Por Wagner Moura*
Essa é a frase mais célebre do livro “Minha formação”, do
abolicionista brasileiro Joaquim Nabuco. Esse livro foi escrito no final
do século XIX, portanto pouco mais de uma década depois de abolida a
escravidão no Brasil. Em 1888, o Brasil foi o último país ocidental a
livrar-se oficialmente do trabalho forçado. A escravidão tornou-se mesmo
parte fundamental da alma do nosso país. Creio que mesmo Nabuco, que se
antecipou a Gilberto Freire nas reflexões sobre a influência do
trabalho escravo na cultura brasileira, talvez não supusesse que no ano
de 2015 suas palavras ainda fariam tanto sentido.
A população negra brasileira ainda é a grande maioria nos
bolsões de pobreza e a sofrer violência policial. Recentemente, a
Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro resolveu impedir que
ônibus vindos das periferias da cidade chegassem às praias dos bairros
nobres, sob pretexto de evitar assaltos. Jovens negros eram, sem
qualquer justificativa, retirados dos ônibus. Ainda seguimos com plantas
de apartamentos com “quartos de empregada”, quartinhos escuros e sem
janelas perto da cozinha. As empregadas domésticas brasileiras, em sua
grande maioria mulheres negras, somente há alguns anos foram
incorporadas ao mundo das leis trabalhistas. Muitas delas ainda moram
nas casas de seus patrões, trabalhando da hora que acordam até a hora de
dormir. A quantidade de pessoas negras nas universidades é
consideravelmente inferior à de brancos. Homens e mulheres negras ganham
salários menores do que os brancos. As políticas afirmativas enfrentam
grande resistência no meio político e entre a classe alta brasileira,
também em sua grande maioria formados por brancos. A maior parte dos
pobres de nosso país tem a pele escura. Ou seja, a escravidão dos
séculos XVIII e XIX está evidentemente refletida na pobreza de
afro-descendentes no século XXI.
Mas essa é uma via de mão dupla, porque a pobreza é hoje a
maior responsável pela escravidão contemporânea. E, claro, a maioria dos
escravos contemporâneos no Brasil é formada por negros e mulatos.
Embora o país tenha avançado muito nos últimos anos no campo social,
continuamos com altos índices de pobreza e, especialmente, de
desigualdade. Para mim, não faz nenhum sentido ser a oitava economia do
mundo e septuagésimo nono em Índice de Desenvolvimento Humano. Pobreza,
sem dúvida, leva as pessoas a uma situação de vulnerabilidade em relação
ao trabalho escravo contemporâneo. Ninguém se submete a uma condição
degradante de trabalho se tiver uma outra opção.
Combater o trabalho escravo é, então, combater a pobreza e criar um
ambiente de justiça social, onde todos tenham as mesmas oportunidades e
erros históricos possam ser corrigidos. Claro que combater a pobreza no
mundo é uma tarefa complexa, que envolve uma mudança gigante na ordem
mundial. Mas enquanto a vacina contra a pobreza e a desigualdade não
fica pronta, existem muitos remédios capazes de erradicar o trabalho
escravo contemporâneo, seu efeito colateral. São vários: fiscalização,
responsabilidade social por parte dos patrões, leis trabalhistas
eficientes, punição exemplar aos infratores, amparo às vítimas, entre
outros. Na minha opinião, porém, nenhum remédio é mais poderoso do que a
informação. Porque é a informação que vai fazer com que alguém deixe de
achar normal haver pessoas trabalhando em condições degradantes. Muitos
trabalhadores sequer sabem que são vítimas dessa prática. Muita gente
de bem no mundo inteiro sequer acredita que a escravidão ainda exista,
pois associa-a, com alguma razão, aos navios negreiros de um passado
distante.
Quando eu disse, com pesar, que a escravidão faz parte da cultura
brasileira, também posso dizer, com orgulho, que o Brasil é um dos
países líderes no combate a essa prática nefasta. Uma das ferramentas
mais importantes na luta contra a escravidão é a divulgação de uma lista
com os nomes de pessoas físicas e jurídicas que foram apanhadas fazendo
uso desse tipo degradante de mão de obra, a “lista suja do trabalho
escravo”, como é chamada. No entanto, esse extraordinário instrumento,
infelizmente, foi, há pouco tempo, suspenso pelo Supremo Tribunal
Federal brasileiro, que, por sua vez, respondeu a pressões das forças
interessadas na não divulgação da lista. Ninguém vai a público dizer que
é a favor do trabalho escravo, mas é impressionante o lobby que existe a
favor de sua manutenção. Vinte e um milhões de pessoas são vítimas
dessa prática no mundo, gerando uma receita ilegal de US$ 150 bilhões
por ano. A quem interessa a suspensão da lista suja? A quem tem medo de
ver seu nome publicado nela, claro.
A definição brasileira de trabalho escravo é a mais avançada do
mundo! Aqui, qualquer pessoa que trabalhe em condição degradante, em
jornada exaustiva ou que trabalhe por dívida é considerada vítima do
trabalho escravo. Já há uma pressão forte no Congresso (talvez o mais
reacionário e conservador da História deste país), por parte desses
interesses organizados, para que a definição brasileira seja mudada e
para que seja considerado escravo apenas o sujeito proibido, por força,
de deixar seu local de trabalho. Se, de fato, conseguirem mudá-la,
estaremos dando mais um passo gigante para trás, como fizemos com a
aprovação do novo código florestal e com a redução da maioridade penal. A
quem interessa mudar a definição de trabalho escravo brasileira que
tanto gera elogios no mundo inteiro? Aos que submetem os trabalhadores
às condições compreendidas nela, isso também está claro.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) está lançando uma
campanha mundial chamada 50 for Freedom, que espera que, até 2018,
líderes de 50 países ratifiquem seu novo protocolo, muito específico na
condenação à prática do trabalho forçado. Parece fácil, mas não é. Até
agora, só o Níger assinou. Que exemplo bonito seria se o Brasil fosse o
segundo país a fazê-lo! Encontrei a presidente Dilma em Bogotá e obtive
dela a garantia de que o Executivo fará a proposta chegar ao Congresso o
mais rápido possível e de que ela vetará qualquer tentativa de mudança
na definição brasileira de trabalho análogo ao escravo. Serão ações como
ratificar essa carta que farão o Brasil seguir sua vocação progressista
e se tornar exemplo no que se refere à igualdade dos direitos civis,
direitos humanos e sustentabilidade. Esse, no final das contas, é o
caminho que importa. E livremos os brasileiros das próximas gerações da
profecia de Joaquim Nabuco.
*Wagner Moura é ator
Precisamos acabar com qualquer tipo de sujeição. Não podemos admitir que, em pleno terceiro milênio, tenhamos homens, mulheres e crianças padecendo os mais cruéis níveis de escravidão, seja do corpo ou da alma. Gente que é obrigada a se vender, quando não é vendida, por conta da ganância.
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