Versão dos vencedores não dá conta da organização política de uma sociedade que se manteve por mais de meio século
Por Laura Perazza Mendes Nascimento*
Panorâmica do Parque Memorial do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, que desde 2007 reconstitui o cenário do antigo Quilombo. |
Corria pelos engenhos e senzalas da capitania de Pernambuco a notícia
de que, para o lado das serras, na região dos palmares, havia um
refúgio. Um lugar onde era possível viver fora do poder dos senhores de
engenho e manter vivas tradições africanas recriadas na América. Lá, uma
nova sociedade era construída: guerreiros, agricultores, comandantes de
guerra, líderes religiosos e uma linhagem real que determinava os rumos
políticos e militares.
Aquelas povoações foram chamadas de mocambos, acampamentos que poderiam
ser desmontados e montados em outras regiões, como estratégia de fuga
ou de busca por melhores terrenos. Chegar a essa zona de vegetação de
palmares não era tarefa fácil. Após fugir dos engenhos ou das vilas, era
necessário trilhar caminhos íngremes e fechados pela mata. Qualquer
descuido poderia resultar em recaptura ou morte, pois havia pessoas
dedicadas especialmente à perseguição de escravos fugitivos, como os
capitães do mato. Mesmo assim, muitos conseguiram chegar ao local,
incluindo índios e pessoas livres. Foi mais fácil fugir para os mocambos
no início do século XVII, quando a produção de açúcar foi desorganizada
pela invasão dos holandeses (1630) e, mais tarde, pelas batalhas de
expulsão desses estrangeiros (1645-1654).
Como era feito em Angola, os habitantes extraíam dos palmares a
vegetação que deu o nome para os mocambos, fibras e palmito, além de
produzir vinho e óleo. Não viviam isolados da sociedade colonial, mas
buscavam reagir ao escravismo governando a si próprios.
Mas quem contou a história dessa sociedade? Infelizmente, não há nenhum
registro escrito por habitantes dos Palmares. O que chegou até nós
foram documentos produzidos por representantes da Coroa portuguesa que
governaram a capitania de Pernambuco, e relatos de pessoas que lutaram
contra os negros dos mocambos durante o século XVII. Por causa disso e
de uma interpretação preconceituosa dos primeiros historiadores de
Palmares, a sua história foi contada do ponto de vista da destruição.
Era a versão dos vencedores.
O principal meio tentado pelos governadores de Pernambuco e pela Coroa
portuguesa para pôr um fim em Palmares foi enviar expedições militares.
Elas deveriam encontrar o caminho dos mocambos e fazer o máximo de
prisioneiros possível. Os prisioneiros seriam devolvidos a seus antigos
senhores ou vendidos para fora da capitania, para que não retornassem
aos mocambos. Poderiam render um bom lucro, mas durante os confrontos
muitos morriam ou ficavam feridos. Como meio de se defender dos ataques,
os habitantes de Palmares faziam emboscadas e levantavam acampamento,
mudando os mocambos de local.
Um dos primeiros estudiosos do assunto, o escritor Raimundo Nina
Rodrigues (1862-1906), dividiu a história de Palmares em três fases. A
primeira corresponde ao período da invasão holandesa, no qual o número
de habitantes dos mocambos cresceu rapidamente. Seu marco seria o ano de
1644, data do confronto entre os negros amocambados e a expedição
comandada por um holandês chamado Rodolfo Baro. O próximo marco
escolhido por Nina Rodrigues foi uma expedição militar comandada pelo
capitão Fernão Carrilho, em 1677. Vindo de Sergipe especialmente para
fazer uma guerra contra Palmares, o militar promoveu um grande ataque.
Segundo relatos posteriores, 200 habitantes de Palmares foram feitos
prisioneiros, incluindo a rainha e filhos do rei, chamado Gana Zumba.
Muitos morreram ou ficaram feridos, mas sobre estes não há números.
Importava mais aos vencedores contar aqueles que poderiam ser vendidos. A
fase final de Palmares foi a da morte do líder Zumbi, em 1695, seguida
pela destruição dos mocambos remanescentes. Mas o salto na história
promovido por Nina Rodrigues não dá conta de explicar a mudança da
liderança do rei Gana Zumba para Zumbi. Muitas coisas acontecerem nesse
meio-tempo: acordos de paz, mudanças nas localizações dos mocambos,
diferentes posicionamentos políticos.
Como a maioria decidiu contar essa história a partir da destruição, o
foco escolhido foi a morte de seu líder mais famoso. No final do século
XVII, o governo de Pernambuco, cansado das expedições militares que
fracassavam na luta contra os mocambos, decidiu investir no contrato de
um tipo diferente de tropa: as bandeiras paulistas. Liderados por
Domingos Jorge Velho, os indígenas e descentes de europeus que compunham
essa tropa assinaram um contrato se comprometendo a destruir os
mocambos de Palmares. Em troca, receberiam prisioneiros, terras e
benefícios da Coroa, chamados de mercês.
Em 1694, os homens de Jorge Velho atacaram o mocambo principal de
Palmares, localizado no Outeiro do Barriga, juntamente com homens da
capitania de Pernambuco. Lá estavam Zumbi e seu exército, na capital
conhecida como Macaco, protegidos por uma cerca alta que rodeava o
local, à espera do ataque. Para rompê-la, os paulistas decidiram subir
até o local carregando dois pesados canhões. Após horas de combate entre
os que estavam do lado de fora e do lado de dentro da cerca, as tropas a
serviço da Coroa conseguiram entrar em Macaco. Seu principal objetivo
era capturar ou matar Zumbi, para provar que Palmares havia sido
derrotado. Mas não o encontraram. Estaria ele morto? Teria escapado?
Os primeiros historiadores de Palmares acreditaram na versão de que
Zumbi havia se suicidado pulando de um penhasco. Teria preferido morrer
assim a ser capturado ou morto pelos inimigos. Posteriormente, foram
encontrados documentos que relatam a morte de Zumbi um ano depois.
Inconformado por não poder atestar a morte de Zumbi à Coroa e a todos
que viviam em Pernambuco, o governador da capitania, Caetano de Melo e
Castro, decidiu enviar mais uma tropa aos mocambos. Em 1695, um
habitante de Palmares que havia sido capturado anteriormente foi coagido
a ajudar os homens a serviço da Coroa, e informou onde Zumbi estava
escondido. Em uma emboscada, o líder palmarino foi capturado e morto.
Sua cabeça foi exposta em Recife, para que todos soubessem –
principalmente os escravos – que o refúgio de Palmares estava
definitivamente destruído.
Quase todos os historiadores posteriores adotaram esses marcos
cronológicos, mas quantos outros episódios importantes ficaram de fora
da história contada pelos vencedores? Em 1678, após a expedição
comandada por Fernão Carrilho, Gana Zumba decidiu enviar representantes
seus para negociar um tratado de paz com o governo de Pernambuco. Sua
embaixada era formada por 11 pessoas, entre elas seus filhos e
importantes líderes militares. Em Recife, a comitiva de Gana Zumba foi
recebida com a pompa e a circunstância dignas de uma negociação entre
chefes de Estado. Cartas e presentes foram trocados entre os governantes
de Palmares e de Pernambuco.
Gana Zumba aguardou em Palmares os resultados das negociações. O
governador de Pernambuco desejava que os mocambos fossem esvaziados e os
escravos que lá viviam fossem devolvidos a seus senhores. Já Gana Zumba
esperava que os palmarinos pudessem escolher um novo local para viver e
que os nascidos nos mocambos fossem considerados livres.
As condições foram acertadas entre as partes, e os habitantes de
Palmares, liderados por Gana Zumba, mudaram-se para um local chamado
Cucaú. Porém uma parte dos palmarinos foi contra o acordo. Liderados por
Zumbi, decidiram permanecer nos antigos mocambos e resistir aos ataques
das novas expedições. Outras tentativas de acordo de paz foram feitas
com Zumbi, mas nenhuma obteve sucesso. Algum tempo depois da mudança
para Cucaú, Gana Zumba morreu, provavelmente assassinado por seus
opositores políticos. A nova povoação foi então desfeita. Alguns
retornaram a Palmares e outros foram feitos escravos pelos senhores
locais, sendo vendidos para fora de Pernambuco.
O acordo feito em 1678 comprova que os habitantes de Palmares estavam
organizados politicamente e que seu governo, com base em conhecimentos
acumulados na África e na América, soube conduzir uma negociação com os
representantes da Coroa portuguesa. A destruição de Palmares apaga uma
história de mais de meio século de organização social e resistência
política.
*Laura Perazza Mendes Nascimentoé autora da dissertação “O serviço de armas nas guerras contra Palmares: expedições, soldados e mercês” (Unicamp, 2013).
SAIBA MAIS
GOMES, Flávio dos Santos. Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto, 2005.
GOMES, Flávio dos Santos Gomes (org.). Mocambos de Palmares: histórias e fontes (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.
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