quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Igreja levou três séculos para alçar Jesus à condição de Deus, diz historiador

REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA


"E vós, quem dizeis que eu sou?", pergunta Jesus aos apóstolos, numa das cenas mais importantes dos Evangelhos. De acordo com um historiador americano, se essa mesma pergunta fosse feita aos autores dos livros que compõem o Novo Testamento, cada um deles daria uma resposta diferente -e só um diria que Jesus é Deus.

Essa é a mensagem do livro "Como Jesus se tornou Deus", de Bart Ehrman, professor de estudos religiosos da Universidade da Carolina do Norte. Na obra, que acaba de chegar ao Brasil [publicação da Editora Leya], Ehrman analisa os textos produzidos pelos primeiros cristãos e acompanha as controvérsias sobre a natureza de Cristo ao longo de mais de três séculos.

Segundo ele, essa análise indica que os atuais dogmas cristãos sobre Jesus -para quase todas as igrejas, ele é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, tão eterno quanto Deus Pai- demoraram para se consolidar.

FILHO (ADOTIVO)

Ocorre, porém, que essa posição, hoje considerada ortodoxa, não está clara em muitos textos da Bíblia. Ehrman defende, por exemplo, que o Evangelho de Marcos, considerado o mais antigo (escrito em torno do ano 65 d.C.), apresenta uma perspectiva que os cristãos dos séculos seguintes chamariam de adocionista -ou seja, Jesus é um homem que é "adotado" por Deus como seu filho.

"É claro que muitos autores hoje vão tentar defender a ortodoxia de Marcos, porque afinal ele foi aceito pela Igreja", pondera Marcelo Carneiro, professor da Faculdade de Teologia de São Paulo.

"Mas, se você faz o exercício de ler Marcos separado do Novo Testamento, se ele fosse o único texto que temos sobre Jesus, fica difícil sustentar que Marcos acredita que Jesus era o Cristo desde a eternidade", analisa Carneiro.

Algumas décadas depois, os autores do Evangelho de Mateus e do Evangelho de Lucas usaram Marcos como fonte, mas inseriram narrativas da infância de Jesus (da qual Marcos não fala) no começo de seus textos. Eles mencionam, pela primeira vez, a gravidez milagrosa da Virgem Maria, e que Jesus seria divino desde a concepção.




Em todo caso, a crença na ressurreição de Jesus é um fator decisivo para o desenvolvimento das doutrinas sobre a natureza de Cristo. Foi por acreditarem que Jesus tinha ressuscitado que ao menos alguns de seus seguidores passaram a vê-lo como algo mais do que humano.

Uma figura-chave nesse movimento é o apóstolo Paulo. Em sua Carta aos Filipenses, ele diz que Jesus "estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou, tornando-se obediente até a morte". Por isso "Deus soberanamente o elevou e lhe conferiu o nome que está acima de todo nome".

Para Ehrman, essa passagem, e outras das obras de Paulo, indicam que o apóstolo via Jesus como um ser divino, mas não idêntico a Deus. Na prática, que Paulo via Jesus como o mais poderoso dos anjos, que se encarnou por ordem divina.

RISADAS NA CRUZ

A visão de Paulo não seria a última palavra. Escrito por volta do ano 100 d.C., o Evangelho de João é o primeiro a dar a entender que Jesus e Deus Pai estão em pé de igualdade desde a eternidade.

Nos dois séculos seguintes, outros grupos apresentariam perspectivas bem diferentes (veja quadro acima).

O dogma atual só seria definido no ano 325, no Concílio de Niceia, reunião organizada pelo imperador romano Constantino. Para Ehrman, o dogma enfim conciliou as várias perspectivas divergentes que existiam sobre Jesus nos livros do Novo Testamento.

FONTE: Folha de São Paulo, 25 de dezembro de 2014.

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