domingo, 23 de fevereiro de 2014

A ameaça fascista na Venezuela

"contrariando o que alguns ingenuamente postulam, não existe uma direita que seja "oposição leal" a um governo genuinamente de esquerda. Menos ainda quando se trata de uma direita manipulada por controle remoto a partir da Casa Branca. Se ela se comporta com lealdade é porque esse governo já foi colonizado pelo capital"

"o que está em jogo nesse momento não é apenas o futuro da Venezuela, mas o de toda Nuestra América"


Por Atilio A. Boron


A escalada desestabilizadora que atualmente sofre a Venezuela bolivariana tem um objetivo inegociável: a derrubada do governo de Nicolás Maduro. Não há um excesso de interpretação deste escritor nesta afirmação. Ele foi expressado em reiteradas ocasiões, não só pelos manifestantes de direita nas ruas, senão por seus principais dirigentes e instigadores locais: Leopoldo López (ex-prefeito do município de Chacao, em Caracas, e chefe do partido Vontade Popular ) e María Corina Machado, deputada por Junta-te a Assembléia Nacional da Venezuela. Em mais de uma ocasião estes se referiram às intenções que perseguiam com seus protestos utilizando uma expressão que regularmente apela para o Departamento de Estado: "mudança de regime", forma amável e eufemística que substitui a desprestigiada "golpe de estado". O que se busca é justamente isso: um "golpe de estado" que ponha fim à experiência chavista. A invasão da Líbia, a derrubada e o linchamento de Muammar Gaddafi são um exemplo de "mudança de regime"; há meio século os Estados Unidos estão propondo sem êxito algo semelhante para Cuba. Agora estão tentando, com todas as forças, na Venezuela.

Essa feroz campanha contra o governo bolivariano - na realidade, um processo de fascistização de longa data - possui raízes internas e externas, intimamente solidárias e ligadas a um objetivo comum: acabar com o pesadelo estabelecido pelo Comandante Hugo Chávez desde que assumira a presidência em 1999. Para os EUA, a autodeterminação venezuelana - afirmada sobre as maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo, a derrota da ALCA e os avanços dos processos de integração e unidade na América Latina e Caribe (a UNASUL, o Mercosul ampliado, a CELAC, o Petrocaribe, entre outros) impulsionados como nunca antes por um líder bolivariano - é um desafio intolerável e inaceitável, merecedor de uma lição exemplar. Para a oposição interna, o chavismo significou o fim das prebendas e dos privilégios obtidos mediante colaboração com o governo dos EUA e empresas norteamericanas no saque e pilhagem da renda petroleira. Tal país, por sua vez, encontrava nos dirigentes e nas organizações políticas da IV República seus sócios menores e imprescindíveis operadores locais. Tanto Washington como seus lacaios estavam seguros de que o chavismo não sobreviveria ao desaparecimento físico de seu fundador. Porém, com as eleições presidenciais de 14 de abril de 2013, as suas esperanças foram frustradas: Nicolás Maduro venceu Henrique Capriles com um percentual muito pequeno, mas suficiente e indiscutível, de votos. A resposta desses oligarcas travestidos de solitárias figuras da república foi primeiro negar o veredito das urnas e depois desencadear protestos violentos que mataram mais de uma dezena de jovens bolivarianos, feriram cerca cem pessoas, além de terem destruído numerosos edifícios e propriedades públicas. Cabe destacar que ainda hoje, 10 meses depois das eleições presidenciais, Washington ainda não reconheceu formalmente a vitória de Nicolás Maduro. Por outro lado, o inverossímel Prêmio Nobel da Paz levou poucas horas para reconhecer como vencedor das eleições presidenciais hondurenhas de 24 de novembro passado - viciadas para além das palavras e fraudulentas como muito poucas -, o candidato da "embaixada" Juan O. Hernández. O imperialismo não se equivoca ao escolher seus inimigos: os Castro, Chávez, agora Maduro, Correa, Morales. Além disso, contrariando o que alguns ingenuamente postulam, não existe uma direita que seja "oposição leal" a um governo genuinamente de esquerda. Menos ainda quando se trata de uma direita manipulada por controle remoto a partir da Casa Branca. Se ela se comporta com lealdade é porque esse governo já foi colonizado pelo capital. Apesar da violência dos militantes da Mesa da Unidade Democrática, que sustentava a candidatura de Capriles, o governo conseguiu restabelecer a ordem nas ruas. Contribuíram para isso a clara e enérgica resposta governamental e a certeza que a direção da MUD tinha de que as próximas eleições municipais de 08 de dezembro - que a direita caracterizou como um plebiscito -  permitiriam-lhes derrotar o chavismo para em seguida exigir a imediata renúncia de Maduro ou, no pior dos cenários, convocar um referendo revogatório antecipado sem ter que esperar até meados de 2016, conforme estabelece a Constituição. Mas o tiro saiu pela culatra, porque eles foram amplamente derrotados por quase um milhão de votos e nove pontos percentuais de diferença.

Atônitos diante do resultado inesperado - que pela primeira vez oferecia ao governo bolivariano a possibilidade de gerenciar durante dois anos os assuntos públicos e administrar a economia sem ter que se envolver em virulentas e perturbadoras campanhas eleitorais -, os antichavistas peregrinaram a Washington para redefinir sua estratégia em função das necessidades geopolíticas do império e receber ordens, dinheiro e ajuda de todos os tipos para apoiar o seu projeto desestabilizador. Derrotados nas urnas, a prioridade imediata agora era, como exigira Richard Nixon para o Chile de Salvador Allende em 1970 , a de "fazer a economia gritar". Daí as sabotagens, as campanhas de desabastecimento programado e a desenfreada especulação monetária (tal como recomenda no seu manual de operações o especialista da CIA Eugene Sharp). Também os ataques na imprensa, na qual as mentiras e o terrorismo midiático não encontram limites ou escrúpulo moral e, rapidamente, em conclusão, o "aquecimento das ruas" buscando criar uma situação similar à da cidade de Benghazi, na Líbia, capaz de perturbar completamente a economia e desencadear uma gravíssima crise de governabilidade que tornasse inevitável a intervenção de uma potência amiga, que já sabemos qual é, para auxiliar os venezuelanos a restaurar a ordem rompida.

Todas essas iniciativas, uma após a outra, fracassaram. Mas nem por isso a direita abandonará seus propósitos sediciosos. Leopoldo López acabou de se entregar à justiça e é de se esperar que isso fará cair, sobre ele e a sua comparsa, María Corina Machado, todo o peso da lei. Ambos carregam várias mortes em suas costas e a pior coisa que poderia acontecer à Venezuela seria que o governo ou a justiça não chamassem a atenção para o que se oculta dentro do ovo da serpente. Em situações como essas, e diante de inimigos como estes, qualquer tentativa de "reconciliação nacional" ou de "linha branda" é caminho certo para a própria destruição. Os fascistas e o imperialismo só entendem a linguagem da força. Lopez e Machado deverão receber uma punição exemplar, respeitando os marcos da legalidade vigente, e não deveriam ser descartadas violentas manifestações para exigir a sua imediata libertação. Tampouco se pode menosprezar a hipótese de que, em seu desespero, a direita apele a qualquer recurso, por mais aberrante que seja. Mas o inquérito e a condenação dos instigadores de tanto derramamento de sangue não será suficiente para afastar o risco de uma queda brutal do governo bolivariano; a única garantia  se fundamenta na ativa mobilização e organização das massas chavistas para apoiar "sua revolução", com seus muitos acertos e também seus erros. Essa é a única forma de evitar o perigo de um assalto fascista do poder, que poria um fim sangrento à gesta bolivariana, desencadeando uma onda reacionária que reverbaria em todo o continente. Dessa forma, o que está em jogo nesse momento não é apenas o futuro da Venezuela, mas o de toda Nuestra América.


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