Por Christian Ingo Lenz Dunker.
Nos anos 1990 a Folha de São Paulo era considerada um jornal de esquerda. Diferente do Estadão, ela ocupava um lugar ativo na redemocratização do país, incluindo-se no movimento das Diretas Já e, posteriormente, dos Caras-pintadas que redundou na derrubada de Collor. Nesta época tornou-se um ícone a propaganda que começava com uma imagem ambígua, qual pontos ou pixels negros dispostas na tela.
Enquanto a câmera se afasta ouvimos que: “este homem pegou uma nação
destruída, recuperou a economia e devolveu orgulho a seu povo”, reduziu a
inflação, dobrou o produto interno bruto, aumentou o lucro das
empresas, tudo isso subsidiado em números e dados. Subitamente forma-se a
imagem e descobrimos que a figura em questão é Adolf Hitler. Mensagem
final: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Por
isso é muito importante tomar muito cuidado com a informação no jornal
que você recebe.”
Vinte e sete anos depois leio a coluna de Hélio Schwartsman comentando o Enem de 2015,
e percebo como o anúncio que ganhou o Leão de Ouro em Cannes permanece
atual. Porta voz do movimento que quer a política fora da Educação e
sóbrio representante da tendência avaliativa como instrumento para
modificação da educação no país, Hélio aponta neste Enem um “generoso
espaço para tópicos e autores caros à esquerda”, uma vez que 31% dos
autores da prova de humanas jogam no time da esquerda (7.8% da prova
total). Foi precisamente aqui que me lembrei da peça de propaganda, mas
agora em versão mais estatística. Ou seja, se 31% são de esquerda, 69%
são de direita? É possível contar mentiras dizendo a verdade,
ainda que os números eles mesmos não mintam jamais. Por este raciocínio a
neutralidade matemática impunha que faltavam ainda 19% para que a
esquerda tivesse 50% do Enem.
Nosso bacharel em Filosofia pela USP,
argumenta que o Inep devia buscar “ativamente uma certa neutralidade
ideológica no conjunto das questões”. Aqui o problema não é a
matemática, mas o conceito. Desde muito tempo não se considera mais que
podemos distinguir conteúdos ideológicos, politicamente tendenciosos, de
sua contrapartida científica, neutra e factual. A ideologia está nas
articulações, nas relações, no recorte dos fatos, na escolha dos temas,
nunca apenas nos autores brutos e suas escolas de pensamento. Eu diria
que há pelo menos 27 anos a própria Folha de São Paulo sabe
muito bem disso. O beabá no assunto reza que toda definição de ideologia
é ela mesma ideológica. As ciências humanas caracterizam-se por assumir
isso como traço imanente de seu objeto. Não estudamos apenas fenômenos,
mas interpretações que os homens criam para os fenômenos. Nesta época
de crescente disponibilização e barateamento de informação torna-se cada
vez mais crucial desenvolver, em nossos alunos, a capacidade para
operar criticamente com interpretações. Aqui o truque básico, contra o
qual eles devem estar advertidos, quando se trata de ciências humanas, é
a crença na existência de discursos neutros, imparciais e científicos,
no sentido de se destacarem angelicalmente de todos os interesses
humanos. Ora, sabemos que este é o sonho de toda ideologia: infiltrar
interesses políticos como se estes fossem fatos. Portanto, desenvolver ativamente uma neutralidade ideológica no Enem, requer um conceito melhor de ideologia.
Há uma diferença crucial entre esquerda e
direita. A esquerda tende a politizar os fatos, enquanto a direita
tende a despolitizá-los. Por isso a esquerda dirá que a direita faz
política por baixo dos panos (é o conceito clássico de ideologia),
enquanto a direita dirá que a esquerda torna políticos assuntos que são
técnicos (é o conceito ofensivo de ideologia como algo que corrompe,
seduz e manipula a alma). Quando nosso colunista afirma que “vale a pena
procurar um ‘pedigree’ dos autores citados” seria preciso perguntar
qual o conceito de raça aqui empregado? Quantas classes devemos contar
neste conjunto?
Surge então uma dificuldade. A esquerda
joga com seu time a céu aberto, nomes impressos nas camisas,
patrocinadores e números claros às costas, como no filme do Monty Python:
Marx com a 10, Žižek na ponta esquerda, Judith Butler com a sete, Paulo
Freire no meio; na zaga Sartre e Simone de Beauvoir (claro, foram
filiados ao Partido Comunista Francês), nas laterais Karl Manheim e a
Escola de Frankfurt. Agamben está no banco de reservas, sendo observado
pelo técnico Lenin, junto com todo surrealismo francês. Darwin também,
mas contundido – afinal, Marx dedicou O capital, ao autor de A origem das espécies. Foucault foi reprovado no teste de vestiário quando descobriu-se um inchaço neoliberal em seu tendão de Aquiles.
O problema subsequente será discernir o pedigree das outras raças: Jesus
Cristo, por exemplo, joga na direita da Renovação Carismática ou na
esquerda da Teologia da Libertação? E os que trajam a camisa da religião
por cima, mas por baixo vestem o colete apertado do dinheiro, das armas
e da exploração econômica da fé. Outro vira lata: Keynes, que advogava a
participação do Estado na Economia, é um vermelhinho enrustido ou um
liberal confesso? Consideremos que um time assim escalado poderia
equilibrar o campeonato da verdade: Heidegger (que foi nomeado reitor de
uma universidade nazista) no gol, Ezra Pound (que falou na rádio
italiana em favor do fascismo) na lateral direita, Joyce (que batia na
mulher) na zaga, Adam Smith e Saint Simon no meio campo (ambos
considerados revolucionários em suas épocas, mas depois viraram casaca).
No ataque está a geração inteira de 1968, libertários na juventude, que
se tornaram conservadores quando entraram para o time titular. Desafio
qualquer um a escalar um time que não possa ser qualificado como
tendencioso pelo time adversário. Contudo é esta ingenuidade abissal que
move os que querem a política fora dos conteúdos educativos.
E quanto ao time da Folha seria o
caso de perguntar se ele fez a lição de casa que quer aplicar aos
outros. Está com mais ou menos do que 31% de esquerdistas entre seus
articulistas?
Exagero nos exemplos apenas para mostrar
que nunca deveríamos pensar a ideologia como inclusão das ideias aos
seus autores, da pessoa ao grupo ao qual ela pertence, mas a partir da
articulação precisa de suas ideias em contexto. Neste caso todas as
questões do Enem exigiam interpretação de textos, ou domínio de
conceitos, critérios de rigor em ciências humanas. Bizarro que a direita
pregue a retórica da suspensão da oposição entre direita e esquerda,
para, na primeira ocasião, recorrer a ela quando está perdendo. Pior
ainda: desconhecer a diferença entre militância, conversão e manipulação
com a crítica de conceitos e o estudo de textos é inaceitável para quem
quer especular sobre educação. Aliás, não há nada de essencialmente
novo em sua pequena nota sobre o assunto. Escolhi este texto justamente
porque ele representa bem certo pensamento médio sobre a matéria.
O tema da redação do Enem foi a violência
contra a mulher no Brasil. Aqui o encaminhamento dado por nosso
articulista é menos condenatório. Se o equívoco anterior era considerar que autores de esquerda, antes de serem pensadores, cientistas, literatos ou educadores são pessoas de esquerda o
erro subsequente é deslocar este raciocínio para temas. Passamos agora
ao registro dos temas sociais, que seriam propriedade privada da
esquerda, enquanto a direita defende, vamos dizer assim, a economia e o
desenvolvimento.
Neste ponto, nosso egresso uspiano deixou
passar um “frango” clamoroso para todos aqueles que se interessam por
educação. Situações de avaliação não são apenas competição entre os
melhores para hierarquizar vencedores e perdedores. Seu propósito não é
aumentar o ressentimento social ou gerar métricas de desempenho. A
avaliação é um momento de aprendizagem e a prova tem um sentido
pedagógico. Ela instrui o aluno e o convida a pensar, dirigidamente,
sobre um problema. Por isso a escolha do tema não é a determinação
anódina de um tópico a discorrer, como se a cultura fosse um menu de
trivialidades inconsequentes.
A violência contra a mulher é justamente
um destes problemas urgentes que carecem de visibilidade pública, que
vivem e sobrevivem de segredos internos, mentiras privadas e amores mal
geridos. É justamente um tema que incomoda porque não sabemos bem como
falar sobre ele, ou seja, uma escolha exata e acertada para provocar
alunos aderidos à servidão curricular e desacomodar colunistas que
tirariam nota vermelha no Enem deste ano.
Christian Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do
Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP.
FONTE: Blog da Boitempo
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