domingo, 4 de janeiro de 2015

Jornalismo envenenado desrespeita a memória de Mário Lago

Para Graça Lago, a nomeação de William Bonner para o prêmio Mário Lago "foi uma decisão política da Globo. Uma tentativa de fazer um desagravo ao Bonner."


Matéria da CARTA MAIOR




"Acredito que as palavras dela jogam luz onde queriam sombras," diz Mario Lago Filho, irmão da jornalista Graça Lago. Ela é a filha do ator Màrio Lago cuja indignação, em nota redigida há cerca de dez dias, mobilizou e continua repercutindo em todo o Brasil, nas redes sociais e na mídia digital. Ela denuncia a manipulação política da TV Globo mudando “o perfil do premio” que leva, há 13 anos, o nome de seu pai, tradicionalmente uma homenagem a profissionais - atores, atrizes, compositores, cantores - do mundo da dramaturgia e do entretenimento.

Este ano, de repente, o premio foi conferido a um jornalista - da Globo, é claro ... -, o editor chefe do principal telejornal da emissora que vem perdendo audiência de modo significativo. Um profissional duramente criticado, durante 2014, pela crescente manipulação do noticiário de modo geral e pela chocante agressividade ao entrevistar a Presidente Dilma Roussef, então em campanha eleitoral, com uma abordagem grosseira à candidata e definitivamente reveladora das suas ideologias particulares permeando o jornalismo envenenado que pratica.

Um exemplo acabado do tipo de jornalismo dos chiens de garde; os cães de guarda* das redações, como se referem os franceses àquele profissional que, em outra oportuna expressão, essa cunhada pelo jornalista Mino Carta, consegue ser pior do que os seus patrões.

“A questão é a mudança do chamado “perfil” do prêmio. Agora, teve uma conotação nìtidamente política,” escreve Graça, ao nos responder à entrevista. “Ele sempre foi dedicado a artistas, especialmente atores, com três exceções: Gilberto Gil, Roberto Carlos e Hebe Camargo. Foi uma decisão política da globo, com certeza. Uma tentativa de fazer um desagravo ao bonner. Mas, pela péssima repercussão que teve essa decisão, parece que foi um tiro no pé. Eles ainda não entenderam que o povo não é bobo.”

“Neste ano,” observa Graça Lago à Carta Maior, ”foi tudo diferente, desde o formato. A Globo transformou a premiação (que sempre foi despretensiosa) em um grande ato político. É importante frisar isso. Em um ato sem comparação na própria história da emissora, dedicou quase mais de uma hora do faustão ao prêmio, com inesgotáveis elogios ao bonner e ao jornal nacional. Foi quase um longa-metragem, um ato político com o objetivo de desagravar o jornalista e o decadente jornalismo global que vem sendo duramente criticado pelo  facciosismo, partidarismo e reacionarismo. A globo não faz jornal; faz panfleto. E o bonner é um dos alicerces dessa postura.”

O que mais indignou a família do ator falecido em 2002 e conhecido pela sua integridade e posições políticas à esquerda foi o fato da  Globo relacionar, no troféu, o nome de Mário Lago, militante notório e permanente das causas sociais e do Partido dos Trabalhadores à atuação de um mau jornalista que se arvora, com hipocrisia, imparcial, neutro e isento no exercício da profissão; mas que na verdade defende suas convicções reacionárias envenenando a informação cotidiana.  

“Um posicionamento que é, em tudo, o oposto do que o meu pai sempre defendeu e pelo que lutou a vida toda, o que rendeu a ele sete prisões políticas,” lembra a filha de Mário Lago. “ Além disso, desde 1989 papai estava alinhado com o PT, participou de campanhas do PT, militou no partido (embora não fosse filiado, porque também nunca se filiou a qualquer partido, nem ao PCB). Foi uma ofensa à memória dele, à sua história, a tentativa de associar o seu nome a algo e a uma pessoa que ele, se estivesse vivo, certamente condenaria e combateria. Papai não emprestaria o nome dele a esse papel. A mim, causou tanta indignação quanto como se tivessem entregado o Troféu Mário Lago diretamente ao retroaecio - (desculpem, eu não nomeio a pessoa.) ”

“E, como se não bastasse, o Bonner, na sua fúria antidemocrática, ainda lançou críticas às redes sociais especialmente àqueles que o criticam e ao jornalismo da  globo; portanto, nós. Nos chamou de robôs, de instrumentalizados, de estar a serviço de partidos (como se o JN não estivesse!). Foi demais.”

A família soube da premiação, na sua primeira versão, quando ela foi ao ar. “Foi uma surpresa. Fiquei profundamente emocionada quando, passados apenas sete meses da morte de papai, foi anunciado o prêmio, com um belo clipping sobre a trajetória dele e dedicado à grande atriz e pessoa de Laura Cardoso.”

Pergunto à Graça: Alguma vez a Globo procurou vocês pedindo autorização, até por uma questão de delicadeza, de consideração, de polidez, para usar o nome de Mário Lago neste troféu?

“Não. Mas nós procuramos não submeter a herança e a memória de papai a barreiras que tornem inaccessível o acesso a ele. Nesse aspecto, somos bastante liberais. O que impedimos é o uso indevido, é a distorção, é o uso comercial descontrolado, é o desrespeito. Então, o prêmio nos pareceu uma maneira de manter viva a memória dele junto àquele público. Uma coisa boa. Só neste ano, quando a globo imprime um caráter essencialmente político ao prêmio e usa o nome de papai para beneficiar uma pessoa contrária a ele é que isso pesou. Mas parece que foi o último ano do prêmio. Depois desta vez, espero sinceramente que sim.”

Vocês consultaram advogado, ou pretendem fazê-lo, para desautorizar a Globo de instituir, no futuro, esse premio com o nome do seu pai? Vocês vão à justiça?

“Depois de 13 anos, fica difícil, do ponto de vista jurídico, questionar a existência do Troféu Mário Lago. Mas não acredito que será necessário. Duvido que a globo repita a premiação.”
 
E vocês, filhos de Mário Lago, vão levar adiante o projeto de instituírem o verdadeiro Prêmio Mário Lago em 2015?

“Alguns amigos, como o produtor cultural Paulinho Figueiredo e o Márcio Brant, deram essa ideia, do Troféu Verdadeiro Mário Lago. A cerimônia seria no BIP-BIP, em Copacabana, único bar que tem projeto social e compromisso político. É um reduto democrático e cultural do Rio. Pode ser que role. Será uma votação democrática. Mas eu já tenho algumas indicações: se for artista, a cantora Beth Carvalho, guerreira de 2014, e o ator e eterno grande aprendiz Tonico Pereira. Se for jornalista, todos os profissionais dos blogs de resistência ao monopólio da mídia. Sempre recomendo: quem quiser se informar vá aos blogs.”
 
A repercussão do fato continua. Como ela está sendo agora?

“A repercussão é muito além do que eu pensava. O assunto esteve no topo dos assuntos mais populares em blogs como o Viomundo, Diário do Centro do Mundo, BR 24/7... é espantoso. Em um único dia, recebi mais de mil pedidos de amizade no facebook. Não estou dando conta de responder todas as mensagens. Só recebi três mensagens negativas, me condenando. O que mais vem é apoio. Há pessoas que até me chamam de corajosa, exemplar, guerreira. Isso tem muito a ver com a força que se acredita que a globo tenha. Muitos temem a globo, inclusive pessoas cujas carreiras nem passam perto do mercado da globo. Por isso, acho que acabou sendo um tiro no pé que colocou sob os holofotes o que estava se aquietando. Foi um erro enorme de marketing, falando a linguagem deles. Não sei quem aconselhou ou exigiu, mas esse alguém errou porque voltou a chamar enormemente a atenção para os desmandos da emissora.”

Nem todos percebem que em 50 anos, o mundo mudou e cada vez há menos Homers Simpsons na audiência do JN - aqueles mesmos robôs assim batizados pelo próprio editor chefe do noticiário, no passado.

Abaixo, a nota de Graça Lago.
 
 
“Primeiro, me apresento – sou Graça Lago, filha de Mário Lago, tenho 63 anos, 50 de militância política e 46 de jornalismo. O prêmio com o nome de papai foi instituído em 2002, ano da morte dele, e parecia uma homenagem bacana à memória dele. Nada grandioso, nem um pouco espetacular, apenas um prêmio corriqueiro de uma emissora de TV (onde ele trabalhou muitos anos) e destinado a homenagear artistas, principalmente atores. Nada especial, mas que poderia manter a sua lembrança viva. Bacana. 

 
Nunca nos consultaram sobre isso, mas confesso que fiquei profundamente emocionada quando, passados sete meses da morte de papai, foi anunciado o prêmio, com um belo clipping sobre a trajetória dele e dedicado à grande atriz e pessoa de Laura Cardoso. Durante todos esses anos, o prêmio se manteve em um patamar honesto, com homenagens a diferentes artistas. Ainda que não concordasse com um ou outro, nenhum ofendia a memória de papai; nem na escolha e nem na cerimônia, é importantíssimo registrar. 
 
Mas, desta vez, foi tudo diferente, foi tudo armado e instrumentalizado (como quer o bonner) para fazer da premiação um ato político, de defesa das orientações facciosas da globo e de seu principal (embora decadente) telejornal. Foi uma pretensa maneira de usar o prêmio para abafar as críticas que a partidarização do JN e de seu editor/apresentador vêm recebendo. 

 
Em tudo o prêmio fugiu aos seus propósitos originais. Bonner não é um artista, a não ser na arte de manipular e omitir os fatos. O evento virou um circo de elogios instrumentalizados. Enaltecer a “imparcialidade” com que ele e sua parceira conduziram as entrevistas com os presidenciáveis é esquecer que ele não deu espaço para uma só resposta de Dilma Rousseff; é esquecer que ele e sua parceira ocuparam mais da metade do tempo estipulado para a entrevista com a presidenta. É esquecer que esse tratamento não foi dedicado a qualquer outro entrevistado. É esquecer que, mesmo no auge das denúncias sobre os escândalos dos aeroportos de Cláudio e Montezuma, o sr. Aécio não foi pressionado nem um terço do que foi Dilma Rousseff para explicar os flagrantes delitos dos empreendimentos. É esquecer que, mesmo frente às denúncias da ilegalidade do jato de Eduardo Campos, a sra. Marina não teve qualquer questionamento contundente (e viajava, sim, no jato). Isso para não falar de mil e outros atos de atentado à informação, praticados no JN, como bem foi demonstrado pelo laboratório da UERJ.

 
Mas não parou aí. Ouvir o bonner criticar as redes sociais revirou o meu estômago. Ouvir o bonner chamar os que o criticam, e à Globo, de robôs instrumentalizados é inqualificável. É um atentado à democracia. 
 

Tudo demonstra que o prêmio, criado talvez até por força de uma admiração por meu pai, foi usado este ano politicamente, para proteger, com a respeitabilidade e memória de Mário Lago, o que não tem respeito, nem nunca terá.
 
Se a intenção foi política, politicamente me manifestei. 
 
Não poderia ouvir calada todas essas imensas ofensas à memória de meu pai. Meu pai era um homem político, e assim se manifestava e comportava cotidianamente. Não aceitaria, jamais, ser manipulado por excrescências como essa. Vi meu pai recusar propagandas bem remuneradas por discordar politicamente delas. Sempre trabalhou e ganhou o seu salário com a maior decência. Por sua postura, mereceu a admiração e o respeito até de homens como Roberto Marinho. No final dos anos 60, o Exército informou à Globo que queria papai como apresentador das Olimpíadas do Exército. Seria uma maneira de humilhá-lo, de jogar no lixo a sua biografia. Roberto Marinho recusou o pedido justificando da seguinte forma: “Se o Mário recusar, terei que demiti-lo; se o Mário aceitar, perderei o respeito por ele”. Meio século depois, a Globo tentou jogar no lixo a biografia do meu pai. A isso digo não e me manifesto publicamente sobre a imensa farsa montada nesta premiação do jornalismo mais instrumentalizado e faccioso deste país.
 
*Les chiens de garde, título do livro do jornalista e escritor Paul Nizan.

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