Por Jorge Luiz Souto Maior.
Sugere-se
que a violência policial no Brasil está presente nos inúmeros casos de
“balas perdidas”, mas há uma violência institucionalizada, cujas balas
são bastante certeiras, quando se direcionam à repressão dos movimentos
sociais.
Essa não é,
por certo, uma questão nova no Brasil, e remonta à vinda da família Real
para o Brasil, em 1808. A questão social, desde então, foi tratada como
“caso de polícia”, conforme expressão consagrada pela fala de
Washington Luís na década de 20. Lembre-se, ainda, do pronunciamento
público do ex-Ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Julgman, em 20031,
no sentido de que era preciso “baixar o pau da lei” sobre o MST.
Expressão que, mais recentemente, no final de 2010, voltou à cena com o
atual Reitor da Universidade de São Paulo, João Grandino Rodas, em
Editorial do Boletim de Imprensa da Reitoria da USP, para atacar o
movimento sindical, também se expressou no sentido de que “ninguém está
acima da lei”. Em 2011, para deslegitimar o ato de estudantes da USP,
que se postaram contra a presença da Polícia Militar no Campus
Universitário, o governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin,
sentenciou: “ninguém está acima da lei”, sugerindo que o ato dos
estudantes seria fruto de uma tentativa de obter uma situação especial
perante outros cidadãos pelo fato de serem estudantes.
É, como se
vê, uma violência em nome da lei, mesmo que a lei, no seu conjunto, não
seja aplicada exatamente por aqueles que a utilizam para agir
violentamente e que com sua inércia elevam os conflitos sociais.
A questão é
que a repressão policial tem aumentado bastante, ultimamente, na exata
proporção do crescimento da força dos movimentos sociais.
Em 2011,
para a desocupação da reitoria da USP, onde se encontrava cerca de 70
(setenta) estudantes, sendo 25 (vinte e cinco) mulheres, foram
utilizados 400 policiais, dois helicópteros, cavalaria e diversas
viaturas. Um gasto bastante considerável ainda mais para um Estado, como
o de São Paulo, que devia, à época, cerca de R$20 bilhões em
precatórios intermináveis, sendo que dos quais R$15 bilhões referem-se a
precatórios alimentares, decorrentes de créditos trabalhistas e
previdenciários.
Em janeiro
de 2012, com fundamento em uma liminar de reintegração de posse,
proferida em um processo iniciado em 2004, sem qualquer motivação
específica baseada em fato novo, para a garantia de um direito de
propriedade que não cumpria qualquer função social, foi determinada a
desocupação de um terreno, conhecido por “Pinheirinho”, na cidade de São
José dos Campos, onde, depois de vários anos de ocupação, já viviam
1.577 famílias, ou, mais precisamente, 5.488 pessoas, sendo 2.615 com
idade entre 0 e 18 anos. Além disso, o assentamento, ou bairro como
também era tratado, continha 81 pontos comerciais, seis templos
religiosos e um galpão comunitário.
A questão
envolvia um feixe enorme de direitos. Assim, ainda que fosse para
privilegiar o direito de propriedade, sem a necessidade de justificá-lo
pelo pressuposto da finalidade social, haver-se-ia, no mínimo, que
assegurar que outros direitos não fossem, simplesmente, desprezados.
O ato da
desocupação, portanto, mesmo se considerada legítimo, deveria ser
precedido de uma organização tal que permitisse a preservação dos demais
direitos envolvidos. Ainda que os moradores se apresentassem armados,
dispostos a lutar contra a ordem judicial, as negociações, com todos os
meios institucionais possíveis, deveriam conduzir à solução da situação.
Mas não. O
Poder Judiciário e o Governo do Estado de São Paulo se uniram contra os
moradores do Pinheirinho, tratando-os como inimigos. Mesmo que se
pudesse querer utilizar algum argumento de legalidade, o que se viu foi
que, depois de quase oito anos de uma situação consolidada, em que um
terreno baldio, que servia à especulação imobiliária, foi transformado
em um bairro de moradores de baixa renda, foi uma extrema pressa para
devolver a posse do terreno à Massa Falida, proprietária do imóvel.
Para tanto,
foram mobilizados 2.000 Policiais Militares, helicópteros, cães e armas
de todo tipo (não letais). Os moradores foram expulsos, de forma abrupta
e violenta, de suas casas na calada da noite de um domingo, fazendo com
que essas pessoas deixassem para trás seus pertences, utensílios,
roupas e até documentos. Foram conduzidas a abrigos improvisados, sem
condições minimamente dignas de sobrevivência, onde foram obrigadas a
usar pulseiras com cores diferentes, para que pudessem ser identificadas
como moradoras do Pinheirinho.
Aquelas
pessoas foram vítimas de uma ação militar típica de guerra, que foi
programada durante quatro meses, conforme reconheceu, em recente
entrevista, a juíza do processo de reintegração, e que, por isso mesmo,
precisou ser executada passando por cima até do acordo judicial assinado
pelas partes, no processo da falência, em torno da suspensão da
reintegração. E um dado extremamente importante deve ser destacado, que
torna a origem da ação policial, a mando do Estado de São Paulo, ainda
mais questionável: em entrevista ao Jornal, O Vale, a juíza do processo
de reintegração, que concedeu a liminar, confessou que o ato policial
não estava plenamente sob o seu controle e que sabia dos riscos que
estava impondo aos moradores do Pinheirinho. Disse ela, textualmente: “A
operação me surpreendeu, positivamente.”
No domingo
de Carnaval, de 2012, nova ação policial na Universidade de São Paulo,
determinada por decisão judicial, promove a desocupação da Moradia
Retomada. E, mais uma vez, estudantes são conduzidos, à força, a
Delegacias de Polícia, para instauração de inquéritos.
O ano de
2013 foi marcado pelos ataques policiais aos manifestantes do MPL,
ganhando destaque a violência sofrida pela repórter Giuliana Vallone, da
TV Folha, em 13 de junho.
A tragédia
que envolveu a morte do cinegrafista da TV Bandeirantes, Santiago Ilídio
Andrade, atingido na cabeça por um rojão atirado por manifestantes, no
dia 06 de fevereiro, durante um protesto contra o aumento da passagem de
ônibus, no Centro do Rio, deu o impulso necessário para justificar uma
repressão mais violenta ainda das manifestações.
No dia 22 de
fevereiro de 2014, em São Paulo, 260 pessoas, dentre as 10.000, que
protestavam contra os gastos da Copa, foram cercadas pela polícia e
ficaram, então, em cárcere privado, na rua, com sua liberdade subtraída,
sem que tivessem cometido qualquer tipo de ilícito. Na ação três
repórteres que filmavam a cena foram agredidos, não por coincidência,
mas para que não houvesse registro. Além dos jornalistas, que estavam a
trabalho, foram detidos dentre outros militantes organizados do
movimento estudantil, diretores do DCE da Unicamp, militantes de partido
(1o de Maio/PSOL) e um professor da USP (ciências moleculares).
Mas o pior
ainda estava por vir, pois sob a desculpa da necessidade de identificar
os potenciais baderneiros, “black blocs”, foi iniciada uma seleção de
pessoas pela aparência e pela cor da pele, que resultou na libertação
dos que eram brancos e aparentemente estudantes, mantendo-se
aprisionados os que “pareciam” “black blocs”, quais sejam, os que
estavam de roupa preta e os pretos e pobres, segundo o critério adotado…
Para a
defesa da Copa, um evento de propriedade de uma entidade privada, a
FIFA, a quem se concedeu, inclusive, isenção fiscal plena, a Presidente
Dilma disse que “Não há a menor hipótese de o governo compactuar com
qualquer tipo de violência. Não deixaremos em hipótese alguma a Copa ser
contaminada”, entendendo por violência as manifestações das pessoas que
se sentiram aviltadas pela forma como o megaevento abalou a própria
soberania nacional. E completou afirmando que para os vândalos e
baderneiros será reservada “segurança pesada”2.
Na mesma
linha, um dos maiores craques da história do futebol mundial, Ronaldo
Cesário, decretou: “nos vândalos, mascarados, tem de baixar o cacete
mesmo”.
No dia 15 de
maio do mesmo ano, a polícia, literalmente, foi para cima dos
manifestantes para desmantelar mais um protesto que se realizava contra
os gastos da Copa, e que estava descendo a rua da Consolação.
Em meio a
tudo isso, a repressão policial se voltou fortemente contra uma greve de
metroviários, que ameaçava “atrapalhar” os negócios do futebol, sendo
que no ato de apoio à greve, muitas pessoas foram presas (treze
trabalhadores e um estudante da Faculdade de Direito da PUC/SP, Murilo
Magalhães).
No primeiro
dia Copa, 12 de junho de 2014, houve, em São Paulo, a obstrução da
realização de uma manifestação, seguida das prisões dos manifestantes
Fábio Hideki e Rafael Lusvargh. Mencionem-se, ainda, a repressão ao ato
na Praça Roosevelt, em 1º/07/14; a prisão de 23 ativistas no Rio de
Janeiro etc.
Impressiona,
por fim, o recente massacre ocorrido no Centro Cívico de Curitiba, no
dia 29 de abril de 2015, quando uma força de 1.600 policiais armados com
bombas de gás, balas de borracha, armaduras, helicópteros e cachorros
pitbulls atacou, de forma violenta, profissionais em greve que buscavam
realizar ato político de resistência à votação de uma lei contrária aos
seus interesses, lei esta que atinge toda a sociedade vez que interfere
na própria configuração do tipo de Estado.
Esse
contexto, apresentado de forma extremamente resumida, explica-se pela
avaliação há muito realizada por Octavio Ianni, no sentido de que no
Brasil,
“Em
geral, os setores sociais dominantes revelam uma séria dificuldade para
se posicionar em face das reivindicações econômicas, políticas e
culturais dos grupos e classes subalternos. Muitas vezes reagem de forma
extremamente intolerante, tanto em termo de repressão como de
explicação. Essa inclinação é muito forte no presente, mas já se
manifestava nítida no passado”3
A
criminalização contra os movimentos sociais e a pobreza foi uma
constante na história do Brasil, mas nos últimos anos a lógica de
repressão chegou a níveis alarmantes, com a tentativa de se editar uma
“lei contra o terrorismo”, sendo que, concretamente, o Judiciário até
criou uma instituição voltada a condenar, sumariamente, os acusados da
prática de ilícitos em manifestações (CEPRAJUD), o que levou a uma nota
de repúdio da Associação Juízes para a Democracia:
A
Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental,
de âmbito nacional, sem fins corporativos, fundada em 1991, que tem
dentre seus objetivos estatutários o respeito absoluto e incondicional
aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, tendo em vista a
Portaria TJSP – nº 8.851/2013, que institui o Centro de Pronto
Atendimento Judiciário em Plantão (CEPRAJUD), instalado neste ano de
2014, ao qual compete a apreciação de comunicações de prisão em
flagrante e medidas cautelares processuais penais, relacionadas às
grandes manifestações na capital que poderão ser exacerbadas durante a
Copa do Mundo, vem a público para dizer:
A
criação do CEPRAJUD, composto por juiz assessor indicado pela
presidência e juízes designados pela presidência do TJ, sem critérios
predeterminados, fere o princípio do juiz natural e a independência
judicial.
Em São
Paulo há sistema de funcionamento de plantões judiciais, com critérios
estabelecidos para designações de magistrados, de primeira e segunda
instância, sem o viés restrito, ou seja, para atuar exclusivamente em
razão das manifestações (como as que porventura forem realizadas na
Copa, ou greve etc…).
O
referido Centro é uma jurisdição de exceção, pois criado especialmente
para as causas que tenham como fundo as manifestações sociais. Criou-se
um tribunal para julgar um determinado cidadão: aquele que protesta.
Cumpre
a todos os órgãos do poder estatal a criação de mecanismos de
aperfeiçoamento da democracia, sendo que o primeiro instrumento que
propulsiona a sua concretização é o ato de protestar.
Nesta
medida, o Judiciário Paulista pode fugir à função do Poder Judiciário
em um Estado Democrático de Direito, que é o de controle da atividade
dos órgãos repressivos e de garantia dos direitos das pessoas. Fechando
os olhos para a criminalização das manifestações sociais, transmite
para a população que o direito fundamental de manifestar e protestar não
é lícito e subscreve o processo de criminalização.
O
Estado Democrático de Direito pressupõe o debate aberto e público. Não é
possível criar uma sociedade livre, justa e solidária sem o patamar da
liberdade de expressão e de reunião, sustentáculos da democracia.
Pretender cercear o exercício desses direitos significa retirar dos
cidadãos o controle sobre os assuntos públicos.
No
núcleo essencial dos direitos, em uma democracia, está o direito de
protestar, de criticar o poder público e o privado. Não há democracia
sem possibilidade de dissentir e de expressar o dissenso. O direito de
protesto é a base para a preservação dos demais.
Diante
de inconstitucionalidades e violações de direitos e princípios, a AJD
espera a revogação do ato que instalou o CEPRAJUD em São Paulo, mais
uma vez lembrando que há plantão judiciário na capital, que presta o
serviço jurisdicional, com rapidez e presteza.
André Augusto Salvador Bezerra
Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia
Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia
Fato é que
já passou mesmo da hora de se compreender que os movimentos sociais, que
representam as parcelas consideráveis de sociedade brasileira que se
encontram em posição inferiorizada e que lutam por melhores condições de
vida e, por consequência, contra todas as estruturas que privilegiam,
de forma totalmente injustificada, alguns setores da sociedade, têm o
direito de denunciar que a ordem jurídica só tem sido vista parcialmente
e utilizada como instrumento para os impedir de apontar os desarranjos
econômicos, políticos e culturais de nossa sociedade e de conduzir, por
manifestações públicas, suas reivindicações.
Além disso,
sua ação está amparada pela Constituição Federal, que é, como se diz, a
Lei Maior, que se estabelece a partir do princípio do Estado Democrático
de Direito, consagrando como objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e
solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.
3º.)
É importante
assumir, por fim, que a revolta é uma reação a uma violência, a
violência institucional do desrespeito reiterado à obrigação de se
implementarem as políticas públicas necessárias à efetivação dos
direitos sociais.
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NOTAS
1 Reportagem publicada pelo Jornal Folha de S. Paulo, edição de 29/07/03, p. A-7. 2 Dilma defende legado do Mundial e dia que haverá “segurança pesada”. Notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo, edição de 17/04/14, p. D-4. 3 Pensamento social no Brasil. Bauru: Edusc, 2004, p. 109.
1 Reportagem publicada pelo Jornal Folha de S. Paulo, edição de 29/07/03, p. A-7. 2 Dilma defende legado do Mundial e dia que haverá “segurança pesada”. Notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo, edição de 17/04/14, p. D-4. 3 Pensamento social no Brasil. Bauru: Edusc, 2004, p. 109.
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
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FONTE: Blog da Boitempo
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