domingo, 20 de setembro de 2015

“Portugueses na África”: crônica inédita de Lima Barreto encontrada na Biblioteca Nacional

A crônica “Portugueses na África”, escrita por Lima Barreto – provavelmente em 1907 –, nunca foi publicada; nem mesmo na coluna “Echos”, da revista A Floreal, à qual ela se destinava, segundo indicação do autor no verso de uma das folhas em que foi escrita. O original foi encontrado recentemente numa pasta do Arquivo Lima Barreto – que está preservado na Divisão de Manuscritos – pelo doutor em “Estudos Brasileiros (Literatura e Cultura)” pela Universidade de Lisboa, João Marques Lopes, hoje bolsista do Programa Nacional de Apoio a Pesquisadores Residentes (PNAP-R), da Biblioteca Nacional. João Marques Lopes estuda o modo como a obra de Lima Barreto, um dos mais importantes escritores brasileiros, foi recebida em Portugal.

“Portugueses na África” faz duras críticas à ocupação de territórios do interior de Angola até então sob o domínio de populações nativas. Angola começou a ser colonizada pelos portugueses no século XV, mas por longo tempo a dominação se concentrou no litoral. Só no final do século XIX, como efeito da insólita “Partilha da África” pelos países europeus envolvidos na expansão neocolonialista, Portugal ocupou o interior. Em 1975, um ano depois da Revolução dos Cravos, Angola se libertaria.

A ocupação militar em 1907, com a conquista da província de Guanato, foi saudada com regozijo pela maior parte da imprensa portuguesa e também por alguns jornais brasileiros. Lima Barreto contestou com pura mordacidade o tratamento colonialista e racista dado ao acontecimento:
Tenho para mim que esses negros flexíveis e adaptáveis a toda a sorte de misteres, desde o de bestas de carga até o nobilíssimo de adversários dos esforçados varões do Portugal moderno, têm que acabar um dia. Se isso se der, a velha metrópole vai se ver atrapalhada para arranjar quem se preste à demonstração experimental de sua heroicidade eterna […].
Na mesma pasta também foi achado o primeiro parágrafo da crônica “Os Jornais”, cujo tema é o assassinato do rei de Portugal, D. Carlos, em 1908.

TEXTO DE JOÃO MARQUES LOPES SOBRE OS MANUSCRITOS INÉDITOS

A seguir, leia texto do pesquisador João Marques Lopes sobre a importante descoberta.
Tendo em atenção o trabalho exigente e sistemático de Beatriz Resende e Rachel Valença na edição dos dois volumes de Toda a crônica, de Lima Barreto (Agir, Rio de Janeiro, 2004), não seria de esperar que ainda houvessem crônicas ou esboços de crônicas do escritor  carioca por identificar (e, consequentemente, por publicar).

Embora a jusante da nosso projeto de pesquisa, que consiste na “Recepção de Lima Barreto em Portugal: a documentação na Fundação Biblioteca Nacional (1909-1922), foi, portanto, com grande surpresa e alvoroço que, ao manusearmos uma pasta com seis tiras manuscritas e autógrafas de Lima Barreto, catalogada por Darcy Damasceno como “Pequeno Almanaque de Celebridades”, nos deparámos com duas crônicas desconhecidas.

Uma, intitulada “Portugueses em África”, está completa e centrava-se na denúncia de massacres de tribos índigenas então cometidos pelo colonialismo português nas possessões africanas no âmbito da campanha do Cuamato em 1907. Augurava mesmo a eventualidade de futuros movimentos independentistas negros.

A outra, cujo título seria aparentemente “Os jornais”, está incompleta e o tema é o impacto do assassinato do Rei D. Carlos na imprensa carioca. Impacto esse que Lima Barreto taxava de desmesurado e apenas compreensível à luz do então domínio do jornalismo do Rio de Janeiro por capitalistas da colónia portuguesa na cidade.

Embora não estejam assinadas ou datadas, a caligrafia não deixa dúvida quanto à sua autoria por parte de Lima Barreto e existem indicadores que permitem situar com certeza tanto a data quanto o lugar de publicação a que se destinavam, sobretudo no caso da primeira crônica.

Com efeito, “Os portugueses em África”, cujo original consta de três tiras manuscritas, autógrafas e numeradas, comporta no verso da última tira uma anotação a referir que “devia ser publicada na A Floreal” e no canto superior esquerdo da primeira página tem a indicação da coluna “Echos” a que se destinava nessa mesma revista. Trata-se, pois, de um texto escrito nos últimos meses de 1907.

Mas o mais importante não tem a ver com tais minudências, mas sim com a divulgação e a leitura  destas duas crônicas que jaziam esquecidas e desconhecidas no Fundo Lima Barreto da Divisão de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional.

TRANSCRIÇÕES

A seguir, as transcrições dos dois textos de Lima Barreto .

PORTUGUESES NA ÁFRICA [1]

Os srs. já conhecem a coisa. De ano em ano, os jornais daqui e de além-mar noticiam estrondosas vitórias dos portugueses sobre os indígenas de suas possessões de África. No tempo dos “Lusíadas”, talvez por não existir o jornalismo periódico, não davam tanta importância a feitos idênticos. Pelo menos não tenho notícia que Lisboa festejasse retumbantemente Antônio Salema, que, aí pelos fins de Quinhentos, matou dez mil índios perto de Cabo Frio; e se ainda nos resta memória das proezas da gente assinalada em Diu e Goa é porque alguns cronistas precavidos e meia dúzia de poetas entusiastas registraram-nas em prosa de bronze, ainda áspero, e em grandiosos versos, um tanto monótonos.

Hoje, não havendo farta messe de ações heroicas, lá pelo velho Portugal, os jornais e o governo não deixam escapar uma só vitoriazinha. Os heroísmos são narrados um a um, em frases cheirando ainda à Ilíada; os retratos são publicados e os plutarcas afiam a pena para mais essa centena de varões ilustres.

O que há em suma? Esta coisa simples: um destacamento português, de cem ou duzentas praças, derrota uma partida de desgraça dos negros, duplamente desgraçados por serem negros e por viverem em possessões do Portugal necessitado de vitórias.

Pelo jeito, o governo lusitano precisa demonstrar a vitalidade da nação; precisa lembrar ao mundo que o sangue heroico dos varões assinalados ainda não está de todo acabado; e para tal organiza, de quando em quando, umas justas art-nouveau em que morrem algumas dezenas de negros (ora, os negros!) e os portugueses praticam heroísmos dignos de versos gregos e do triunfo romano.

Tenho para mim que esses negros flexíveis e adaptáveis a toda a sorte de misteres, desde o de bestas de carga até o nobilíssimo de adversários dos esforçados varões do Portugal moderno, têm que acabar um dia. Se isso se der, a velha metrópole vai se ver atrapalhada para arranjar quem se preste à demonstração experimental de sua heroicidade eterna; e, a menos que a gente  a quem outrora Marte obedeceu queira combater os chimpanzés e os gorilas de África, Lisboa só terá festas com franco cunho guerreiro quando o governo das Necessidades sabiamente resolver condecorar com grandiosas  solenidades os valentões da Baixa que se portarem heroicamente nas rijas com tripulações de barcos estrangeiros de passagem pelo Tejo. Então é que havemos de ver o indigesto Teófilo a explicar esse afloramento do Heitor português na população da sarjeta alfacinha e o velho Camões a bimbalhar nas colunas dos jornais:

Cale-se de Alexandre e de Trajano,

A fama das vitórias…

E poderá assim Portugal, e por muito tempo, achar nos seus registos de nascimento, nomes que se possam contar naqueles outros em quem, como o Albuquerque terrível e o Castro forte, a morte não teve poder.

É ainda de Camões que, a meu ver, deve sofrer modificações convenientes para se adaptarem ao novo heroísmo de Portugal, se os nossos irmãos do Tejo querem um adaptador excelente, temos aqui à mão alguns experimentados em guerra. O Barão de Paranaguá calha, por exemplo…

[1] A ortografia foi atualizada

OS JORNAIS

O assassinato do Rei de Portugal vem demonstrar do modo mais eloquente de que maneira a nossa imprensa carioca é uma pura e simples exposição dos sentimentos e das opiniões do comércio português do Rio de Janeiro. O assassinato do rei D. Carlos, em si coisa lastimável para a sua família e os seus amigos, não podia ser no Brasil senão um caso secundário e provocador de condolências oficiais. Nada havia que o pudesse fazer um acontecimento capaz de enlutar e trazer coberta de tristeza uma grande cidade, de mais de oitocentos mil habitantes, situada a milhares de léguas do local do crime e em país estrangeiro.

Graças, porém, à manha inaudita de um...[1]

[1] O manuscrito autógrafo termina aqui. No arquivo, apenas se conserva esta versão parcial.


Veja a seguir as fotos dos manuscritos










FONTE: Biblioteca Nacional

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