Como se constrói o discurso radical
Por Luciano Martins Costa (Comentário para o programa radiofônico do Observatório da Imprensa, 14/11/2014, edição 824)
Os três jornais de circulação nacional registram de maneira burocrática o anúncio de que o Corregedoria da Polícia Federal vai abrir sindicância para apurar o ativismo político de delegados encarregados de investigar o caso de corrupção na Petrobras que foi intensamente explorado durante a última eleição presidencial (ver, neste Observatório, “De onde vêm os factoides“). Apenas o Estado de S. Paulo, que publicou a história original, faz citação em nota da primeira página. Ainda assim, nada acrescenta ao leitor.
Trata-se de uma ação pífia, mais uma a revelar o critério de dois pesos e duas medidas da mídia tradicional conforme os escândalos afetam um ou outro lado do espectro ideológico em que o Brasil parece estar dividido.
Os editores nem se dão ao trabalho de mandar ouvir representantes dos dois principais partidos que se engalfinharam na campanha, não avançam na análise dos perfis das autoridades envolvidas, não manifestam a menor curiosidade em conhecer a organização de que participam e nem lhes passa pela cabeça questionar o efeito do ativismo dos investigadores sobre o resultado do inquérito.
No futuro, se e quando o Brasil superar esta quadra crítica no processo de amadurecimento de sua jovem democracia, pesquisadores haverão de rever o episódio e associá-lo a um contexto midiático no qual o poder decadente da imprensa se concentra em oferecer holofotes às expressões mais reacionárias da sociedade, com o propósito de produzir um ambiente conflagrado e obter pela pressão o que não alcançou pelas urnas. Sabe-se como funcionam essas táticas de manipulação dos sentimentos obscuros que em outros tempos conduziram massas de insensatos a perigosas aventuras golpistas.
A ação militante dos jornais é tão evidente que se pode até mesmo produzir um ranking do empenho de cada um em aprofundar o fosso ideológico que a própria imprensa vem cavando há anos, com o estímulo ao discurso irado e irracional de seus pitbulls. Entre oGlobo, a Folha e o Estado de S.Paulo há uma escala gradual de comprometimento com a crescente radicalidade do discurso político, que, como se vê, já contamina instituições como a Polícia Federal.
Um rio de boçalidades
Dos três grandes diários, o Estado é o que se envolve mais explicitamente na radicalização das posições, com artigos e editoriais sintonizados em uma campanha descarada para desestabilizar o governo. A reportagem sobre os delegados que atuam como cabos eleitorais é quase um acidente, ação de uma repórter que esticou a corda.
O Globo oscila diariamente, com manchetes que quase sempre exageram no tom em relação aos textos apresentados em suas páginas internas. E a Folha de S. Paulo, que nos últimos meses tem reforçado sua linha de “canelas-duras”, surpreende com lances esporádicos de jornalismo, mas não consegue dissimular seu engajamento partidário.
O discurso político comum aos principais veículos da imprensa brasileira tem agora um núcleo mais evidente: todos eles afirmam que há um clima de radicalidade nos debates, e apontam o dedo para o partido que lidera a aliança governamental. Na verdade, esse estado de espírito beligerante, que tem promovido rixas e rupturas até no interior de famílias, foi planejado e executado nas redações, com a manipulação de meias-verdades e a liberação do discurso chulo de colunistas irresponsáveis. A imprensa difundiu bobagens que não resistem à mais rasa das análises, como a tese de que o governo brasileiro pretende impor ao país um regime “bolivariano” ou coisa semelhante.
É preciso construir uma torre de Babel de ignorâncias para fazer qualquer conexão entre o Brasil moderno e a história recente da Venezuela, onde se consolidou essa ideologia que coloca o general Simón Bolívar, misto de libertador e tirano, como símbolo de uma espécie de socialismo indígena. No entanto, há sociólogos, filósofos, economistas, cientistas políticos, delegados federais, magistrados e até mesmo generais da ativa, invocando a ação direta dos militares sobre a política, como antídoto para essa fantasmagoria criada pela mídia.
Não se sabe onde irá desaguar esse rio de boçalidades, mas, quando a História vier cobrar a conta, a imprensa hegemônica neste começo de século não poderá alegar inocência.
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