Em entrevista, Adelar Pizetta fala sobre o legado e a atualidade do
pensamento de Florestan Fernandes, após 20 anos de seu falecimento.
Por Maura Silva
Da Página do MST
Da Página do MST
No último dia 10 de agosto, completou-se 20 anos da morte do sociólogo Florestan Fernandes.
Décadas após seus escritos, a contribuição de Florestan Fernandes para o desenvolvimento de um olhar sobre o Brasil permanece na ordem do dia para o debate da sociedade brasileira.
Em entrevista à Página do MST, João Avelar Pizetta, do MST e um dos principais entusiastas da criação da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), fala sobre o legado do sociólogo paulista e a sua influência nos dias de hoje.
Para Pizetta, nã há dúvida de que “o maior legado do Mestre Florestan é a sua própria vida”.
Florestan começou a trabalhar aos seis anos como engraxate e passou por diversas outras ocupações para auxiliar no sustento próprio e da família.
Filho de uma migrante portuguesa que prestava serviços domésticos, seu nome de batismo foi inspirado no personagem principal da ópera Fidélio, única escrita por Beethoven.
Viveu entre a "grande casa" de sua madrinha e cortiços. Estudou até o terceiro ano do primeiro grau, e só mais tarde, voltaria a estudar, formando-se em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo em 1951. Foi assistente catedrático, livre-docente e professor titular na cadeira de Sociologia da USP.
Após a promulgação do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), o governo militar o aposentou compulsoriamente. Florestan se exilou nos Estados Unidos e no Canadá, onde lecionou nas universidades de Yale, Columbia e Toronto.
Voltou ao Brasil em 1972. Em 1986 ingressou no Partido dos Trabalhadores (PT) e foi eleito deputado constituinte pelo partido. Em 1990, foi reeleito para a Câmara. Faleceu em 1995, devido a complicações no fígado.
Adelar Pizetta |
Qual o maior legado do pensamento de Florestan Fernandes?
Sem nenhuma dúvida, o maior legado do Mestre Florestan é a sua própria Vida. Uma vida repleta de ensinamentos, exemplos de superação e, acima de tudo, uma vida de coerência extrema com os problemas, as causas e os sonhos dos “de baixo”, isto é, da classe explorada.
Essa condição e opção não foi para com eles ficar, mas para construir instrumentos de organização e luta capazes de levar adiante processos de transformação social radical, que somente se daria por intermédio de uma Revolução.
Dessa maneira, pensamento/palavra/discurso/elaboração teórica e ação concreta estão intimamente ligados numa proposição verdadeiramente revolucionária.
Para Florestan, a revolução não é um momento, ela é um processo de ruptura radical com a ordem (portanto, “contra a ordem”) do capital e a construção de uma nova racionalidade, de uma nova sociedade alicerçada nos princípios e valores humanistas e socialistas.
Ele explicitou que a educação é o “mais grave dilema da sociedade brasileira”, pois, sem uma educação crítica e de qualidade, os explorados não conseguem adquirir “os meios que os possibilitem a tomar consciência da sua condição” e, acima de tudo, de resistir e lutar para transformar tal realidade.
Parafraseando o Florestan, a magnitude de um ser humano depende da sua capacidade de imaginar, e sem uma educação de qualidade a imaginação é paupérrima, e se torna incapaz de fornecer instrumentos capazes de transformar o mundo.
Lega-nos, na prática, que a clareza e a firmeza ideológica não abrem e admite espaços para negociação de princípios e valores morais e posturas éticas com os poderosos, não pode haver cooptação, nem postura fácil e superficial.
E mesmo adentrando para a academia, Florestan nunca abandou sua classe social...
Sem sombra de dúvidas, foi um homem de princípios morais e éticos provenientes da sua condição de classe, mas, acima de tudo, decorrentes da sua posição de classe e da perspectiva socialista.
Aliás, é a chama do socialismo que o manteve e o manterá sempre vivo e atual. Florestan nos ensinou que a classe trabalhadora deve construir seus instrumentos teóricos, organizativos e de lutas de forma autônoma, independente das influências da ideologia burguesa, isto é, não pode ser “cauda da burguesia”, ser “apêndice” da classe que historicamente domina e controla as mudanças políticas para manter o status quo.
A teoria por ele abraçada e produzida nos permite compreender melhor o Brasil, a sua formação, as suas incompletudes, deficiências, principalmente a maneira como a classe dominante organiza e exerce o poder de forma autocrática, dando a impressão de que o povo participa das instâncias governamentais democraticamente, mas, que no fundo a elite não permite, em hipótese alguma, que essa participação popular se efetive.
Florestan em manifestação em frente ao Congresso Nacional durante a Constituinte de 1988. |
Dai a característica da “intolerância” da classe dominante, impedindo
que o povo participe dos rumos e destinos da sociedade brasileira. De
maneira geral, podemos dizer que o legado do Florestan está na sua
energia inesgotável em defesa de uma causa justa/socialista; na
solidariedade humana, de classe e a na dignidade ética e moral; na
sensibilidade e o olhar terno dos/com os que sofrem exploração,
injustiças, discriminação; na determinação e na força dos grandes
lutadores que estão sempre preparados e dispostos para enfrentar as
batalhas; está no rigor científico e na seriedade diante dos problemas
reais que precisam ser resolvidos não com medidas e programa paliativos,
mas por intermédio de uma ruptura radical com nosso passado e com o
nosso presente.
Qual a importância da formação política na luta de classes e quais seriam seus principais desafios na atualidade?
Sabemos que todos os partidos, movimentos e instrumentos políticos da classe trabalhadora que se descuidaram da formação política na luta de classes não triunfaram, e se triunfaram, acabaram se desviando dos objetivos estratégicos da revolução.
Isso não significa dizer que a formação é que vai resolver todos os problemas e gerar as transformações necessárias. No fundo, as ideais não possuem força alguma a não ser se materializando nas ações das massas. As lutas são as parteiras das rupturas, mas elas devem estar sustentadas em uma teoria verdadeiramente revolucionária.
É preciso entender que a formação da consciência socialista, em todos os níveis, é uma das tarefas da revolução.
E como você avaliaria o atual processo de luta de classe?
O atual estágio da luta de classes é altamente complexo; setores da classe trabalhadora estão dispersos e fragmentados, para não dizer “perdidos”; a “crise” teórica e organizativa dificulta embates mais frontais com o capital e a burguesia.
Parece-me que o principal desafio na atualidade está em elaborar uma teoria que permite a classe compreender profundamente as contradições da realidade (que é histórica) e ajude a construir instrumentos de organização e de lutas capazes de canalizar as forças populares rumo às transformações profundas e radicais da sociedade.
Não basta estudar o que os teóricos já elaboraram. Isso é fundamental. O que se trata agora é produzir conhecimentos que permitam avançar na luta de classes. O terreno fértil para essa produção são as lutas políticas que superem as lutas corporativas e reivindicativas apenas, pois para o desenvolvimento da consciência política é fundamental mobilizar os trabalhadores para participarem dessas lutas que se abrem na sociedade brasileira.
Formar, formar, formar, mas vinculado a um Projeto de Emancipação Humana que vislumbre novos seres sociais e políticos dispostos e assumir tarefas históricas de amplitude maior das até aqui pensadas e desenvolvidas.
Um dos grandes desafios é formar nessa perspectiva da luta política, da luta pela superação da ordem do capital. Assim, não será uma formação da ilustração, mas uma formação de consciências que mantenham e assumam como horizonte histórico a continuidade da revolução brasileira.
Estamos vivendo um período conturbado no Brasil, com uma grave crise social, econômica e política. Não sabemos quais os rumos dessa crise, mas é certo que vivemos num período de transformações. O que Florestan poderia nos ensinar neste momento?
É certo que vivemos um momento político extremamente complexo e difícil, de enormes contradições e conflitos de vários matizes. Mas também um momento em que se forjam novas possibilidades, e por isso alimentamos a esperança e acreditamos nas iniciativas de superação desse período histórico.
Os períodos de crise são portadores dessas duas dimensões: uma que busca destruir o que está estabelecido pela ordem atual, e a outra busca construir o novo, inventar novos caminhos.
De acordo com Florestan, essas duas dimensões não são sucessivas, mas se entrelaçam no tempo e no espaço, por intermédio da ação dos homens e do confronto entre os interesses de classes.
O novo não nasce do nada, o novo nasce do velho, mas, para que vigore é necessário suplantar o velho, do contrário, ele não o supera dialeticamente, e esses embates não respondem às necessidades da nova ordem que se deseja construir.
Somente esse novo será capaz de tirar o País dessa situação. Do contrário, voltaremos a índices e situações cada vez mais alarmantes e piores do ponto de vista das conquistas da classe trabalhadora.
Ai podemos retomar algumas ideias aqui já abordadas: a questão da clareza nas análises e interpretações dessas contradições; a necessidade de construir força social, isto é, organizar e formar o povo, que se organizando, em processo permanente de formação da consciência e participando ativamente das lutas imediatas e estratégicas será capaz de levar adiante os processos de transformação.
No fundo, o ensinamento está na tese: “Não se deixar cooptar, não se deixar esmagar, lutar sempre!” Organizar e travar a luta de classes, em suas diferentes dimensões, é a condição essencial para manter vivo e continuar desenvolvendo com vigor o legado combativo e revolucionário do Florestan.
Este ano a ENFF está completando 10 anos. |
No mesmo ano em que se recorda os 20 anos do falecimento de
Florestan Fernandes, também se comemoram os 10 anos da Escola Nacional
Florestan Fernandes (ENFF). Qual o papel que a ENFF cumpre dentro destas
perspectivas?
A ENFF é resultado do acúmulo das experiências de formação desenvolvida no interior do MST desde a sua origem, mas também incorporando outras exercitadas no Brasil e na América Latina.
Também é fruto das demandas apresentadas pela realidade das lutas nas últimas décadas. A Escola transcende os limites do âmbito específico do MST e se coloca como um espaço de formação do conjunto da classe trabalhadora em nível continental.
Ela surge com o propósito de organizar e desenvolver a formação em um nível superior, isto é, na perspectiva da formação de quadros políticos para e na luta de classes. Pretende também ser um espaço de debates de ideias, de problemas orgânicos e metodológicos, de integração e fortalecimento de alianças, de produção de novos saberes e conhecimentos teóricos que fortaleçam os processos de lutas nos diferentes lugares de atuação dos militantes.
Possibilitar oportunidades de estudos e de aprofundamento teórico é fundamental nesse contexto histórico em que muitos movimentos e organizações não necessitam da formação política para desenvolver seus processos orgânicos e de lutas. Penso que Florestan nos convoca a estudar e pesquisar com rigor e profundidade os dilemas da atualidade para decifrá-los, e a partir desse entendimento fortalecer as lutas e processos de ruptura com a ordem vigente.
Como já afirmado, a formação só tem sentido se estiver vinculada a um projeto de transformação radical e profundo da sociedade, da economia, da cultura, da política, dos valores.
Desse modo que a ENFF pode cumprir esse papel no atual contexto sócio-histórico, inovando e ampliando suas políticas formativas para além das categorias específicas, permitindo processos de integração e articulação em nível nacional e internacional.
Não basta repetir, é preciso criar, inventar, construir novas metodologias, novas possibilidades de acesso e produção de conhecimentos.
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