Por Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro*
"Deixar o erro sem refutação é estimular a imoralidade intelectual" (Karl Marx - frase citada como epígrafe do livro A Miséria da Teoria, do historiador E. P. Thompson)
O texto a seguir é uma réplica ao artigo intitulado "Hagiografia?", de autoria de Euler de França Belém, publicado no Jornal Opção, edição 2101. (LER AQUI O REFERIDO ARTIGO)
Lí o livro do historiador Daniel Aarão Reis (REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014). Embora muito badalado nos grandes meios de comunicação, exaltado como "principal referência" sobre o referido líder comunista, devido ao seu "rigor e isenção", trata-se, na realidade, de um trabalho com erros crassos para um estudo histórico e o colocam longe de ser "uma biografia exemplar", como se afirma no texto "Hagiografia?".
Antes de mais nada, um historiador deve ter o compromisso com a evidência e, portanto, escrever uma História não só apoiada em documentos como também baseada na comparação do maior número possível de fontes documentais que lhe permitam obter elementos necessários para uma aproximação confiável dessa evidência. Senão fizer isso, o historiador acaba sujeito a reproduzir e difundir informações falsas, assim como interpretações errôneas e parciais da realidade que pretende retratar. Em decorrência dessa consideração, a obra do historiador Daniel Aarão Reis deixa muito a desejar, levando-se a relativizar a afirmação de que "emerge da pesquisa exaustiva e das interpretações precisas e objetivas", como é afirmado no artigo "Hagiografia?". Aliás, um dos problemas do livro do Daniel é pecar, em vários momentos, em se deixar levar pela visão parcial de seus interlocutores, faltando, algo importante de um estudo histórico, que é o cotejamento das fontes. Ademais, outro problema sério é não se apresentar, de maneira clara e precisa, as fontes das afirmações veiculadas. Consequentemente, a suposta objetividade histórica do renomado historiador, por exemplo, chega a afirmar que Olga Benario Prestes teria abandonado um filho em Moscou ao partir para sua missão de garantir o retorno de Prestes ao Brasil (REIS, D. A. Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundo, cit., p. 171, 205, 495). Uma afirmação que despertou a indignação de Anita Prestes, filha de Olga, que assim se pronunciou publicamente:
O autor [Daniel Aarão Reis] tem a canalhice de tentar desmoralizar minha mãe (...), como se Olga fosse capaz de semelhante gesto. Os documentos citados – e pior ainda, o autor não cita documento algum, mas apenas o “Fundo PCB no AIC” - não são verdadeiros, pois conheço a documentação da Internacional Comunista, inclusive a pasta referente a Olga. Se alguém, em algum lugar, afirmou tal coisa a respeito de Olga, é mentira; conheci muitos amigos e amigas da minha mãe da época em que ela viveu em Moscou e a afirmação do autor é mentirosa. (Ver "Daniel Aarão Reis e a biografia de Luiz Carlos Prestes: a falsificação da história por um historiador", texto escrito por Anita Prestes, que teve ampla repercussão nas redes sociais; ver também a entrevista de Anita Prestes no Programa Faixa Livre, de 6/1/2015).
Até o presente momento, o historiador Daniel Aarão Reis não apresentou nenhuma defesa das críticas feitas por Anita Prestes ao livro sobre Prestes que ele escreveu. Se as duras críticas de Anita não procedem, o historiador Daniel Aarão deveria, por princípios éticos e decoro profissional, refutá-las, comprovando, como afirma o artigo "Hagiografia?", de que "Anita Leocádia Prestes às vezes comete o erro de pensar que só ela pode escrever sobre o pai", parecendo "que é dona da verdade sobre o comunista". Como não o fez até agora, tudo indica que, realmente, as críticas de Anita são mais que pertinentes. Por seus direitos legítimos e legais, enquanto filha, por princípios éticos e decoro profissional, como historiadora, Anita Prestes, com sua coerência, sua firmeza e posições claras, de quem não foge ao debate, não deixar o erro sem refutação e combate, arduamente, a imoralidade intelectual.
Quanto à biografia escrita pela historiadora Anita Prestes (PRESTES, Anita Leocadia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2015), sugiro que façam suas avaliações depois de ler o livro. Já iniciei a leitura do livro da Anita, tendo lido 9 dos 19 capítulos, e posso afirmar, considerando que devemos primar pela honestidade intelectual, que a obra escrita pela filha de Prestes está muito distante de ser classificada como "uma hagiografia familiar", como sugere o artigo "Hagiografia?". Ao longo da leitura do livro, fica evidente trata-se de um trabalho de história política. Portanto, uma biografia política. "A escrita de uma biografia desse viés, centrada na abordagem preferencial dos principais momentos da atuação política do personagem retratado, não deve, contudo, desprezar suas características individuais, na medida em que elas podem contribuir para explicar as atitudes adotadas por esse personagem nas distintas faces de sua vida" (Prestes, A. L. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, cit., p. 16). E mais, "ao mesmo tempo, a biografia deve retratar a época em que viveu e atuou o personagem estudado, procurando explicar seu interagir com o contexto histórico", entendendo que "o homem é fruto do meio social, mas também age permanentemente sobre ele, transformando-o" (idem). Nesse sentido, é bastante pertinente a observação do escritor Fernando Morais, autor do livro Olga, sobre a biografia de Luiz Carlos Prestes escrita pela historiadora Anita Prestes:
Para muitos biógrafos, um personagem só se torna importante se, por meio de sua trajetória, for possível contar uma história do Brasil que nos tenha sido sonegada nos bancos de escola. Se isso é verdade, este livro cumpre sua função. Pela mão de Prestes, Anita Leocadia realiza uma extensa, minuciosa e detalhada viagem pelo Brasil do século XX, do movimento tenentista à redemocratização pós-ditadura militar. A soma desses ingredientes torna Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro uma obra indispensável. (Fernando Morais, texto de contracapa do livro)
Portanto, mais uma vez, sugiro a leitura do livro de Anita, antes de se cair no erro de uma análise "pre-conceituosa" dessa obra. Aliás, acho importante que se leia, atentamente, as duas biografias (a da Anita e a do Daniel) para uma avaliação objetiva da qualidade historiográfica dos dois livros.
Por fim, concluo com as palavras da historiadora Laura Christina Mello de Aquino:
Gostaria de enfatizar que , o profissionalismo de Anita, como historiadora, é também revelador do seu brilho intelectual. Ela tem escrito sobre Prestes e Olga, com rigor científico, com absoluta precisão teórico-metodológica, contribuindo imensamente para esclarecer períodos obscuros da história brasileira. Como historiadora que sou, considero impecável o distanciamento que Anita Prestes consegue estabelecer quando escreve sobre os seus pais. Não é tarefa fácil, os que possuem o mesmo ofício, que militam no métier, sabem disso. Aliás, é voz corrente, entre todos os que acompanham a produção historiográfica de Anita, que um dos pontos, digamos, altos, dos seus livros é justamente a análise da participação de Prestes, na vida política do nosso país, baseada em farta documentação. Anita, como os seus livros, artigos, etc. demonstram, não está preocupada em monopolizar nada, muito menos se colocar como única herdeira de Prestes e Olga. Ela pesquisa, e baseada em documentos, insisto, escreve. E como escreve bem! Será que deve ser recriminada por isso também? [...]Por fim, quero me referir [...] a um outro aspecto [...] na personalidade de Anita: o seu caráter incorruptível. Nesse sentido, queiram ou não, os seus adversários, os seus críticos de plantão, ela é sim, a única herdeira de Olga Benário Prestes e Luiz Carlos Prestes, na limpidez do seu caráter, na solidariedade humana, na coragem, na sensibilidade invulgar que não precisa de comportamentos demagógicos, para se manifestar. (Ver Anita Prestes: herdeira de Olga Benário Prestes e Luiz Carlos Prestes, 28/10/2011; grifos de Laura de Aquino)
* Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro é professor adjunto da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF/UERJ), professor de história da rede municipal de ensino de Rio das Ostras (RJ) e membro do Instituto Luiz Carlos Prestes.
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