por V. I. Lenine
Publicado em “Obras Escolhidas de V. I. Lénine”, em 3 tomos, Edições Avante!, 1977 – tomo 1 (pp. 35 a 39)
"O capitalismo venceu no mundo inteiro, mas esta vitória não é mais do que o prelúdio do triunfo do trabalho sobre o capital."
"Os homens sempre foram em política vítimas ingênuas do engano dos outros e do próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprenderem a descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou de outra classe. Os partidários de reformas e melhoramentos ver-se-ão sempre enganados pelos defensores do velho, enquanto não compreenderem que toda a instituição velha, por mais bárbara e apodrecida que pareça, se mantém pela força de umas ou de outras classes dominantes. E para vencer a resistência dessas classes só há um meio: encontrar na própria sociedade que nos rodeia, educar e organizar para a luta os elementos que possam – e, pela sua situação social, devam – formar a força capaz de varrer o velho e criar o novo."
A doutrina de Marx suscita em todo o mundo civilizado a maior
hostilidade e o maior ódio de toda a ciência burguesa (tanto a oficial
como a liberal), que vê no marxismo uma espécie de “seita perniciosa”. E
não se pode esperar outra atitude, pois numa sociedade baseada na luta
de classes não pode haver ciência social “imparcial”. De uma forma ou de
outra, toda a ciência oficial e liberal defende a escravidão
assalariada, enquanto o marxismo declarou uma guerra implacável a essa
escravidão. Esperar que a ciência seja imparcial numa sociedade de
escravidão assalariada seria uma ingenuidade tão pueril como esperar que
os fabricantes sejam imparciais quanto à questão da conveniência de
aumentar os salários dos operários diminuindo os lucros do capital.
Mas não é tudo. A história da filosofia e a história da ciência social
ensinam com toda a clareza que no marxismo não há nada que se assemelhe
ao “sectarismo”, no sentido de uma doutrina fechada em si mesma,
petrificada, surgida à margem da estrada real do desenvolvimento da
civilização mundial. Pelo contrário, o gênio de Marx reside precisamente
em ter dado respostas às questões que o pensamento avançado da
humanidade tinha já colocado. A sua doutrina surgiu como a continuação
direta e imediata das doutrinas dos representantes mais eminentes da
filosofia, da economia política e do socialismo.
A doutrina de Marx é onipotente porque é exata. É completa e harmoniosa,
dando aos homens uma concepção integral do mundo, inconciliável com
toda a superstição, com toda a reação, com toda a defesa da opressão
burguesa. O marxismo é o sucessor legítimo do que de melhor criou a
humanidade no século XIX: a filosofia alemã, a economia política inglesa
e o socialismo francês.
Vamos deter-nos brevemente nestas três fontes do marxismo, que são, ao mesmo tempo, as suas três partes constitutivas.
I
A filosofia do marxismo é o materialismo. Ao longo de toda a história
moderna da Europa, e especialmente em fins do século XVIII, em França,
onde se travou a batalha decisiva contra todas as velharias medievais,
contra o feudalismo nas instituições e nas ideias, o materialismo
mostrou ser a única filosofia consequente, fiel a todos os ensinamentos
das ciências naturais, hostil à superstição, à beatice, etc. Por isso,
os inimigos da democracia tentavam com todas as suas forças “refutar”,
desacreditar e caluniar o materialismo e defendiam as diversas formas do
idealismo filosófico, que se reduz sempre, de um modo ou de outro, à
defesa ou ao apoio da religião.
Marx e Engels defenderam resolutamente o materialismo filosófico, e
explicaram repetidas vezes quão profundamente errado era tudo quanto
fosse desviar-se dele. Onde as suas opiniões aparecem expostas com maior
clareza e pormenor é nas obras de Engels Ludwig Feuerbach e
Anti-Dübring, as quais – da mesma forma que o Manifesto Comunista – são
os livros de cabeceira de todo o operário consciente.
Marx não se limitou, porém, ao materialismo do século XVIII; pelo
contrário, levou mais longe a filosofia. Enriqueceu-a com as aquisições
da filosofia clássica alemã, sobretudo do sistema de Hegel, o qual
conduzira por sua vez ao materialismo de Feuerbach. A principal dessas
aquisições é a dialética, isto é, a doutrina do desenvolvimento na sua
forma mais completa, mais profunda e mais isenta de unilateralidade, a
doutrina da relatividade do conhecimento humano, que nos dá um reflexo
da matéria em constante desenvolvimento. As descobertas mais recentes
das ciências naturais – o rádio, os eletrões, a transformação dos
elementos – confirmaram de maneira admirável o materialismo dialético de
Marx, a despeito das doutrinas dos filósofos burgueses, com os seus
“novos” regressos ao velho e podre idealismo.
Aprofundando e desenvolvendo o materialismo filosófico, Marx levou-o até
ao fim e estendeu-o do conhecimento da natureza até o conhecimento da
sociedade humana. O materialismo histórico de Marx é uma conquista
formidável do pensamento científico. Ao caos e à arbitrariedade que até
então imperavam nas concepções da história e da política sucedeu uma
teoria científica notavelmente integral e harmoniosa, que mostra como,
em consequência do crescimento das forças produtivas, se desenvolve de
uma forma de vida social uma outra mais elevada, como, por exemplo, o
capitalismo nasce do feudalismo.
Assim como o conhecimento do homem reflete a natureza que existe
independentemente dele, isto é, a matéria em desenvolvimento, também o
conhecimento social do homem (ou seja: as diversas opiniões e doutrinas
filosóficas, religiosas, políticas, etc.) reflete o regime econômico da
sociedade. As instituições políticas são a superstrutura que se ergue
sobre a base econômica. Assim, vemos, por exemplo, como as diversas
formas políticas dos Estados europeus modernos servem para reforçar a
dominação da burguesia sobre o proletariado.
A filosofia de Marx é o materialismo filosófico acabado, que deu à
humanidade, à classe operaria sobretudo, poderosos instrumentos de
conhecimento.
II
Depois de ter verificado que o regime econômico constitui a base sobre a
qual se ergue a superstrutura política, Marx dedicou-se principalmente
ao estudo deste regime econômico. A obra principal de Marx, O Capital, é
dedicada ao estudo do regime econômico da sociedade moderna, isto é, da
sociedade capitalista.
A economia política clássica anterior a Marx tinha-se formado na
Inglaterra, o país capitalista mais desenvolvido. Adam Smith e David
Ricardo lançaram nas suas investigações do regime econômico os
fundamentos da teoria do valor-trabalho. Marx continuou sua obra.
Fundamentou com toda precisão e desenvolveu de forma consequente aquela
teoria. Mostrou que o valor de qualquer mercadoria é determinado pela
quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário investido na sua
produção.
Onde os economistas burgueses viam relações entre objetos (troca de umas
mercadorias por outras), Marx descobriu relações entre pessoas. A troca
de mercadorias exprime a ligação que se estabelece, por meio do
mercado, entre os diferentes produtores. O dinheiro indica que esta
ligação se torna cada vez mais estreita, unindo indissoluvelmente num
todo a vida econômica dos diferentes produtores. O capital significa um
maior desenvolvimento desta ligação: a força de trabalho do homem
torna-se uma mercadoria. O operário assalariado vende a sua força de
trabalho ao proprietário de terra, das fábricas, dos instrumentos de
trabalho. O operário emprega uma parte do dia de trabalho para cobrir o
custo do seu sustento e de sua família (salário); durante a outra parte
do dia, trabalha gratuitamente, criando para o capitalista a mais-valia,
fonte dos lucros, fonte da riqueza da classe capitalista.
A teoria da mais-valia constitui a pedra angular da teoria econômica de Marx.
O capital, criado pelo trabalho do operário, oprime o operário, arruína o
pequeno patrão e cria um exército de desempregados. Na indústria, é
imediatamente visível o triunfo da grande produção; mas também na
agricultura deparamos com o mesmo fenômeno: aumenta a superioridade da
grande exploração agrícola capitalista, cresce o emprego de maquinaria, a
propriedade camponesa cai nas garras do capital financeiro, declina e
arruína-se sob o peso da técnica atrasada. Na agricultura, o declínio da
pequena produção reveste-se de outras formas, mas esse declínio é um
facto indiscutível.
Esmagando a pequena produção, o capital faz aumentar a produtividade do
trabalho e cria uma situação de monopólio para os consórcios dos grandes
capitalistas. A própria produção vai adquirindo cada vez mais um
caráter social – centenas de milhares e milhões de operários são
reunidos num organismo econômico coordenado – enquanto um punhado de
capitalistas se apropria do produto do trabalho comum. Crescem a
anarquia da produção, as crises, a corrida louca aos mercados, a
escassez de meios de subsistência para as massas da população.
Ao aumentar a dependência dos operários relativamente ao capital, o regime capitalista cria a grande força do trabalho unido.
Marx traçou o desenvolvimento do capitalismo desde os primeiros germes
da economia mercantil, desde a troca simples, até às suas formas
superiores, até à grande produção.
E de ano para ano a experiência de todos os países capitalistas, tanto
os velhos como os novos, faz ver claramente a um numero cada vez maior
de operários a justeza desta doutrina de Marx.
O capitalismo venceu no mundo inteiro, mas esta vitória não é mais do que o prelúdio do triunfo do trabalho sobre o capital.
III
Quando o regime feudal foi derrubado e a “livre” sociedade capitalista
viu a luz do dia, tornou-se imediatamente claro que essa liberdade
representava um novo sistema de opressão e exploração dos trabalhadores.
Como reflexo dessa opressão e como protesto contra ela, começaram
imediatamente a surgir diversas doutrinas socialistas. Mas o socialismo
primitivo era um socialismo utópico. Criticava a sociedade capitalista,
condenava-a, amaldiçoava-a, sonhava com a sua destruição, fantasiava
sobre um regime melhor, queria convencer os ricos da imoralidade da
exploração.
Mas o socialismo utópico não podia indicar uma saída real. Não sabia
explicar a natureza da escravidão assalariada no capitalismo, nem
descobrir as leis do seu desenvolvimento, nem encontrar a força social
capaz de se tornar a criadora da nova sociedade.
Entretanto, as tempestuosas revoluções que acompanharam em toda a
Europa, e especialmente em França, a queda do feudalismo, da servidão,
mostravam cada vez com maior clareza que a luta de classes era a base e a
força motriz de todo o desenvolvimento.
Nenhuma vitória da liberdade política sobre a classe feudal foi
alcançada sem uma resistência desesperada. Nenhum país capitalista se
formou sobre uma base mais ou menos livre, mais ou menos democrática,
sem uma luta de morte entre as diversas classes da sociedade
capitalista.
O gênio de Marx está em ter sido o primeiro a ter sabido deduzir daí a
conclusão implícita na história universal e em tê-la aplicado
consequentemente. Tal conclusão é a doutrina da luta de classes.
Os homens sempre foram em política vítimas ingênuas do engano dos outros
e do próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprenderem a descobrir
por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas,
políticas e sociais, os interesses de uma ou de outra classe. Os
partidários de reformas e melhoramentos ver-se-ão sempre enganados pelos
defensores do velho, enquanto não compreenderem que toda a instituição
velha, por mais bárbara e apodrecida que pareça, se mantém pela força de
umas ou de outras classes dominantes. E para vencer a resistência
dessas classes só há um meio: encontrar na própria sociedade que nos
rodeia, educar e organizar para a luta os elementos que possam – e, pela
sua situação social, devam – formar a força capaz de varrer o velho e
criar o novo.
Só o materialismo filosófico de Marx indicou ao proletariado a saída da
escravidão espiritual em que vegetaram até hoje todas as classes
oprimidas. Só a teoria econômica de Marx explicou a situação real do
proletariado no conjunto do regime capitalista.
No mundo inteiro, da América ao Japão e da Suécia à África do Sul,
multiplicam-se as organizações independentes do proletariado. Este
educa-se e instrói-se travando a sua luta de classe; liberta-se dos
preconceitos da sociedade burguesa, adquire uma coesão cada vez maior,
aprende a medir o alcance dos seus êxitos, tempera as suas forças e
cresce irresistivelmente.
Prosvechtchénie n.º 3, março de 1913
Obras Completas
Assinado: V. I. de V. I. Lénine,
5.ª ed. em russo, t. 23, pp. 40-48.
Nota: O artigo
As três fontes e as três partes constitutivas do Marxismo foi escrito
por V. I. Lénine para o 30.º aniversário da morte de Karl Marx e
inserido na revista mensal bolchevique Prosvechtchénie (Educação), no
número 3 de março de 1913. A revista publicou-se em Petersburgo, de
dezembro de 1911 a junho de 1914. No outono de 1917 saiu mais um número.
A revista atingiu uma tiragem de 5000 exemplares. Lénine dirigiu a sua
atividade de Paris e, depois, de Cracóvia e Porónine.
FONTE: O Mafarrico Vermelho
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