Documentados analisados por Anita Leocadia Prestes, filha de Olga, foram abertos em 2015
POR LEONARDO CAZES
O Globo
O último retrato de Olga Benario Prestes feito pela Gestapo - Arquivo da Gestapo/Divulgação |
RIO - Uma pasta, oito dossiês e cerca de 2 mil folhas dedicadas apenas a uma pessoa: Olga Benario Prestes. O acervo produzido pela Gestapo sobre a militante comunista e judia, chamado pela polícia secreta nazista de “Processo Benario”, é uma coleção impressionante. Inclui relatórios, depoimentos, fotografias e cartas enviadas e recebidas para Olga, desde sua saída do Brasil, em 1936, até sua morte na câmara de gás no campo de concentração de Ravensbrück, em 1942.
Os documentos digitalizados começaram a ser disponibilizados na internet em abril de 2015 e deram origem a “Olga Benario Prestes — Uma comunista nos arquivos da Gestapo” (Boitempo Editorial), escrito pela historiadora Anita Leocadia Prestes, filha de Olga e Luiz Carlos Prestes e nascida no cárcere alemão.
— Os documentos revelam a truculência dos nazistas, que se dispunham a recorrer a todo tipo de violência para arrancar de suas vítimas as informações que eram de interesse da Gestapo e das autoridades do III Reich — afirma Anita, em entrevista ao GLOBO por e-mail.
Os Arquivos da Gestapo foram apreendidos pelo exército soviético após a derrota da Alemanha nazista na Segunda Guerra, em 1945, e levados para Moscou. Na década de 1960, o conjunto foi transferido para o Arquivo Central do Ministério da Defesa da antiga União Soviética e só foi tornado público em 2015, 70 anos após o fim do conflito. A perspectiva é que toda documentação seja digitalizada até 2018, numa parceria entre o Instituto Histórico Alemão em Moscou e a Fundação Max Weber.
— Que eu saiba, em geral, não se tinha conhecimento da existência desses Arquivos da Gestapo — conta Anita. — Há dois anos os arquivos foram disponibilizados, resultado de um acordo entre a Rússia e a Alemanha, que decidiram digitalizá-los para torná-los públicos. Ao tomar conhecimento do seu conteúdo, providenciei a tradução dos documentos para poder trabalhar com eles.
Cartaz da Campanha Prestes que pedia a libertação de Olga e Anita - Arquivo Pessoal de Anita Prestes/Divulgação |
Entre os documentos do acervo, tornados públicos, está o passaporte emitido pelo consulado alemão para que Olga viajasse, grávida, para o país, em setembro de 1936. Desde sua prisão, em abril daquele ano, a militante recusou-se a fornecer seu nome verdadeiro, declarou que se chamava Maria Prestes e era casada com Luiz Carlos Prestes. Para identificá-la, Filinto Müller, chefe de polícia do governo de Getúlio Vargas, acionou o Itamaraty para conseguir, com a Gestapo, a confirmação do nome de Olga, cuja ficha na polícia secreta foi aberta na década de 1920, por causa de suas atividades consideradas subversivas. A França foi outro país que remeteu informações sobre Olga, a partir das impressões digitais fornecidas pelo governo brasileiro.
Os registros mostram que a comunicação de Olga com Prestes e a família sofreu diversas formas de censura. Após o nascimento de Anita, ela pediu às autoridades carcerárias que enviassem um telegrama ao Brasil para avisar o seu marido, preso no Brasil. Depois, escreveu uma carta com a notícia. As duas mensagens jamais deixaram a Alemanha e a notícia só se espalhou meses depois. Os documentos mostram que Olga também tentou registrar a criança como brasileira na embaixada do país em Berlim, mas seu desejo foi negado pelos governos da Alemanha e do Brasil.
CAMPANHA PRESTES
A relação do regime nazista com a bebê Anita foi marcada por contradições. Por um lado, os oficiais alemães permitiam que Olga recebesse os alimentos enviados por Leocádia e Lygia, mãe e irmã de Prestes, respectivamente. Manter a criança saudável era uma preocupação constante. Por outro lado, todas as tentativas de visita por parte de Leocádia e Lygia foram negadas. Olga também só foi avisada que seria separada da filha, entregue à família do marido, horas antes.
Para Anita, a pressão exercida pela Campanha Prestes, liderada por Leocádia, foi fundamental para garantir um tratamento digno a ela, algo que não ocorreu com os filhos de outras prisioneiras. A sua avó criou uma verdadeira rede internacional de apoio e chegou a viajar à Alemanha com um grupo de senhoras inglesas para tentar interceder pela libertação, mas sem sucesso. Postura oposta à da família de Olga, que vivia em Munique e não se interessou pela sua situação, recusando-se inclusive a receber a comitiva de Leocádia.
Documento de identificação de Anita, cedido pela Gestapo para ela ser entregue à avó, Leocádia Prestes - Arquivo da Gestapo/Divulgação |
— A pressão exercida sobre as autoridades do III Reich pela Campanha Prestes levou a Gestapo a ter a preocupação de entregar a filha de Olga à avó em boas condições físicas. Por isso recebi um tratamento privilegiado em relação aos filhos de outras prisioneiras. Minha salvação se deveu à solidariedade internacional; razão por que me considero filha da solidariedade internacional — diz Anita.
As cartas trocadas por Olga dão uma dimensão humana à história. Olga, por exemplo, não sabia que sua mãe tinha se recusado a receber a comitiva de Leocádia e chegou a escrever para ela na esperança de obter ajuda. As cartas dirigidas a Prestes mostram um casal apaixonado, apesar da distância e da prisão de ambos. Após Anita ser entregue à avó, foi através das cartas que Olga recebia notícias do desenvolvimento da filha e fotografias. A historiadora diz que as cartas descobertas agora confirmam o que o restante da correspondência, publicada no livro “Anos tormentosos” (Paz e Terra), já apontava.
— Essas cartas atestam o grande amor existente entre meus pais. Conforme foi apontado pelo professor Robert Cohen (pesquisador alemão e autor de livro sobre a correspondência), embora a convivência entre eles tenha durado pouco mais de um ano, “a importância de uma relação não se mede por sua duração. Se quisermos saber alguma coisa sobre o amor entre duas pessoas, não devemos indagar o que as pessoas fazem do amor, mas sim o que o amor faz das pessoas. O que o amor fez de Olga Benario e Carlos Prestes descobrimos em suas cartas.”
FONTE: O Globo
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