Por Rodrigo Casarin, no blog Página Cinco
Deus sendo invocado como justificativa para que deputados e senadores tomem suas decisões, torturador tratado como ídolo, questões como a legalização do aborto e descriminalização da maconha sendo colocadas para escanteio, fim do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos… Não há dúvidas que o Brasil vive um momento no qual o conservadorismo com requintes de retrocesso social avança consideravelmente no cenário político. Para analisar esse nosso tempo que o doutor em História Felipe Demier e a doutoranda também em História Rejane Hoeveler organizaram a antologia “A Onda Conservadora”, que reúne 20 ensaios com olhar de esquerda sobre a questão. Assinam os textos nomes como Guilherme Boulos, psicanalista e coordenador do Movimento dos Trabalhadores sem Teto, e Eduardo Tomazine, mestre em Ciência Política pela Universidade de Paris.
“Junho [de 2013] teve outra vertente, que deixou rescaldos mais marcantes. A direita saiu do armário. Passou a adotar abertamente um discurso mais ousado e raivoso. Os velhinhos do Clube Militar tiraram a poeira das fardas para defender uma reedição de 1964. Homofóbicos, racistas e elitistas passaram a falar sem puderes de suas convicções. Isso tudo se sintetizou num antipetismo feroz que correu o país”, escreve, por exemplo, Boulos em seu artigo.
Em entrevista ao UOL, Rejane explica que “tal onda se formou como resposta ao governo Lula, embora esse mesmo tenha se constituído em uma experiência governamental conservadora, já que muito players do conservadorismo emergente fizeram parte da base de sustentação do Lulismo”. Como uma espécie de efeito colateral do governo então vigente, campanhas presidenciais da oposição começaram a adotar um tom até mesmo reacionário, o que culminou, em 2014, com a eleição de um congresso reconhecidamente conservador. “O espetáculo grotesco da votação do impeachment só assustou quem não estava realmente acompanhando o nível da tragédia em que estamos enfiados”, pontua Rejane.
O PT, por sua vez, perdeu apoio popular por conta das políticas econômicas adotadas por Dilma, principalmente o ajuste fiscal, diz a doutoranda. “Isso acabou possibilitando que a audiência para um conjunto de ideias esdrúxulas ganhasse corações e mentes de um setor popular [dos trabalhadores] que havia garantido todas as vitórias eleitorais do PT desde 2006. Como a oposição de esquerda ao Lulopetismo é muito frágil, infelizmente, quem ganhou terreno foi a direita”.
Por que o conservadorismo deve ser encarado como um problema, algo negativo?
Porque as ideologias políticas não são equidistantes. A vida social não é um supermercado onde as alternativas políticas encontram-se igualmente à disposição dos sujeitos sociais. O conservadorismo em tela tem consequências concretas na restrição da vida democrática, com uma agenda de retirada de direitos historicamente conquistados, de ataques aos poucos avanços conquistados nos últimos anos no que diz respeito a esses direitos, de obscurantismo em relação à produção do conhecimento (e daí serem as universidades um dos focos de ataque desse conservadorismo, que apresenta além da agenda de privatização também a agenda de restrição à produção do conhecimento crítico), que nega a existência dos problemas ambientais etc. Deste modo, o conservadorismo em ascensão é uma ameaça à democracia.
Quanto o PT, que está no poder desde 2003, é responsável por esse avanço do conservadorismo?
Parte do avanço conservador foi resultado do governo petista. Uma espécie de “bebê de Rosemary” resultante do pacto estabelecido entre o PT com eminências pardas do conservadorismo político. O que ocorre agora é que esses últimos romperam com o PT, se reconciliaram com a oposição de direita (dirigida pelo PSDB) e conduziram a derrubada do governo Dilma. Foi a estratégia política de conciliação que construiu a atual derrota.
Hoje é comum vermos funcionários do mesmo lado de patrões, muitas vezes lutando por direitos do empregador. Por que isso ocorre? Não há mais luta de classes? Ou ela hoje acontece de maneira diferente?
Isso sempre aconteceu. Chama-se ideologia. Trabalhadores que acreditam que pensando igual aos patrões irão um dia “chegar lá’’, ou acreditam nisso mesmo sem essa perspectiva. Isso não é de hoje e existe desde que o capitalismo é capitalismo. E ao mesmo tempo em que parcela considerável dos trabalhadores optam pelo conservadorismo, as lutas de classes continuam a ocorrer.
Por exemplo, entre importantes categorias que protagonizaram greves no último período encontraremos tanto trabalhadores conservadores que não participam dessas mobilizações, quanto aqueles que mesmo participando não vêm imediatamente contradição entre suas posições políticas de direita e suas necessidades objetivas. É claro que nestas lutas a consciência dos trabalhadores avança e não é também incomum que dessas experiências se forjem novas gerações de militantes sociais de esquerda.
“A Onda Conservadora” é uma obra com textos baseados em um pensamento esquerdista. Existe algum projeto de esquerda viável, principalmente em termos econômicos, hoje em dia?
O livro “A Onda Conservadora”é uma obra crítica feita por autores de esquerda. Não pretende ser uma análise isenta, até porque tal coisa não existe. Quanto a existir um “projeto viável de esquerda, principalmente em termos econômicos”, bom, não existe. Mas também não existe nada propriamente viável socialmente promovido pelas direitas. No plano internacional não faltam exemplos de desastres sociais provocados pelas políticas de ajuste fiscal e de pagamento religioso da dívida pública. Acho que a pergunta deveria ser, o capitalismo, como provocador de desastres sociais e ambientais, é um sistema viável? Está cada vez mais claro que não. É hora de reconstruir o projeto de esquerda, aprendendo com os erros e os acertos das experiências do século 20 e nesse início de século 21.
“Mais valia”, “patrão”, “proletariado”, a própria “luta de classes” que citei… O discurso da esquerda não está datado demais? Essas palavras não estão esteticamente desgastadas e caricaturadas, independente do sentido que ainda possam ter?
Enquanto houver capitalismo, conceitos como mais-valia (ou mais-valor, numa tradução mais correta), patrão, proletariado e luta de classes continuarão a ser ferramentas válidas. Hoje o volume de pessoas subordinadas à lógica de valorização do valor, trabalhando em condições cada vez mais precárias e que perdem suas vidas no trabalho para produzir uma riqueza apropriada por poucos é uma realidade tangível. Porque então vamos abrir mão dessas categorias pelo fato delas serem antigas, e daí o argumento de que seriam “datadas”? O capitalismo tem, pelo menos, uns quatrocentos anos de vigência no mundo e ninguém anda escrevendo nos grandes jornalões que “o capitalismo está datado”, exceto os socialistas convictos que eventualmente conseguem um espaço na grande imprensa.
Aliás, não é de hoje que as categorias de patrão x trabalhador, luta de classes etc. são tidas como “datadas”. Esse é, ao contrário, um discurso muito velho e encharcado de ideologia, e um discurso com um enunciador que não é nada ingênuo. Afinal, para os donos do capital é um discurso belíssimo. Por outro lado, quando os trabalhadores compram esse discurso, ficam desarmados e eventualmente não vão considerar um grande problema acreditar nas palavras de qualquer publicista de quinta categoria, num videozinho no Youtube, no pastor ou em qualquer meme compartilhado em redes de Whatsapp.
FONTE: Página Cinco
Nenhum comentário:
Postar um comentário