Em novo livro sobre a crise do capitalismo, pensador húngaro fala sobre impasses das democracias
POR LEONARDO CAZES
Vitória. Apoiadores do Syriza comemoram o resultado da eleição grega - Alkis Konstantinidis/Reuters/25-01-2015 |
RIO - O filósofo marxista István Mészáros continua acreditando em uma alternativa socialista ao capitalismo. Aos 84 anos, completados em dezembro passado, ninguém pode acusá-lo de ser um saudosista da antiga União Soviética. Nascido na Hungria, ele foi discípulo do pensador marxista György Lukács no Instituto de Estética da Universidade de Budapeste e se tornou seu principal herdeiro intelectual. Quando os tanques soviéticos invadiram o país, em novembro de 1956, para reprimir o levante popular contra as políticas impostas por Moscou, Mészáros foi obrigado a deixar seu posto de professor e a se exilar na Itália, onde lecionou na Universidade de Turim, mudando-se mais tarde, e em definitivo, para o Reino Unido.
Hoje professor emérito da Universidade de Sussex, na Inglaterra, o filósofo defende a atualização da célebre frase da revolucionária alemã Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, para “barbárie se tivermos sorte”. Caso não haja uma alteração radical da organização da sociedade, argumenta ele, o destino da humanidade será a sua autodestruição através das guerras e da crise ecológica. Para superar este desafio histórico, Mészáros afirma que é preciso “conquistar” o Estado, comparado a uma montanha no título do seu novo livro, recém-lançado no Brasil, “A montanha que devemos conquistar” (Boitempo).
— O caminho para garantir a nossa sobrevivência está bloqueada por um obstáculo gigante representado pelo poder de decisão global do Estado. O perigo de fato é que uns poucos Estados nacionais têm o poder de destruir a humanidade inteira, poder defendido por eles como sua “segurança” e “autodefesa”. A esmagadora maioria da humanidade não pode fazer absolutamente nada contra isso e nada pode ser mais absurdo — afirma o professor em entrevista por e-mail ao GLOBO.
Mészáros compreende os Estados, tal como os conhecemos, como formações históricas do capitalismo. Eles teriam uma “função corretiva”, que não pode ser mais exercida num contexto de crise estrutural do sistema. Assim, ele propõe a mudança de um regime de “desigualdade substantiva” para outro de “igualdade substantiva”. Crítico ferrenho da democracia representativa e cético quanto à efetividade da chamada democracia direta, o filósofo defende uma “democracia substantiva”, com a desconcentração do poder de decisão das mãos dos Estados.
Enquanto suas ideias não se tornam realidade, ele observa com cautela o crescimento de partidos da esquerda na Europa, como o Syriza, eleito na Grécia, e o Podemos, já a segunda força política na Espanha. Para o professor, ambos são respostas às “cruéis medidas de austeridade” impostas aos dois países. Contudo, na sua opinião, os dois grupos precisam elaborar uma alternativa “sustentável historicamente” ao capitalismo para atingirem um verdadeiro sucesso. Syriza e Podemos, diz Mészáros, podem funcionar como catalisadores da união dos múltiplos movimentos de protesto surgidos no mundo nos últimos anos.
— Em algum ponto do futuro esses movimentos devem se unir para que sejam o motor da necessária mudança fundamental da sociedade. Nos resta torcer para que essa união aconteça rapidamente, antes que seja tarde.
Os Estados nacionais parecem ter cada vez menos poder frente a organismos internacionais, financeiros e interestatais. Assim, qual é o Estado que se deve “conquistar”?
A suposta redução do poder dos Estados nacionais é um grande exagero vocalizado por governos para justificar seus fracassos em promover até mesmo as limitadíssimas reformas sociais prometidas. Os fatos mostram o contrário. Alguns exemplos: o Syriza, eleito com larga votação, tenta hoje afirmar os interesses gregos contra o FMI e a União Europeia. No Reino Unido, nas eleições gerais de maio, o partido que deve ter o maior crescimento é o UKIP (de extrema-direita e eurocético). Pressionado, o Partido Conservador (do primeiro-ministro David Cameron) está ameaçando deixar a União Europeia caso não ocorram mudanças que atendam aos interesses do país. Espanha, Bélgica e Itália convivem com movimentos separatistas.
A possibilidade do próprio fim da UE não pode ser excluída. Assim, a realidade não é a eliminação das aspirações nacionais, mas o superaquecimento de um perigoso caldeirão de antagonismos e contradições entre os atuais Estados nacionais, aqueles que aspiram a se tornar um e até as estruturas criadas para solucionar os antigos antagonismos, como a UE. A crônica falta de solução para esses problemas apresenta grandes perigos para a sobrevivência da humanidade. Devemos ignorar o fato de que os Estados Unidos estão ameaçando armar a Ucrânia contra a Rússia, com possíveis consequências sérias e incalculáveis? E o confronto, num horizonte não muito distante, entre EUA e China por recursos naturais altamente disputados? Os antagonismos interestatais numa escala potencialmente autodestrutiva — um presságio foram as duas guerras mundiais do século passado, ainda sem as atuais armas de autodestruição total — são a consequência necessária da contradição do capital. O Estado que devemos conquistar para a sobrevivência da humanidade é o Estado tal como o conhecemos, capaz de se afirmar apenas na sua modalidade antagônica tanto internamente quanto nas relações internacionais.
Novos partidos de esquerda, como o Syriza (Grécia) e o Podemos (Espanha), estão em ascensão. Como o senhor avalia essas experiências? Quais mudanças são possíveis por dentro das estruturas atuais?
Syriza e Podemos são bons exemplos da resposta necessária à imposição das cruéis medidas de austeridade pelas autoridades financeiras internacionais e estatais a Grécia e Espanha, agravada pela submissão dos seus governos. Muito além desses dois países, as medidas de austeridade desumanizantes estão se tornando visíveis e intoleráveis em muitas partes do mundo capitalista, inclusive nos países que uma vez pertenceram aos privilegiados do “Estado de bem-estar”. O que torna esses partidos particularmente significantes não é apenas que nasceram no rastro de uma esquerda adormecida, mas também que alcançaram uma grande massa de apoiadores em um período muito curto de tempo. Neste sentido, eles sublinham a insustentabilidade da ordem de reprodução social estabelecida.
No mundo, ruas foram ocupadas por protestos contra o poder, sejam ditaduras ou democracias. Como o senhor avalia esses movimentos?
Assistimos às mais notáveis demonstrações de protesto nos últimos anos, mas as demandas das pessoas nas ruas não foram atendidas e sem dúvida reaparecerão, até mais intensamente, se continuarem a ser frustradas. Contudo, seria imprudente partir para uma conclusão otimista. É prematuro ver nesses protestos o motor de uma mudança fundamental na sociedade capitalista. Esses movimentos de protesto são certamente o prenúncio de uma mudança fundamental necessária. Para ter sustentabilidade histórica, em algum ponto do futuro eles devem se unir para que sejam o motor dessa mudança. Nos resta torcer para que essa união aconteça rapidamente, antes que seja tarde.
Por que o senhor compara o Estado a uma montanha?
A estrada que devemos seguir para garantir a nossa sobrevivência está bloqueada por um obstáculo gigante representado pelo poder de decisão global do Estado. E nós não podemos evitar ou ultrapassar essa montanha. O perigo de fato é que uns poucos Estados nacionais têm o poder de destruir a Humanidade inteira, defendido por eles como sua “segurança” e “autodefesa” nos seus confrontos, reais e potenciais, uns com os outros. A esmagadora maioria da Humanidade não pode fazer absolutamente nada contra isso e nada pode ser mais absurdo. A ideia de que é possível usar a “sociedade civil” contra o poder do Estado, na tentativa de superar as desigualdades estruturalmente arraigadas e saná-las de forma duradoura, é extremamente ingênua, para dizer o mínimo. Assim como as ONGs, essas organizações pateticamente limitadas que dependem, para o seu financiamento e funcionamento, dos recursos concedidos pelo Estado. O Estado é a estrutura política global de comando do sistema capitalista em qualquer uma das suas formas conhecidas ou concebíveis.
No livro, o senhor aponta que o chamado “fenecimento do Estado” é inevitável. Por quê?
Não se trata de uma questão de inevitabilidade. Dizer que o fenecimento do Estado é necessário significa apenas que se trata de uma condição vital para a solução dos problemas em jogo. Mas isso não significa que essa exigência será realizada inevitavelmente. Pelo contrário, ao reforçar o perigo de que o Estado, com seu gigantesco poder de destruição, coloque um fim catastrófico a todo esforço de transformação e emancipação, contrario toda a ilusão da “inevitabilidade histórica”. A ideia da necessidade do “fenecimento do Estado”foi concebida, primeiro, para combater a ilusão anarquista de que a “derrubada do Estado” resolveria tudo. O Estado em si não pode ser “derrubado”. Capital, trabalho e Estado estão profundamente interligados no metabolismo social historicamente constituído. Nenhum deles pode ser derrubado sozinho, nem ser “reconstituído” separadamente.
O senhor é crítico da democracia representativa e da democracia direta. Em vez disso, propõe uma “democracia substantiva". O que seria?
A defesa feita por Rousseau de algo parecido com a democracia direta, abraçada no início da Revolução Francesa, é anterior à democracia representativa. Esta foi concebida mais como uma reação do que uma forma original e sustentável de controle político. A democracia representativa foi convenientemente adotada em muitos lugares, mas produz resultados bastante limitados. A crítica de Hegel é certeira: “os Poucos supõem ser os deputados, mas eles são quase sempre os exploradores dos Muitos”. Apesar dos seus méritos relativos, a democracia direta é também muito problemática e está muito longe de perceber a grande tarefa histórica à sua frente. Até seu limitado contra-exemplo institucional de “delegados revogáveis” contra os “deputados representativos” provou ser totalmente incompatível, nos últimos dois séculos, com a ordem de reprodução social estabelecida. Já a democracia substantiva parte de uma igualdade substantiva e exige uma alteração radical no metabolismo social, substituindo o seu caráter alienado e a superimposição alienante de todo o processo de decisão política do Estado sobre a sociedade.
Mais de 20 anos após o fim da União Soviética, o senhor continua acreditando no socialismo. Por quê?
Em termos históricos, 20 anos é muito pouco, ainda mais quando a tarefa é a mudança radical de uma ordem de desigualdade substantiva para outra de igualdade substantiva. Esta é uma demanda não de 20, mas de 220 anos, e foi colocada por Babeuf (revolucionário francês do século XVIII). As raízes da implosão da União Soviética são profundas, como as contradições explosivas de um Império multinacional reprimir suas minorias nacionais. A maior e mais perigosa ironia da história moderna é que a outrora incensada “destruição produtiva”, uma das características mais problemáticas do capital, se tornou, na fase descendente do desenvolvimento do sistema capitalista, uma ainda mais insustentável produção destrutiva, na produção de mercadorias e da natureza, completada pela ameaça de destruição militar em defesa da ordem estabelecida. É por isso que a alternativa socialista não é só apenas possível, mas também necessária para a sobrevivência da Humanidade.
FONTE: O Globo
Mészáros tem sempre razão, no inicio de novo milênio e a sociedade capitalista só aumenta os problemas da humanidade, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista ambiental, o mundo atual vem acumulando problemas e nada de solução.
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