Por Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro*
Em 7 de março de 1990, aos 92 anos, faleceu Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Uma das figuras emblemáticas da história do Brasil - e também da história mundial -, Prestes faz parte da plêiade de revolucionários do século XX que, com seus erros e acertos, lutaram arduamente pela conquista do socialismo e do comunismo, enfrentando grandes sacrifícios e demonstrando total dedicação, profundas convicções ideológicas e inegável heroísmo.
Com a derrota do chamado "socialismo real", pode-se assistir a mais uma ofensiva da ideologia burguesa, a fim de revigorar a tese de que o capitalismo e a "democracia" burguesa constituem o coroamento da história da humanidade, em que o devir da história é esvaziado, uma vez que a burguesia se apresenta como o fruto e o fim da história - um processo de presentificação ou naturalização da história, que é tratado com muita propriedade por Karl Marx em sua obra "O 18 Brumário de Luís Bonaparte". Nesse processo, são proclamadas as vitórias e os sucessos alcançados pelos donos do poder, de hoje e do passado, nos permanentes conflitos sociais presentes na história, e, em contrapartida, os ideais e as lutas dos setores, que não obtiveram êxito em seus propósitos revolucionários e transformadores e, muitas vezes, sofreram duras derrotas, são esquecidos, silenciados, deturpados e combatidos. Trata-se de uma luta ideológica, de uma importante forma da luta de classes - a produção da História Oficial e sua instrumentalização no jogo político. Essa história é expressão da ideologia dominante, ou seja, dos interesses das classes dominantes. São os intelectuais orgânicos, comprometidos consciente ou inconscientemente com o status quo, que cumprem a função de produzir tal História Oficial.Conforme é apontado pela escritora chilena Marta Harnecker, as classes dominantes perceberam que "um povo sem memória é um povo sem futuro" e por isso mantêm-se empenhadas em atacar não só as suas lideranças, "como também, e fundamentalmente, a memória da luta dos nossos povos por meio de uma campanha interna sistemática com vista a distorcer a história, destruir a ideologia revolucionária e fomentar valores individualistas" (Harnecker, M. Tornar possível o impossível: a esquerda no limiar do século XXI. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 70).
Dessa forma, evoco aqui as palavras de Walter Benjamin:
O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
Com o mesmo propósito, destaco o texto de abertura da peça "Candaces, a reconstrução do fogo" (2003), encenação de Marcio Meirelles e Cia dos Comuns:
O Tempo é o Senhor das histórias.O Tempo guarda muitas histórias para sempre.As histórias ficam guardadas para sempre no reino do Tempo, quando não são contadas.As histórias não são contadas quando não existe voz que as conte, quando as vozes não são ouvidas, quando as vozes são caladas, quando ouvidos não conseguem escutá-las, quando ouvidos não entendem o que escutam. Temos muitas histórias pra contar.Temos então que restaurar nossa voz. Temos que acostumar os ouvidos ao som dessa voz restaurada. Temos que tirar as histórias do reino do Tempo.
Para quem quer contribuir para a construção de uma outra História, que possa contribuir para que sejam postas na ordem do dia as condições para transformações profundas da sociedade no sentido de um mundo mais justo e igualitário, é fundamental resgatar a memória daqueles sujeitos históricos, individuais ou coletivos, que, mesmo não conseguindo alcançar a vitória, deixaram um legado importante para as gerações subsequentes no que consiste na luta por um mundo melhor, em que a exploração do homem pelo homem tenha sido abolida para sempre e, consequentemente, as injustiças sociais, a fome, a miséria, o desemprego e o desamparo de milhões de pessoas tenham desaparecido.
Existe uma gama de personagens e acontecimentos esquecidos, silenciados, deturpados e combatidos pela História Oficial, aquela que é produzida pelos intelectuais comprometidos com os donos do poder. Se faz necessário restaurar essas vozes, acostumar os ouvidos ao som dessas vozes restauradas e tiradas do "reino do Tempo". Trata-se, por exemplo, do caso de Luiz Carlos Prestes. Personagem altamente controvertido da História do Brasil, sua vida é pouco conhecida e muito deturpada.Como homem de ação, um revolucionário, passando a maior parte de sua existência em condições extremamente adversas, não teve a preocupação de escrever suas memórias, nem circunstâncias favoráveis para elaborar reflexões aprofundadas sobre os diferentes momentos de sua atuação política. Contudo, indiscutivelmente, sua trajetória política confunde-se com os acontecimentos mais importantes e mais palpitantes da história brasileira e, em muitos momentos, da história mundial, desde o início dos anos 1920, quando Prestes participa dos primórdios do movimento tenentista até o seu falecimento em 7/3/1990.
Sobre as versões deturpadoras sobre Luiz Carlos Prestes e o PCB, partido do qual Prestes foi por muitos anos seu secretário-geral, a historiadora Anita Prestes faz a seguinte apreciação:
É necessário levar em conta que o tema aqui abordado constitui assunto extremamente controvertido e que a história oficial, como é habitual, encarregou-se de criar versões deturpadoras dos acontecimentos, versões que contribuem de alguma forma para justificar os interesses das classes dominantes na sociedade em questão, procurando sempre denegrir e desqualificar as tradições de luta tanto dos movimentos sociais como das lideranças populares e revolucionárias. [...]Pode-se acrescentar que, no que se refere ao PCB e ao seu líder máximo - Luiz Carlos Prestes -, as classes dominantes no Brasil puderam contar com a colaboração de numerosos comunistas "arrependidos". Tendo militado nas fileiras comunistas e, por vezes, participado inclusive da direção do partido, vários deles escreveram livros e artigos renegando sua atuação anterior e, a título de criticar os erros cometidos pelo PCB, por Prestes ou por outros dirigentes partidários, contribuíram para a elaboração de versões falsificadoras e negativistas da memória comunista no país e no mundo. (Prestes, Anita. Os comunistas brasileiros (1945-1956/58): Luiz Carlos Prestes e a política do PCB. São Paulo: Brasiliense, 2010, p. 20)
Por ocasião dos 24 anos da morte do Cavaleiro da Esperança, cabe lembrar da necessidade de um debate em torno do papel da "História Oficial" e da construção de uma história, que não é neutra, mas escrita, de acordo com o historiador Eric Hobsbawm, com base nas evidências, comprometida, portanto, com a verdade. Ou nas palavras do também historiador E. P. Thompson: "A história real revelar-se-á somente depois de pesquisa muito árdua e não irá aparecer ao estalar de dedos esquemáticos", uma vez que a "história (...) é composta de episódios e, se não podemos adentrá-los, não podemos adentrar a história absolutamente" (Thompson, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2001, p. 135, 133).
Há, ainda, a necessidade de retirar a pátina de preconceitos, consagrados e difundidos nos meios acadêmicos e na mídia - e reproduzidos inclusive por setores da esquerda -, que reveste a história de vida de Luiz Carlos Prestes. Que impede uma avaliação crítica séria de seu significado histórico, de seu papel enquanto liderança política e dos erros e acertos da prática do movimento comunista durante o século XX. Mentiras são contadas tantas e tantas vezes que se tornam verdades inquestionáveis e daí resulta a dificuldade de "tirar as histórias do reino do Tempo". Mas é preciso insistir, "acostumar os ouvidos ao som dessa voz restaurada", questionar as inúmeras deformações históricas, as inúmeras inverdades históricas e os silêncios sobre aqueles que lutaram contra o status quo, enfrentar os donos do poder e seus intelectuais orgânicos.
Queiram ou não os seus adversários e críticos de plantão, a ausência física de Luiz Carlos Prestes não nos impede de falar de legados políticos, entendidos como um conjunto de valores e princípios de modo a formar uma cultura política. Dos pilares dessa cultura política, o historiador Lincoln de Abreu Penna enumera três, ao participar do Seminário "Prestes - 20 anos sem o Cavaleiro da Esperança", realizado pela UFRJ, em setembro de 2010: o repúdio às injustiças sociais e a luta para superá-las; o primado do altruísmo, da solidariedade, sobre o individualismo; a vontade política voltada às transformações como motivação das ações na vida pública. Sobre eles, Lincoln traça os seguintes comentários:
O primeiro pilar esteve presente no engajamento de Prestes quando ainda jovem oficial do exército. Revoltou-se e liderou ao longo da década de vinte o movimento tenentista;O segundo acompanhou toda a sua trajetória de vida. O altruísmo e a solidariedade aos companheiros e aos segmentos sociais ligados ao mundo do trabalho sempre deixaram em segundo plano eventuais desejos individuais;E no que se refere ao terceiro pilar, a postura revolucionária o levou a trilhar uma das mais destacadas vidas no campo das lutas em defesa do ideário socialista;É por essa razão que a esperança foi intensamente representada pela figura do seu Cavaleiro, a percorrer o Brasil de Norte a Sul, de Leste à Oeste, levando a bandeira da libertação.
O historiador Lincoln Penna, conclui afirmando que de Prestes devemos guardar alguns princípios e ensinamentos:
O princípio da coerência ideológica;O ensinamento de que o compromisso com a causa da revolução supera os eventuais interesses individuais;O princípio e o ensinamento do dever cívico, que passa pela defesa da soberania nacional e do internacionalismo;A integridade moral diante das adversidades;A capacidade de contrariar maiorias, tendências dominantes, em nome da determinação da luta.
Nesse sentido deve ser entendida a seguinte afirmação: "Da mesma forma que Fidel Castro e os revolucionários cubanos se apoiaram na herança revolucionária de José Martí, a revolução brasileira não poderá avançar sem resgatar o legado de Luiz Carlos Prestes" (Prestes, Anita, op. cit., p. 160).
* Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro é professor de história da rede municipal de educação pública de Rio das Ostras, doutorando do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC/UFRJ) e membro do Instituto Luiz Carlos Prestes.
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