quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Os 30 anos do MST e a crítica do direito



Por Tarso de Melo

Por ocasião dos 30 anos do MST, nesta data, publico aqui (abaixo do desenho incrível de Niemeyer) o prefácio que escrevi para a segunda edição de Direito e Ideologia, livro em que reflito, a partir dos sentidos da função social da propriedade rural, sobre os limites do direito como instrumento de transformação social. Lá vai:

DIREITO E IDEOLOGIA: prefácio à segunda edição
É com muita alegria e alguma surpresa que apresento esta segunda edição de Direito e Ideologia. O livro, que reproduz a dissertação de mestrado defendida em 2007 na Faculdade de Direito da USP, tem me proporcionado diversas oportunidades de falar sobre o tema – pessoalmente ou por escrito – para grupos de diversas partes do país, estabelecendo relações muito ricas de debate e multiplicação das preocupações que caracterizam a obra e certo percurso militante a que ela pertence.
Decidi manter, também nesta edição, o texto como se tornou conhecido, porque acredito que nele se encontra o primeiro desenvolvimento de ideias que enfrentei no doutorado – a ser editado em breve sob o título Ambiguidade e Resistência – e, mais que tudo, ideias que pretendo continuar aperfeiçoando em novos estudos. É por esta razão que acresço à edição um novo prefácio, com o intuito específico de contrastar parte das reflexões de Direito e Ideologia com as conquistas que julgo ter feito no período de formação que se iniciou imediatamente após o mestrado.
A leitura atual do texto revela uma hesitação que pretendo ter superado: em muitos pontos, talvez nos principais argumentos da dissertação, tratei das possibilidades de usar o direito para a transformação social como um “isso ou aquilo”, caindo numa cilada característica de grande parte do debate marxista, para o qual algo – o direito, o Estado etc. – que é incapaz de realizar a completa transformação social não é digno de ser considerado do ponto de vista revolucionário. É sempre conservador.
Minha hesitação, então, devia-se ao fato de não perceber que entre essas duas possibilidades – a revolução e a conservação –, que podem ser pacificamente distintas do ponto de vista teórico, colocam-se outros elementos que a realidade histórica não permite desconsiderar. Afinal, não há nada que interesse mais à classe dominante do que a convicção dos dominados quanto à sua situação ser imutável, o que me faz – com Marx – valorizar as lutas sociais com todos seus erros e acertos.
Desse modo, aquela hesitação também se coloca entre o compromisso político e a perfeição conceitual, mas me parece, cada vez mais, que optar, aí, pela pureza teórica é tomar a via que sempre deveria ser atacada por um marxista. Marx jamais dormiria tranquilamente sabendo que chegou à conclusão de que a revolução é impossível, neste ou naquele momento, e, portanto, não há mais nada a fazer. Nele e nos mais radicais entre os marxistas, a pergunta “o que fazer?” nunca se contentou com uma resposta simplesmente teórica, ainda mais se esta resposta fosse “nada”.
Creio, neste sentido, que a pergunta que a crítica do direito deve fazer constantemente é: “o que fazer, contra o capital, com o direito?” – e aqui também não se deve aceitar como resposta um “nada”, pois equivaleria a assumir também uma posição prática conservadora, ainda que alimentada por leituras críticas. Entendo que, por mais que esteja com razão a teoria que denuncia o caráter conservador de quaisquer direitos, esta posição não pode servir à condenação das práticas concretas em que o direito sirva como instrumento para reivindicações políticas dos oprimidos.
Distinguir teoria e prática, neste ponto, é indispensável. Tomar o partido dos oprimidos, na prática, também é indispensável. Mas mais indispensável ainda é não permitir que as certezas da teoria impliquem uma postura que, em termos práticos, coincide com – e apenas com – o que interessa aos opressores no curso das lutas próprias ao desenvolvimento da sociedade burguesa, pois é certo que desistir das lutas pontuais multiplica as dificuldades para enfrentamentos mais amplos.
De certo modo, acho que tal preocupação une os trabalhos que escrevi até aqui e, não obstante a pergunta ficar mais simples a cada pesquisa, a resposta tem sido cada vez mais difícil, uma vez que a intenção de extrair algum sentido transformador do direito se depara, a cada época, com dificuldades novas que decorrem da capacidade da ordem burguesa de absorver até aquilo que é feito para sua contestação. Se esta é uma razão forte para descrer da tarefa, é também a prova de sua necessidade.
Entendo ter neste momento melhores condições de identificar para qual direção devo orientar minhas críticas. Acreditei, durante os anos de pesquisa para este trabalho, que o alvo das críticas deveria ser o discurso abertamente conservador com que se justifica a atuação da imensa maioria de nossas autoridades e juristas. No entanto, se este não deixa de ser um alvo importante, junto a ele deve ser colocado o desafio de abrir, no interior das teorias ditas progressistas e mesmo nas posturas mais críticas, novas formas de colocar o direito a serviço da transformação possível nos limites da formação social capitalista e, assim, tentar forçar tais limites.
Assumir este compromisso não exige abandonar a convicção de que o direito, como um todo, serve à reprodução do capital e que apenas em aspectos pontuais contraria os interesses dos capitalistas (direitos dos trabalhadores, tributação das atividades econômicas, regras públicas para o mercado etc.). Por mais que tais medidas contrárias aos interesses específicos de capitalistas individuais não signifiquem contrariar o capitalismo – pois protegem o capital de si mesmo – o que defendo é que a luta contra o capital passa por essas medidas paliativas.
Do ponto de vista teórico, a primeira mudança significativa é abandonar um vício da teoria jurídica que mesmo os críticos, talvez inadvertidamente, conservam. Refiro-me a considerar que o momento de produção de normas jurídicas – no legislativo e na aplicação judicial – é o ponto crucial para compreender o direito. Esta é uma abordagem comum mesmo a alguns marxistas, que talvez por isso incorreram em simplificações perigosas da relação entre direito e realidade social.
Ao repetir a abordagem tipicamente positivista – que, para um autor positivista, cai como uma luva –, a crítica do direito condena a si mesma a trabalhar com um número limitado de questões, enfrentando o inimigo em seu terreno e segundo suas regras. A concepção de que o direito é um conjunto de normas que tem por destino último chegar às mãos dos juízes, que extraem da norma geral a decisão para o caso particular, deve ser a primeira construção a ser desfeita pela crítica.
Interessa-me, neste sentido, pensar o potencial que os direitos assumem em contextos mais amplos do que o dos tribunais e fóruns, principalmente como marcos políticos que grupos sociais, em determinados momentos da história, reivindicam na forma de direitos, visando melhorar suas condições existenciais. Não tanto pelo que significam tais direitos para a sociedade em geral, mas para um determinado grupo que vislumbra nos direitos a oportunidade de melhorar concretamente sua vida.
É com esta intenção que estudei o caso específico da luta pela terra, pois não me parece possível entender o fato de termos inscrito um programa de reforma agrária em nossa Constituição separadamente da luta concreta de movimentos sociais por medidas que correspondem, na realidade do campo, ao que diz o texto constitucional. Reduzir – como reconheço ter reduzido em certas passagens da dissertação – a luta pela reforma agrária a uma luta pela efetivação de um direito diz muito pouco sobre as complexas interações que surgem quando pessoas se organizam para lutar.
Talvez pelo preponderante caráter jurídico do instituto da função social da propriedade, minhas indagações muitas vezes foram levadas às estreitas questões da teoria do direito e posso ter negligenciado a problemática à qual estão entretecidas as reivindicações dos movimentos sociais. Que o MST, por exemplo, não se deixe converter em algo “jurídico”, resistindo à formalização do movimento social como uma organização política, é exemplar do tipo de consciência que também ao crítico do direito é apropriada. O vício do jurista, acima referido, faz com que somente consiga pensar sobre o MST como sujeito de direito, participando de relações jurídicas cujo traçado é todo dado por normas e, inevitavelmente, desembocam em duas “gavetas”: licitude ou ilicitude. Não há nada fora delas – e o jurista se realiza quando domina (ou é por ela dominado) a técnica de encaixar nessas gavetas tudo quanto existe.
Servil ao direito e à sua forma de lidar com a realidade, a consciência do jurista – e, de certo modo, boa parte da consciência social que por ela é contaminada – aceita tranquilamente a criminalização de todos os atos que os movimentos sociais praticam e, sem os quais, não teria razão nem condições de existir. Diante disso, visando blindar sua forma peculiar de proteger os desequilíbrios sociais próprios do capitalismo, a teoria jurídica burguesa acusa qualquer pensamento crítico de cometer simplificações que são incompatíveis com a riqueza das categorias jurídicas. Este livro não é uma resposta a esta acusação, mas talvez seja a sua confirmação, tendo em vista que fiz questão de romper com as compartimentações típicas da dogmática jurídica, que tudo solucionam juridicamente para não solucionar na realidade. Minha missão é outra.
Por fim, devo dizer que tenho por certo que a questão agrária não perdeu sua atualidade. Pelo contrário, o fato de que seja crescente a dificuldade da luta pela terra (basta ver como se tornou comum matar lideranças do MST) denota a necessidade de continuar promovendo debates e ações que visem modificar a forma como se organizou historicamente a propriedade rural em nosso país, com suas consequências para a concentração da riqueza, a produção de alimentos, a preservação ambiental etc. Se, com as palavras que coloquei nas próximas páginas, puder ser útil para essa luta, terei dado algum sentido para os anos de estudo até aqui. E daqui em diante.

Direito e ideologia – um estudo a partir da função social da propriedade

Autor:

Tarso de Melo

ISBN:

978-85-7743-105-2

Número de páginas:

192

Sinopse:

A presente obra faz interessante estudo do direito como instrumento de manutenção da situação econômica e social vigente. Isso porque o Direito, embora por vezes portador de um discurso transformador - como é o caso do artigo 3o. e seus incisos, da Constituição Federal brasileira, que prevêem a construção de uma sociedade livre, justa, e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, serve sim como instrumento para a manutenção do poder econômico pela elite brasileira.A importância e a distinção da presente obra estão na análise do Direito e das mobilizações sociais, sob a ótica da transformação da realidade, bem como no fato de conjugar a interpretação do Direito e da luta social, insistindo na máxima de que "a luta faz a lei".Este livro é leitura obrigatória para quem deseja utilizar o instrumento adquirido ao longo dos estudos nos bancos universitários em prol da luta dos camponeses brasileiros, bem como na defesa da interpretação constitucional da sua função social. A posse, conforme bem lembra o autor, na propriedade rural, só pode ser protegida quando cumprir os requisitos do artigo 186, da Constituição Federal.As lições aqui expostas, diga-se de passagem, com brilhantismo e profundidade, trazem luzes a este tema tão polêmico  tão apaixonante: a função social da terra e o Direito como ferramenta de luta para transformar a realidade.Juvelino Strozake 

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