contribuiu para o
desgaste da maior parte dos partidos e dos políticos.
Frente
a tal situação, existe o risco de as forças de esquerda voltarem a incorrer nos
erros “ultraesquerdistas” condenados por Lenin em seu tempo, apesar de suas intenções,
devido ao dogmatismo livresco que, em vez de acelerar o processo
revolucionário, contribui para seu retrocesso. Como escreve Atílio Boron,
cientista político marxista e comunista,
(...)
a derrota de Bolsonaro é um imperativo categórico para as forças genuína e
realisticamente empenhadas na construção de uma alternativa anticapistalista.
Uma vez consumada, as forças de esquerda deverão aprofundar seus esforços para,
afinal, construir uma maioria política e social - coisa que atualmente está
muito atrasada – que impulsione a necessária radicalização de um eventual
governo do PT e seus aliados. Sei que toda esta argumentação pode soar como
inaceitável, ou o “menos pior”, para alguns setores do trotskismo, do
anarquismo pós-moderno e do autonomismo da antipolítica. Mas, como dizia
Gramsci, só a verdade é revolucionária, e na hora da eleição essa verdade se
imporá com a inexorabilidade da lei da gravidade para impulsionar as forças
populares do Brasil a impedir o triunfo de um fascista. Salvo, está claro, se
os companheiros do gigante sul-americano me convencerem de que estão em
condições de conquistar o poder de Estado e impor o socialismo pela via
insurrecional, deixando de lado as manobras e maquinações da democracia
burguesa. Seria uma grande notícia, mas falando com a franqueza que deve
caracterizar o diálogo entre revolucionários, creio que essa alternativa é, no
momento, absolutamente ilusória e fantasiosa. E, além disso, paralisante e
suicida.[7]
No momento atual, caracterizado pela
inexistência no país de um movimento popular organizado – consequência em
grande medida das políticas adotadas pelos governos do PT -, diante da ameaça
fascista, a única alternativa possível para as esquerdas é o voto em Fernando Haddad,
no esforço conjunto com outras forças sociais e políticas para derrotar a
candidatura fascista de Jair Bolsonaro. Neste momento, trata-se do embate entre
fascismo e democracia burguesa, cuja defesa era assumida por V. I. Lenin com a
argumentação de que tal democracia, apesar das grandes limitações que impõe aos
trabalhadores, apesar de ser uma garantia para os interesses burgueses, sempre
é melhor para o avanço da organização popular que os regimes autoritários e,
certamente, que o fascismo – último recurso do capital, quando a democracia
burguesa deixa de ser uma garantia para seus lucros. V. I. Lenin escrevia em
1919:
(...) A democracia
burguesa representa historicamente um avanço enorme em relação ao czarismo, à
autocracia, à monarquia e a todas as sobrevivências do feudalismo. Certamente,
devemos utilizá-la e então vamos levantar a questão de maneira que, enquanto
não se colocar na ordem do dia a luta da classe operária por todo o poder, a
utilização de formas de democracia burguesa é obrigatória para nós.[8]
Seria
um erro fatal, para as esquerdas e as forças populares, embarcar na concepção
do “quanto pior, melhor”, tendo como consequência um gravíssimo retrocesso de
todo o movimento popular no Brasil e na América Latina.
Rio
de Janeiro, outubro de 2018.
[1]
Jorge Dimitrov, “La ofensiva
del fascismo y las tareas de la Internacional Comunista en la lucha por la
unidad de la classe obrera, contra el fascismo”, em Jorge Dimitrov, El frente único y popular (Sofia
[Bulgária], Sofia-Press, 1969), p. 117. (Tradução do espanhol desta autora)
[2]
Jorge Dimitrov, “El frente
único y la reaccion burguesa”, em El frente único y popular, cit., p. 11.
(Tradução do espanhol desta autora).
[3]
Shafik Handal, “El fascismo
en América Latina”, em América Latina
(Moscou, Progreso, 1976), n. 4, p. 121-46; tradução desta autora.
[4] Idem; grifos do autor.
[5] Ver, por exemplo, https://www.infomoney.com.br/mercados/politica/noticia/7109305/quem-e-paulo-guedes-o-ministro-da-fazenda-se-bolsonaro-for-presidente, consulta realizada em 9 out. 2018.
[6] Ver, por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=B8u64kzj4FQ,
consulta realizada em 9 out. 2018.
[7] Atílio
A. Boron, “¿TIENE CURA EL "IZQUIERDISMO”?”, em http://www.atilioboron.com.ar/2018/09/tiene-cura-el-izquierdismo.html
, consultado em 12 out. 2018..; tradução
da autora.
[8] V. I. Lenin, “Informe no II
Congresso dos Sindicatos de toda a Rússia” (1919), em Obras Completas (em russo), t. 37 (Moscou, Ed. de Literatura
Politica, 1974), p. 438; tradução da autora.
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