terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Corpos de militantes sepultados em Perus eram marcados como terroristas, diz ex-administrador


Eles eram enterrados como indigentes em caixões simples de madeira e em covas rasas separadas


GUSTAVO URIBE



SÃO PAULO – Os corpos de militantes de esquerda que eram sepultados como indigentes no Cemitério de Perus, em São Paulo, muitos deles desaparecidos até hoje, chegavam sob forte esquema de segurança da ditadura militar e eram identificados na declaração de óbito com uma letra “T” vermelha, de “terrorista”. Em depoimento nesta segunda-feira à Comissão Nacional da Verdade, o ex-administrador do Cemitério de Perus Antonio Pires Eustáquio, que esteve à frente do posto entre 1976 e 1992, relatou que, segundo funcionários do cemitério que trabalharam no local no início dos anos 1970, os corpos eram enterrados como indigentes em caixões simples de madeira e em covas rasas separadas.

- Nas declarações de óbito, havia informações mínimas dos corpos que chegavam. E, normalmente, alguns vinham com uma letra “T”, vermelha. Eu descobri depois que ela se referia a terrorista. Essa declaração ficava em minha posse e, depois do sepultamento, ela era usada para efetuar o registro de óbito. A letra “T” vinha em cima da declaração de óbito – contou.

De acordo com ele, os corpos dos militantes de esquerda eram enterrados nas mesmas quadras que os demais indigentes. A diferença é que eles chegavam ao cemitério acompanhados de militares e policiais e costumavam ser trazidos individualmente em camburões. Na época, ele chegou a devolver alguns corpos que não batiam com as descrições físicas presentes nas declarações de óbito. O ex-administrador do Cemitério de Perus não soube quantificar a quantidade de fichas identificadas com a letra “T”, mas ressaltou que eram poucas.

- Segundo funcionários da época, no início quando chegava o corpo daqueles que eles chamavam de terroristas, vinha às vezes um só. Não era comum, porque quando eram indigentes comuns vinham cinco ou seis no mesmo camburão. E quando chegava um militante, vinha um aparto político junto, um forte esquema policial de militares e carros oficiais. E ficavam no portão do cemitério e não deixava entrar ninguém até que fosse sepultado aquele corpo – disse.

Ele relatou também que houve uma preocupação da administração funerária de São Paulo, na década de 1970, em dar fim aos restos mortais. A solução encontrada foi abrir uma vala comum, na qual foram despejadas as ossadas de cerca de 1.500 pessoas. Ele foi informado que, na vala comum, foram sepultados entre seis e oito militantes de esquerda. De acordo com ele, após a Anistia Política, ele foi orientado, em uma reunião na capital paulista, a “não fazer alarde” e nem dar entrevistas sobre a vala comum. O pedido foi feito por membros da administração funerária em São Paulo durante a gestão de Mário Covas (1983-1985).

- Na reunião, os meus superiores do serviço funerário lembraram que havia tido a anistia e que apareceriam muitos curiosos procurando por pessoas desaparecidas. E pediram que eu não mostrasse o livro (de óbitos). Era para ele (Mário Covas) estar presente, mas ele não foi – disse.

O ex-administrador do Cemitério de Perus afirmou ainda que foi ameaçado de morte após a descoberta da vala e teve de se esconder no interior do estado de São Paulo, abandonando seus familiares.

Ativista contesta versão sobre morte de militantes da ALN

Antes, em depoimento à Comissão, a ativista de direitos humanos Iara Xavier Pereira contestou a causa oficial da morte dos ex-militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) Iuri Xavier Pereira, Ana Maria Nacinovic e Marcos Nonato da Fonseca e afirmou que a ditadura militar criou uma espécie de “máquina de ocultação de cadáveres” no país.

A versão oficial é de que os três militantes de esquerda foram mortos após troca de tiros com agentes de segurança, em 14 de junho de 1972, em São Paulo. Segundo ela, no entanto, há evidências de que os três foram, na verdade, capturados, torturados e depois executados.

Em depoimento, a militante de direitos humanos ressaltou que antes de serem transportados ao Instituto Médico Legal (IML), há indícios de que os três foram levados a outro local. O jornalista Francisco Carlos de Andrade, ex-militante da ALN, que participou da audiência pública, recordou-se de que viu os corpos de Iuri, Marcos e Ana Maria nas dependências do DOI-CODI, na capital paulista.

— Eu vi os três corpos no pátio da Operação Bandeirante e eles pareciam ter sido mortos a tiros, mas não dá para saber como eles foram mortos porque não vi o local da morte — disse.

Segundo Iara Xavier Pereira, o laudo do exame de necropsia mostra que o corpo de Iuri chegou ao Instituto Médico Legal vestindo apenas “cueca azul e meias cinza” e que o de Ana Maria chegou “totalmente despido”. No DOI-CODI, no entanto, Francisco Carlos de Andrade conta que os viu vestidos, o que reforça a tese de que eles teriam sido levados a outro local.
De acordo ainda com a ativista de direitos humanos, em 1997, foram realizadas exumações nos restos mortais dos três militantes de esquerda as quais revelaram que as condições das mortes foram distintas das apresentadas no laudo da necropsia, tanto no número de projéteis que atingiram os corpos como nos locais dos tiros.

Segundo o perito Mauro Yared, que participou também da audiência pública, não há como dizer se as lesões que foram encontradas nos corpos dos militantes de esquerda foram causadas por tortura, mas, de acordo com ele, elas não são características de troca de tiros, como atestada na versão oficial da morte dos três.

— Os peritos trazem notícias que não foram relatadas à época e a Comissão Nacional da Verdade está absorvendo essas informações para um grande relatório — afirmou o ministro José Carlos Dias.

No depoimento, Iara Xavier Pereira afirmou ainda que havia uma espécie de modus operandi na ditadura militar para ocultar cadáveres de militantes de esquerda, como a emissão de documentos e laudos falsos.

— É provável que a maioria dos desaparecidos, nos centros urbanos, foi sepultada em cemitérios com identidades falsas. Eles produziam um documento falso, havia um laudo falso, e eram sepultados. Eles sumiam — disse.




FONTE: O Globo

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