Em meio a um acalorado debate eleitoral,
a Boitempo lança "O ódio à democracia", do filósofo francês Jacques Rancière.
Curto e provocativo, o ensaio faz um irreverente e erudito giro pela história
da filosofia política para jogar nova luz sobre alguns dos principais impasses
da democracia e da esquerda hoje.
Em novo livro, filósofo Jacques Rancière analisa contradições do sistema representativo
“A democracia que nossas oligarquias
defendem é, de fato, o confisco da democracia”, diz pensador franco-argelino
POR CARLA RODRIGUES, ESPECIAL PARA O GLOBO
O filósofo franco-argelino Jacques
Rancière, 64 anos, é desses pensadores contemporâneos resistentes a
classificações. Sua obra é normalmente associada ao campo da estética, mas essa
identificação não é suficiente para delimitar seu percurso, marcado por tomadas
de posição política mesmo quando o assunto principal parece ser arte, imagem ou
comunicação, temas dos seus principais livros já traduzidos no Brasil, como “O
espectador emancipado” (Ed. WMF Martins Fontes) “A partilha do sensível” (Ed.
34) e “O mestre ignorante” (Ed. Autêntica). Pautadas por uma ideia de
comunidade em que o conceito de comum não pretende excluir o direito à
diferença, as obras de Rancière fazem parte de outra forma de pensar a
política, para além de seu modelo moderno, fundamentado em estruturas de
representação dos partidos e instituições estatais de gestão da vida social.
Essas posições estão mais explícitas em seu novo livro, “O ódio à democracia”,
primeiro título publicado pela Boitempo Editorial, em que ele defende a noção
de comunidade como eixo orientador do seu pensamento político, como ponto a
partir do qual é preciso buscar a afirmação da autonomia popular em relação ao
Estado.
Escrito para influenciar o debate
político francês, marcado pelo avanço das forças de extrema-direita, é de
extraordinária pertinência no momento político brasileiro, como observa o
professor Renato Janine Ribeiro na apresentação à edição brasileira. É também
relevante ao momento político brasileiro sua crítica à democracia
representativa, cujo contraponto é a democracia direta. “A representação nunca
foi um sistema inventado para amenizar o impacto do crescimento das populações.
Não é uma forma de adaptação da democracia aos tempos modernos e aos vastos espaços.
É, de pleno direito, uma forma oligárquica, uma representação das minorias que
têm título para se ocupar dos negócios comuns”, argumenta ele, para dizer que a
necessidade de representação não é resultado do crescimento populacional, mas
uma estratégia de manutenção do poder na mão de poucos.
Para Rancière, odeia a democracia todo
aquele que pretende mantê-la restrita a uma forma de governo apropriada pelas
oligarquias em nome da promoção de um bem comum para o povo, mas que mantém uma
hierarquia sobre quem detém o controle de afirmar o que é o bem comum. Em
contrapartida, amar a democracia é defendê-la como forma de organização social
capaz de promover direitos a todos aqueles que nasceram sem nenhum título
particular para exercer o poder, sem riqueza ou conhecimento, como ele explica
nesta entrevista.
O que significa o ódio à democracia que
dá título ao livro?
Quis analisar e criticar uma tendência
muito forte na França, cuja particularidade é tomar a democracia não como forma
de Estado, mas como forma de vida em sociedade. Este ódio denuncia uma pretensa
invasão da igualdade e do igualitarismo em todos os domínios da vida e a
relação com uma figura central: o indivíduo da sociedade de consumo de massa,
que o ódio à democracia acusa de ser destruidor de todos os laços sociais
tradicionais. O que esse ódio expressa é o ódio à igualdade, e está acompanhado
do recuo efetivo da democracia e da igualdade nesses Estados. A democracia, no
estrito senso desse termo, é o poder do povo, o poder de qualquer um, dos que
não estão destinados ao exercício do poder por nascimento, riqueza,
conhecimento científico ou qualquer qualidade especial.
O senhor afirma que as sociedades, tanto
no presente quanto no passado, são organizadas pelo jogo das oligarquias. Não
existe governo democrático propriamente dito?
Insisti no fato de que o “poder do povo”
é impossível de ser contido em uma fórmula constitucional. Há uma contradição
entre esse poder e a forma estatal em geral, que é sempre uma forma de
privatização do poder de todos em benefício de uma minoria. Por um lado, isso
quer dizer que o poder do povo deve ter seus organismos e suas formas de ação
autônomas em relação às formas estatais. De outro lado, isso quer dizer que
aquilo chamamos de democracia representativa é um modelo misto, submetido a
duas formas contraditórias. De um lado, nossos Estados se afirmam como emanação
do poder do povo. Mas o poder do povo supõe ou bem um sorteio, ou bem mandatos
eleitorais curtos, não acumuláveis e não renováveis. Nós temos exatamente o
contrário disso: uma classe de políticos profissionais cujas frações
concorrentes governam em alternância, seguidos de análises e de soluções
imaginadas por especialistas e por comissões refratárias ao controle popular. A
“democracia” que nossas oligarquias defendem é, de fato, o confisco da
democracia.
O senhor afirma que “não vivemos em
democracias”, mas recusa leituras como as dos filósofos Hannah Arendt ou
Giorgio Agamben, que identificam dentro do estado democrático um estado de
exceção. O que são os “Estados de direito oligárquicos” em que o senhor afirma
que vivemos?
Não vivemos numa democracia porque a
democracia não é uma forma de Estado ou de sociedade, mas um poder que sempre
excede as suas formas. Mas isso não quer dizer que nós vivamos em um estado de
exceção e que a diferença entre as formas constitucionais seja negligenciável.
Nós vivemos em Estados oligárquicos moderados que são fundados sobre um
compromisso entre o poder das “elites” e o poder de todos. O sistema eleitoral
é, em todos os lugares, um pouco confiscado por uma classe de políticos
profissionais que trabalha em colaboração cada vez mais estreita com os
representantes das potências financeiras. Em contrapartida, a liberdade de
informação, de associação, de reunião e de manifestação permitem a existência
de uma vida democrática que transborda as simples formas parlamentares e
estatais da representação do povo. Esse é um ponto fundamental na minha
concepção da democracia: supõe a existência de um poder próprio do povo em
relação à máquina estatal. A democracia não é uma questão de instituições, mas
de atividade, uma questão de imaginação. Foi o que aconteceu ontem nas ruas, nas
fábricas ou nas universidades, é o que acontece hoje na internet, na circulação
de informação e nas formas de mobilização que passam pelas redes sociais, pela
ocupação das praças e pela sua transformação em espaço político. A tarefa
democrática é dar ao povo uma figura autônoma, separada da que se encontra
confiscada pelo poder estatal.
A democracia como um valor a ser
preservado a qualquer custo na vida política pode nos levar a pensar que quanto
mais democracia — no sentido de mais abertura aos que até ali estavam excluídos
da democracia — mais ameaça a ela?
Esse tipo de análise toma os efeitos
como causas e parte do fato de que populações que são mais ou menos rejeitadas
às margens da sociedade, pela extensão sem limite da lógica capitalista,
alimentam em parte os partidos eleitorais xenófobos, racistas ou
fundamentalistas. Mas esse fenômeno é uma reação ao caráter disfuncional do
sistema eleitoral e à ausência de uma verdadeira alternativa à lógica
dominante. Na França, os partidos oficiais de direita e de esquerda monopolizam
o poder para fazer uma política econômica igualmente a serviço das grandes
potências financeiras, e a extrema-direita torna-se a única forma a se
apresentar como exterior ao sistema dominante. O que ameaça a democracia é a
ligação cada vez mais estreita entre a oligarquia econômica e a oligarquia
estatal. Os pretensos riscos da democracia são de fato consequências do
confisco da democracia por essas oligarquias.
A figura do “homem democrático” se
sobrepõe ao consumidor, ao defensor das minorias identitárias, se resume a
meras demandas por direito individual?
A noção de democracia liberal é uma
noção equivocada. Sob esse nome, geralmente se quis designar um sistema em que
o poder coletivo encarnado no Estado seria contrabalançado pelos direitos
individuais. Mas os indivíduos cuja tradição dita liberal defenderam esses
direitos eram em primeiro lugar os proprietários. É a figura do proprietário
esclarecido, consciente da ligação entre a coisa comum e seus interesses
privados, que a democracia liberal identificou como cidadão, é o governo das
elites que ela procurou para se garantir em nome do “bem comum”. A filosofia
política moderna impôs uma visão da política que se concentra sobre a relação
entre comunidade e indivíduos. A filosofia política antiga sabia que se trata
de uma relação entre comunidades: não simplesmente de classes opostas por seus
interesses econômicos, mas entre maneiras de instituir comunidades. O poder do
“demo”, que não é o poder das classes populares.
Em certo momento o senhor define a
democracia como um processo de luta contra a privatização da felicidade e do
bem-estar, como luta contra a separação entre o público e o privado. Por quê?
Frequentemente se considerou a separação
entre o público e o privado como uma marca do bom governo, protetor dos
indivíduos contra a empreitada estatal. Mas eu gostaria de lembrar que essa
separação tinha originalmente outra função: excluir da política a maioria dos
humanos, confinando-os à esfera privada. Foi o que aconteceu, por exemplo, com
os trabalhadores, durante muito tempo considerados apenas no âmbito doméstico.
Foi também o que aconteceu tradicionalmente com as mulheres, consideradas
dependentes de seus pais ou maridos e restritas ao campo do casamento ou da
família. Mas essas lutas não confirmam os “limites” da democracia. Elas
confirmam, ao contrário, as capacidades de sua extensão. Essas formas polêmicas
de extensão da democracia transbordam ao que se reduz, frequentemente, nas
lutas das minorias defensoras de suas identidades. Trata-se antes de sair da
condição de “minoria” na qual está a grande maioria dos humanos, confinados
numa condição subalterna.
Carla Rodrigues é professora de
Filosofia (IFCS/UFRJ)
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