Por Glauber Ataide, Belo Horizonte
Como estudar a filosofia marxista? Qual a melhor forma de aproveitar o tempo que dedicamos ao estudo desta rica e fecunda tradição filosófica? Ao nos propormos a tarefa de estudar a filosofia marxista, o primeiro ponto que devemos ter em mente é uma “obviedade” que, infelizmente, não se mostra tão óbvia assim na prática de estudo dos militantes: a filosofia marxista é filosofia. Isso quer dizer que ela compartilha diversas características com outras correntes de pensamento não-marxistas, o que lhe permite ser identificada ou classificada enquanto filosofia. Embora ela apresente suas particularidades, não se deve perder de vista este ponto.
E o que é filosofia? Apesar de os currículos do ensino médio e quase todos os cursos de graduação terem uma disciplina chamada “filosofia”, elas pouco podem nos dizer sobre sua verdadeira essência, sobre o que realmente lhe caracteriza enquanto tal. Acontece que em muitos casos, principalmente no ensino superior, as disciplinas com o nome de filosofia são “forçadas” à grade curricular apenas por uma exigência do currículo padrão, o que resulta em uma pseudo-filosofia manca, mutilada. E as experiências pelas quais os estudantes passam com tal filosofia deixam como resíduo a falsa sensação de pelo menos “saber do que se trata” o assunto, o que na verdade é um erro, pois tomar conhecimento de alguns temas abordados por alguns filósofos não é a mesma coisa que saber o que é fazer filosofia.
E por não se saber o que caracteriza a atividade filosófica enquanto tal, tende-se, às vezes, a estudá-la com métodos importados das ciências humanas ou até mesmo das exatas, o que mais obstaculiza do que auxilia no processo. Mas a filosofia não é uma ciência humana. Uma curiosidade para ilustrar: já percebeu que dentro das universidades, o nome das faculdades que ofertam os cursos de filosofia geralmente tem nomes como “Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas” ou “Faculdade de Filosofia eLetras”, etc? Sim, pois sempre são coisas distintas. A filosofia não é uma ciência humana, e nem uma área do curso de Letras. A filosofia seria, de certo modo, “inclassificável”.
Mas não vamos tentar, neste momento, abordar diretamente o que é filosofia, pois além desta pergunta já ser em si um grande problema filosófico, não é exatamente necessário para estas breves dicas de como estudar a filosofia marxista. Nosso objetivo aqui é apenas apontar algumas incompreensões que são de grande prejuízo para o estudo da filosofia em geral e, particularmente, ao estudo da filosofia marxista.
Uma ampla bagagem cultural é o ponto de partida, não de chegada
Um ponto muito importante é que filosofar não é acumular conhecimento. A aquisição de uma vasta cultura é um pressuposto para se fazer filosofia, mas ela não se resume a isso. Não se “sabe” filosofia por já ter ouvido falar que Platão desenvolveu a teoria do Mundo das Formas, que Tomás de Aquino elaborou asCinco Vias para demonstrar a existência de Deus ou que Descartes disse “Penso, logo existo”. Da mesma forma, não se está estudando filosofia marxista ao saber enumerar quais são “as leis da dialética”, como se essas fossem leis da física que bastaria aplicar à realidade e pronto, está tudo feito. Kant já afirmava que não se aprende filosofia, só se aprende a filosofar. Isso aponta para o caráter eminentemente ativo ou prático da filosofia, no sentido de que ela é um fazer, e não mera acumulação de conhecimento.
Estudar outras correntes filosóficas além do marxismo
Trata-se de um erro, ao estudar filosofia, isolar determinado autor de sua época. Evitar isso é de fundamental importância para a filosofia marxista. Perde-se muito da riqueza do pensamento filosófico de Karl Marx ao não se compreender o contexto de onde ele surgiu, ou ao se limitar a resumos e manuais, recorrendo-se a chavões do tipo “Marx inverteu Hegel”, sem saber o que isso significa na verdade. Embora isso pareça óbvio aos marxistas, é dessa maneira que a maioria dos militantes estuda a obra filosófica de Marx: fora do contexto intelectual, filosófico da época, como se uma ou duas citações de Hegel bastassem para “contextualizá-lo”. Para deixar claro: não é apenas o contexto econômico que importa, mas também o contexto “espiritual” da época, o qual goza, segundo Marx, de uma “autonomia relativa” em relação à estrutura econômica.
Em suas obras, Marx está sempre em diálogo com autores de sua época, e quando lemos apenas as obras de Marx, sem ler ao mesmo tempo Hegel e o idealismo alemão, por exemplo, tem-se a impressão de que ele estaria sendo “contra tudo que estava lá”. E não é bem assim. Ao não ler em primeira mão as obras de Hegel não sabemos em que aspectos Hegel e Marx se aproximam, pois, quando lemos apenas Marx, ressaltam-se em nossa consciência muito mais as diferenças do que as aproximaçõesentre ambos. O importante para Marx, em suas obras, era mostrarem que ele era diferente de Hegel, em que ele estava definitivamente rompendo, já que as semelhanças eram muito mais claras para o público da época, já envolvido no debate, do que para nós hoje (lembremos que Marx foi um hegeliano de esquerda). Ao se ler os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, por exemplo, é muito evidente como Marx se expressava no espírito e nos termos do hegelianismo. Sua análise do proletariado como “classe em si” e “classe para si” é um claro exemplo disso, mas no texto ele não sinaliza isso dizendo algo como: “Neste ponto estou utilizando categorias hegelianas para definir o proletariado”. E se não temos familiaridade com a obra de Hegel, isso simplesmente passa batido.
Outro exemplo da importância de se entender o contexto intelectual se encontra no fato de Marx não ter sido o primeiro filósofo a estudar economia. Ora, o próprio Hegel já era um leitor das primeiras obras econômicas que surgiram em sua época, embora ali o capitalismo estivesse menos desenvolvido do que na época de Marx. De certo modo, pode-se afirmar que um dos motivos que levou Marx a perceber a importância da economia foi sua formação filosófica hegeliana. Ao contrário da pecha de “idealista” que lhe pregam, no sentido de que Hegel e todo o idealismo alemão só se preocupavam com as “ideias”, Hegel era um pensador muito preocupado com o concreto, com a realidade (Wirklichkeit é um termo muito comum em sua obra), de modo que ele chegou a dizer que “a leitura do jornal é a oração matutina do homem moderno”. O filósofo alemão Fichte também se envolvia em movimentos políticos e buscava elevar o nível de consciência do povo para promover mudanças sociais na Alemanha. Assim, Marx não foi nem o primeiro filósofo preocupado em transformar a realidade, nem o primeiro a estudar economia, embora tenha sido o mais consequente desses.
Dessa maneira, ao se ler Marx no espírito do próprio marxismo, isso é, ao se ler Marx de uma forma realmente marxista, compreende-se que ele não é um surgimento abrupto, anômalo e desconectado de seu próprio tempo, e que tampouco estão esgotadas todas as contribuições anteriores ou posteriores a ele. Pois o pensamento muito comum de que “tudo anterior a Marx foi superado, agora basta estudar Marx” é falso e leva ao dogmatismo, ou seja, à morte da filosofia.
Lênin foi claro sobre a necessidade de se estudar Hegel quando afirmou: “Não se pode compreender plenamente O capital, de Marx e, particularmente, o seu primeiro capítulo, sem ter estudado e compreendido toda a Lógica de Hegel. Portanto, meio século depois de Marx, nenhum marxista o compreendeu!”. Lênin inclusive deixou algumas anotações que foram publicadas postumamente sob o título Cadernos sobre a dialética de Hegel.
Lemos também, na Biografia ilustrada de Lênin (Elio Bolsanello, Edições Manoel Lisboa) que, em seus últimos dias, já bastante doente, mas preocupado com a consolidação ideológica do partido, Lênin visitou o Kremlin pela última vez, no dia 18 de outubro de 1923, “pôs em ordem seus cadernos, pegou três volumes de Hegele levou-os consigo…” (grifo nosso). Isto é, para aprofundar sua compreensão do marxismo, Lênin, em seus últimos dias, se preocupava em estudar Hegel.
Para o estudo da filosofia marxista é importante conhecer – repetimos – não só o contexto material e econômico da sociedade na qual as obras surgiram, mas também o contexto espiritual, no sentido daquilo que estava sendo produzido no campo das ideias, as quais não podem ser consideradas meros “reflexos” do contexto material (como interpreta erroneamente certa corrente mecanicista do marxismo).
Ter contato direto com os clássicos e evitar ao máximo os manuais
Outro ponto importante para o estudo da filosofia marxista é o contato direto com os textos dos filósofos. O recurso a manuais não pode ser o principal meio de acesso à filosofia. Embora manuais como Princípios Fundamentais de Filosofia, de Politzer, possam ter alguma utilidade como introdução, eles nunca poderão oferecer uma formação filosófica propriamente dita nem mesmo substituir a leitura das obras de Marx. Não há atalhos para isso. Uma das características das obras de filosofia, de forma geral, é que elas só começam a ser compreendidas (de fato, e não aparentemente) por volta da quinta leitura, e isso não é diferente com os Manuscritos econômico-filosóficos ou com A Sagrada Família, de Marx. Assim, o estudo da filosofia exige tempo e esforço, mas não é de modo algum impossível.
Uma compreensão profunda do real é um pressuposto para sua transformação
Certa vez, em uma carta, Hegel afirmou que se convencia cada dia mais da importância do trabalho teórico, e que, uma vez revolucionado o mundo das representações, a realidade (Wirklichkeit) não poderia escapar também dessa transformação. Embora faltasse a Hegel o conceito de práxis, que seria desenvolvido por Marx para efetuar tal transformação, percebe-se já nele certa preocupação em transformar o real, e a importância do trabalho teórico para isso. E não foram a vida e a obra de Marx um imenso e colossal esforço para interpretar a realidade e adquirir o conhecimento necessário para transformá-la? A obra mais extensa de Marx, O capital, não é uma especulação sobre como seria uma sociedade socialista, mas sim uma análise do capitalismo. E também Lênin, citando Engels em O que fazer?, afirma que a luta do proletariado se dá em três frentes: política, econômica e teórica.
A filosofia marxista deve ser estudada, portanto, como filosofia, e não como dogma, não como um conjunto de doutrinas prontas e acabadas que se esgotam no próprio Marx, pois Marx não se esgotou em si mesmo. Não reconhecer o que pode haver de verdade em toda a história da filosofia significa não compreender o próprio marxismo, que não foi uma criação ex nihilo de Marx. A superação dialética, do termo alemão Aufhebung (que não possui tradução exata para o português), envolve a conservação de parte daquilo que será superado, ou seja, não é a completa aniquilação e nem é um mero ecletismo. Isso quer dizer que a filosofia marxista deve ser estudada dialeticamente, em seu devir, em suas múltiplas determinações e conexões. Ao estudar a filosofia marxista enquanto filosofia, e não como dogma ou livro sagrado, os marxistas poderão apreender a essência daquilo que Marx realizou e continuar, segundo seu método, desenvolvendo a tradição filosófica do proletariado.
FONTE: A Verdade
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