Leia no Blog da Boitempo também a coluna “A adaga dos covardes“.
"Enquanto isso os verdadeiros jogadores abrem um champagne caríssimo e comemoram (...) Eles não têm nada a perder."
Por Mauro Luis Iasi.
A aceitação por parte do Presidente da Câmara dos Deputados do pedido de impeachment da Presidente Dilma abre mais um capítulo nesta novela fundada numa trama de mal gosto e operada por atores menores. Afirmávamos que o impeachment era como uma adaga que todos ameaçavam sacar, mas que não queriam de fato utilizar.
Em outros termos, um blefe no jogo político que envolve três
personagens: o governo, a oposição e o PMDB que se equilibra habilmente
entre os dois primeiros.
O motivo
principal apontado se funda na constatação de que os interesses de
classe por trás destes atores não parecerem indicar a clara decisão de
interromper o mandato presidencial, preocupando-se muito mais em
garantir o mínimo de estabilidade política para impor os chamados
“ajustes” para enfrentar a crise econômica e salvar o capital a custo,
uma vez mais, dos trabalhadores.
Ressaltávamos
que o jogo político podia ganhar certa autonomia uma vez desencadeado,
isto é, que podíamos ver o paradoxal cenário no qual ninguém quer o impeachment, mas ele acaba por encontrar forças para seguir assim mesmo. Dizia à época: “Nenhum ator particular que desembainhou a adaga parece de fato querer o impeachment, mas parece que a adaga quer”.
O que alimentaria este cenário?
Em primeiro
lugar a própria dinâmica da crise política e a forma pela qual o governo
optou por enfrentá-la. A natureza própria da crise política se encontra
na armadilha da governabilidade pelo alto, nas alianças conquistadas
pela troca de cargos, emendas no orçamento, favorecimentos e outras
moedas de troca. Tal procedimento cria uma espécie de parlamentarismo de
fato, no qual a barganha cria um equilíbrio momentâneo que gera
condições de governabilidade, mas que precisa ser refeito tão logo as
peças mudarem, os segmentos se reorganizarem e se alterarem a correlação
de forças interna aos partidos da chamada base aliada.
Em segundo
lugar, a combinação da crise política com a crise econômica. Qualquer
barganha pela governabilidade supõe que os diversos segmentos que
compõem a classe dominante tenham suas demandas atendidas, mas a crise
aumenta a intensidade das necessidades dos segmentos do capital
monopolista, coloca em choque interesses de forma que ao atender um
santo descobre-se outro. O crescimento econômico podia gerar a situação
de aparente atendimento das demandas gerais, ou pelo menos formar uma
maioria consistente, mas crise corrói esta base de possibilidades e
intensifica as lutas internas.
A recente
reforma ministerial feita claramente para aplacar o PMDB, se mostra
inócua para segurar o conjunto dos fragmentos desta sigla. Quanto mais o
governo cede, mais lhe é cobrado, seja na brutalidade dos ajustes e
cortes, seja nas concessões e benesses ao capital, seja na generosa
abertura do governo à participação do PMDB e aliados para recompor sua
base no Congresso.
A desgraça
do governo, que optou por este caminho, é que ele cede à direita para se
manter no governo e ataca sua própria base social, passando a depender
cada vez mais da governabilidade pelo alto do que de suas próprias
forças.
No entanto, este cenário nos explica a razão do processo ser tenso e tortuoso, mas não explica por que a carta do impeachment foi
jogada na mesa. Valério Arcary disse certa vez que costumamos valorizar
as grandes figuras históricas, o papel glorioso das classes em sua
jornada pela transformação do mundo, os atos heróicos e a grandiosidade
dos eventos marcantes, vitorias ou derrotas, mas nem sempre damos a
atenção devida ao papel do imbecil na história. Explico-me. Por vezes um
cenário conjuntural intrincado encontra seu desenlace pela ação
impensada e intempestiva de alguém menor, que não reúne nem a
grandiosidade nem a perspicácia dos grandes personagens, mas cuja
imbecilidade e pequenez acaba por abrir os caminhos para os desfechos
históricos.
Dois
exemplos me vêm à mente. No momento do fracasso das jornadas de junho de
1917 na Revolução Russa, que desencadeou a repressão aos bolcheviques e
anarquistas, o governo provisório se equilibrava numa aliança com os
Kadetes e os sovietes pareciam derrotados. Os Bolcheviques realizam um
Congresso na clandestinidade e decidem pela insurreição, mas ainda
falta-lhes um fato político capaz de desmascarar o governo provisório e
levar as massas a tender para a ação revolucionária. É quando o general
Kornilov marcha contra Petrogrado e tenta um golpe, permitindo a
formação dos batalhões de autodefesa organizados por Trotski e o
desenlace da insurreição.
O outro exemplo é o famoso atentado em Saraivo contra o Arquiduque da Áustria perpetrado por um nacionalista sérvio – Gavrilo Princip
– que se tronaria o gatilho para a Primeira Guerra Mundial. Ninguém em
sã consciência pode acreditar que uma guerra daquelas dimensões pudesse
ser causada por um único ato – que se o Arquiduque Fernando tivesse se
abaixado pela pegar algo que lhe caíra das mãos naquele instante
decisivo, a guerra teria sido evitada –, mas um ato impensado ou isolado
uma vez ocorrido pode servir como desencadeador de todas as nuvens que
se formavam e esperavam para se tornar uma tempestade.
Nosso
personagem não é um general, nem um nacionalista Sérvio. É o Presidente
da Câmara dos Deputados, o senhor Eduardo Cunha. Vejam: a barganha
política pela governabilidade envolve negociações que são em parte
visíveis publicamente (como a distribuição de cargos políticos) e em
parte ocultas nos bastidores (envolvendo interesses inconfessáveis), mas
ao que nos interessa aqui, pressupõem uma certa racionalidade. Por
exemplo, uma vez que se negociou com o PMDB através de ninguém menos que
o Vice-presidente da República e Presidente do Partido, é natural
esperar que este organize as condições de adesão e acomodamento de
divergências para viabilizar a almejada governabilidade. Mas as coisas
não são tão fáceis. Com Renan Calheiros, como fora antes com Sarney, a
barganha envolve indicações, concessões, apoios nos pleitos de controle
de cargos importantes no Congresso, assim como em relação as demandas da
base social de sustentação de certos parlamentares e legendas. No caso
de Renan, isso culminou na chamada Agenda Brasil, com uma pauta
claramente voltada aos interesses empresariais e monopolistas.
No caso de
Cunha as coisas são diferentes por uma série de motivos. O PT havia
disputado contra ele a presidência da Câmara. Ele se fortaleceu e chegou
lá captando o descontentamento dos setores não beneficiados pela
barganha e seduzidos pelo crescente apelo de massas contra a presidente,
os segmentos conservadores, o fundamentalismo religioso. Aglutinando
tudo isso, Cunha se arvora a ser o porta voz da reação, alfineta o
Planalto, subverte a aliança e negocia. No entanto, diferente de outros,
Cunha não tem uma “agenda”, uma “pauta”, além de seus próprios
interesses pessoais. Eis que o sujeito passa de cavaleiro do Santo Graal
do combate à corrupção para indiciado na Operação Lava-Jato, de fiel
escudeiro das causas reacionárias daqueles que se vestem com a camisa da
CBF para pedir a volta dos militares a portador bilionário de contas na
Suíça. Ele quer manter-se no poder e se livrar dos processos com o
menor custo possível. E para tanto flertou com o governo e a oposição:
quando sentia que o governo sobreviveria, se aproximava do Planalto,
quando via as massas da direita nas ruas, mandava sinais à oposição. Sua
única fidelidade é a si mesmo e a seus bilhões ganhados honestamente
vendendo carne enlatada.
Sua posição
privilegiada na Presidência da Câmara lhe dá o status que precisa e seu
controle sobre as comissões lhe aufere o poder que necessita para operar
sua chantagem. Após desentendimentos e trombadas, principalmente com a
passagem de Aloizio Mercadante (que convenhamos está longe de ser um
quadro competente em qualquer área que atue), o Planalto, seguindo os
conselhos de Lula, tenta levantar a “bandeira branca”, e Jaques Wagner
se esforça para abrir pontes e diálogos, inclusive com a promessa de
respaldá-lo no cargo contra as ameaças de cassação por conta dos
escândalos. O governo negará agora até a morte, mas tentou
desesperadamente um acordo. Os pedidos de impeachment estavam
guardados na gaveta para serem usados como chantagem e não como parte de
nada maior. Como simples instrumento de seus pequenos e mesquinhos
interesses.
Horas após a
definição de que os deputados do PT não o apoiariam na Comissão de
Ética, ele desengaveta o processo de afastamento da Presidente. No jogo
político, temos visto peças caindo com certa dignidade, se é que assim
podemos chamar, porque sabem que são descartáveis na lógica de um jogo
maior. Não é o caso de Cunha, ele cai chutando o tabuleiro e claramente
pensando em quem levará junto. Como bom megalomaníaco que é, está de
olho na Rainha.
Com o devido
respeito que Miguel Reale Jr merece por sua atuação e posição no mundo
jurídico (o mesmo não posso dizer de Hélio Bicudo, que sempre foi um
petista de ocasião e um oportunista, conservador por convicção), não
parece haver bases legais para um pedido de afastamento da Presidente.
Entretanto, ao que parece, não é isso o que de fato conta, mas sim
quantos votos se tem nas comissões e no plenário que decidirá sobre o
destino da mandatária máxima da República.
O irônico é
que nada que a Presidente tenha feito até agora, apesar de tudo em que
cedeu às exigências de sua “base aliada”, lhe garante que terá
condescendência dos deputados e senadores que decidirão sobre seu
destino, ou mesmo no Supremo Tribunal Federal, para onde o processo deve
desaguar. Agora ela precisaria de sua base social, mas a pergunta que
tira o sono dos petistas é se esta base continua lá e está disposta a se
mover em defesa de um governo que a preteriu em nome da governabilidade
pelo alto.
Estou certo
que, apesar da cortina de fumaça dos apelos à base social, o centro da
estratégia governista seguirá a barganha pelo alto, isolando Cunha,
buscando aliados e fazendo contas dos votos necessários para se salvar. O
preço de cada voto vai aumentar no mercado da barganha política.
Sempre
procuro alertar meus alunos de Teoria Política que o mundo se divide em
quem leu e quem não leu Maquiavel (e um terceiro grupo que leu, mas não
entendeu). O florentino diz em sua obra mais conhecida o seguinte:
“Quem se
torna (governante) mediante o favor do povo deve manter-se seu amigo, o
que é muito fácil, uma vez que o este deseja apenas não ser oprimido.
Mas quem se torna (governante) contra a opinião popular, por favor dos
grandes, deve, antes de mais nada, procurar conquistar o povo”.
Uma das
grandes surpresas que os governistas tiveram neste período mais recente é
que o povo não está lá à sua disposição enquanto eles se sustentam na
barganha política com os “grandes”. Marx, que leu e entendeu Maquiavel,
já compreendia bem a raiz deste equívoco em sua obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, quando diz:
“[P]or representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição,
na qual os interesses de duas classes se embotam de uma só vez, o
democrata tem a presunção de se encontrar acima de toda e qualquer
contradição de classe. Os democratas admitem que o seu confronto é com
uma classe privilegiada, mas pensam que eles é que constituem o povo
junto com todo o entorno restante da nação, que eles representam o direito do povo, que o seu interesse é o interesse do povo.
Por conseguinte, não teriam necessidade de verificar, na iminência de
uma luta, os interesses e posicionamentos das diferentes classes. Não
teriam necessidade de sopesar com todo cuidado os seus próprios meios. A
única coisa que precisariam fazer era dar o sinal para que o povo se
lançasse sobre os opressores com todos os seus inesgotáveis recursos. (Karl Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Boitempo, 2011, pp.67-8)
O
afastamento de Cunha não mudará o cenário, nem o sentido geral do que se
anunciava para a conjuntura, apenas agora o sangramento lento da
presidente, que pode ou não culminar em seu afastamento, se estenderá
até meados do próximo ano, influenciando nas eleições municipais de 2016
e preparando o terreno para o confronto eleitoral de 2018. Alguns
torcem para estar vivos até lá. Enquanto isso, os verdadeiros jogadores,
que não se confundem com peões descartáveis, em algum lugar longe dos
holofotes, abrem um champanhe caríssimo e festejam, pois apostaram suas
fichas nos dois oponentes e não têm como perder.
***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio.
FONTE: Blog da Boitempo
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