Inédito de Antonio Candido cita raridade “escabrosa” de Oswald de Andrade
Rodrigo Casarin
Para comemorar os dez anos do Festival Literário de Poços de Caldas – a Flipoços, que neste ano chega a sua 11ª edição entre os dias 30 de abril e 8 de maio -, a organização do evento convidou 15 escritores renomados para escreverem sobre as relações que tiveram com a cidade no sul de Minas.
Enquanto “Poços é uma Festa”, o livro com essas peças, permanece sem previsão para lançamento, a Flipoços autorizou que o Página Cinco publicasse um dos textos até então inéditos, de autoria do crítico literário e sociólogo Antonio Candido, hoje com 97 anos, um dos nomes mais importantes das letras no país.
Em “A Cidade, A Casa e Os Livros”, Candido lembra da sua infância e juventude na cidade, remonta parte da sua formação como leitor e cita quando se deparou com a primeira edição de “Serafim Ponte Grande”, uma raridade de Oswald de Andrade, responsável por palavras e cenas “escabrosas”, segundo o crítico.
Eis o texto:
A cidade, a casa e os livros
(Memórias)
Antonio Candido
Para mim, Poços de Caldas está associada de modo essencial à ideia do livro e da leitura. A cidade tinha 12.000 habitantes quando nela fomos morar, em janeiro de 1930. Eu ia pelos onze anos e meio e era um pequeno leitor compulsivo, atraído pelos livros de modo um pouco maníaco. Tendo lido até então, desde os seis anos, livros infantis e já alguns para adultos, mergulhei nestes em Poços, encontrando condições favoráveis para isso.
Meu pai era médico, mas além dos livros ligados à sua profissão tinha uma biblioteca de filosofia, história e literatura. Ela ficara na maior parte guardada alguns anos no Rio de Janeiro, enquanto morávamos na cidade sul-mineira de Cássia. Abrindo os caixotes, meus irmãos e eu fomos vendo sair deles centenas de volumes, nas suas brochuras leves ou em sólidas encadernações. Nossos pais nos estimulava, a lê-los, nos puxando sempre para cima, isto é, para obras destinadas a adultos, das quais meu pai costumava nos ler e comentar trechos depois do jantar, antes de ir para o escritório e seus estudos.
Em Poços fui aluno de um curso de admissão o ginásio da notável educadora D. Maria Ovídia Junqueira, senhora muito culta, que eu escolheria no futuro remoto para se patrona da cadeira que tenho o privilégio de ocupar na Academia Poçocaldense de Letras. Ela orientou minhas leituras com o mesmo espírito de “puxar para cima” de meus pais. Seu marido, Afonso Junqueira, falecido prematuramente havia pouco quando chegamos, era grande leitor, como ela, e ficara com uma pequena parte da biblioteca de Pedro Sanches de Lemos, seu cunhado. Eu tinha livre acesso a ela e a aproveitei muito. D. Maria Ovídia foi em seguida minha professora de inglês no curso ginasial. Criada por uma tia cujo marido era pastos presbiteriano norte-americano, era bilíngue e me iniciou na cultura de língua inglesa, complementando assim a maciça influência francesa que meus irmãos e eu recebemos em casa e numa longa estadia na França.
A uma amiga italiana de D. Maria Ovídia e de minha mãe, frequentadora semanal de nossa casa, D. Teresina Carini Rocchi, devo a iniciação da cultura de seu país. Era socialista, antifascista intransigente, lia sem parar, mas não conservava os livros, para que, ao circularem, difundissem o saber, guardando apenas os de consulta e de leitura constante, como os poemas de Giacomo Leopardi. Sobre a sua personalidade vulcânica e admirável publiquei faz muito tempo em texto longo.
Além disso, Poços de Caldas proporcionou a mim e meus irmãos o acesso a uma livraria pequena, mas de qualidade a Vida Social, situada na antiga Rua Bahia, atual Prefeito Chagas, onde podíamos comprar não apenas livros em português, mas em francês e inglês. Os livros brasileiros se enquadravam na maior parte do grande movimento renovador dos anos 1930 e 40, quando o Brasil estava, por assim dizer, mudando de pele. Foi o tempo da produção de obras importantes de economia, política, estudos sociais, bem como de incorporação do Modernismo e fecundação das literaturas regionais. Nós, adolescentes de Minas, íamos conhecendo por essas vias um Brasil diferente, – nos romances de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Raquel de Queirós, Amando Fontes, Érico Veríssimo e outros hoje esquecidos. E também estudos históricos, sociológicos, antropológicos, políticos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Artur Ramos, Caio Prado Júnior, tudo em geral disponível na Vida Social.
Meu parceiro fraterno nessa aventura foi com colega de ginásio, neto de Pedro Sanches, sobrinho neto de Afonso Junqueira e, portanto, de D. Maria Ovídia: José Bonifácio de Andrada e Silva. Volta e meia íamos rondar a Vida Social na altura das cinco da tarde, quando chegava o trem e com ele, quem sabe, o livro que estávamos esperando e o encarregado da livraria, João Vilela, extrairia dos pacotes. No caso positivo, nós pegávamos e talvez fôssemos depressa começar a leitura ali perto, nalgum banco da Praça Pedro Sanches, com a incomparável sofreguidão literária da adolescência.
A Vida Social tinha singularidade, a maior das quais talvez tenha sido, como percebi muitos anos depois, o fato de ter sido a única, em toda a minha vida de frequentador contumaz de livrarias, onde vi posto à venda, em 1934, o Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, magra brochura editada à custa do autor, com tiragem creio que de apenas 500 exemplares pouco distribuídos. Muito divertidos com seu humor esfuziante e desbragado, José Bonifácio e eu o folheamos male mal na própria livraria com licença do amigo João Vilela, pois não ousaríamos levá-lo para casa à vista das muitas cenas e palavras “escabrosas”, como dizia então. O que diriam os pais? Quanto ao público, só teve acesso fácil ao Serafim na 2ª edição, de caráter regular, quase quarenta anos depois…
Outra singularidade para uma livraria de cidade do interior eram os livros que vendia nas línguas originais, como referi. Livros franceses clássicos da Editora Garnier, de Paris, livros modernos da Plon e da Stock, bem como livros ingleses da Tauchnitz e outras. Orientado por minha mãe, comprei lá em belas encadernações os “moralistas franceses” dos séculos XVI a XVIII, que foram fundamentais ao longo dos anos para a minha concepção do homem.
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Meu pai morreu prematuramente em 1942 e minha mãe foi morar em São Paulo, onde já estavam os filhos, mas conservamos a casa e nela íamos sempre. Minhas filhas e meus sobrinhos a frequentaram até a maturidade e depois foi a vez dos netos. Minha filha Ana Luiza contou a sua experiência caldense no livro que escreveu sobre a sua infância: O pai, a mãe e a filha. Como disse com precisão poética em um dos seus livros meu irmão Roberto, “a casa era a nossa epiderme de alvenaria”, e até 1989, quando a vendemos, uma espécie de sede da família. Para mim, foi sempre um remanso onde eu ia ler e escrever até que um dia os livros e as pessoas migraram e ela própria acabou desaparecendo fisicamente. Mas para nós, é como se, lembrando o verso de Manuel Bandeira, continuasse
Intacta, suspensa no ar.
Cumprimentos cordiais
Antonio Candido de Mello e Souza
FONTE: Blog Página Cinco
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