sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Apontamentos sobre o nascimento da sociologia


Por Ricardo Musse.
A sociologia surgiu, na primeira metade do século XIX, sob o impacto da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. As transformações econômicas, políticas e culturais suscitadas por esses acontecimentos criou a impressão generalizada de que a Europa vivia o alvorecer de uma nova sociedade.
O papel decisivo da “dupla revolução” foi amplificado pelo debate intelectual da época. A discussão girava em torno do caráter exemplar desses eventos, com as opiniões divididas na avaliação de que se tratava ou não de desdobramentos irreversíveis da história. As divergências na atribuição de significado à “nova sociedade” consolidaram três correntes intelectuais e políticas: conservadores, liberais e radicais.
A sociologia nasce, portanto, como uma reflexão acerca dos contornos da nova configuração histórica – daí sua preocupação permanente em distinguir e contrapor a sociedade moderna às sociedades tradicionais. E num ambiente marcado pela competição entre as visões de mundo do conservadorismo, do liberalismo e do socialismo – daí seu esforço constante para se distinguir dessas correntes, apresentando-se como uma alternativa, científica ou mesmo crítica, em relação a tais modelos explicativos.
A ambição intelectual da sociologia, a tentativa de compreender, em um registro científico, a origem, o caráter e os desdobramentos dessa nova sociedade, levou-a a se apresentar como uma espécie de contraponto em relação às demais disciplinas das “ciências humanas”. Assim, desde o início, a sociologia procurou diferenciar-se da economia, da história, da geografia, da filosofia, da psicologia etc.
O esforço para construir uma identidade própria por meio da superação das disciplinas rivais não se deu apenas pela absorção de temáticas alheias, recuperadas como partes específicas do saber sociológico, se prendeu, sobretudo, à pretensão de atingir um padrão de cientificidade na explicação da vida social equivalente àquele alcançado pelas ciências naturais.
A sociologia concebe-se, assim, não apenas como a disciplina central no campo das “ciências humanas”, mas como um saber comparável, em termos de explicação e previsão, às próprias ciências naturais. Essa posição, no entanto, será contrabalançada, paulatinamente, pela compreensão de que as determinações das possibilidades futuras da sociedade não podem ser preditas a partir dos modelos do passado, o que levou a sociologia a situar-se, muitas vezes, como uma perspectiva crítica perante as relações sociais vigentes.
Nas últimas décadas do século XVIII surgiram, na Europa, dois fenômenos decisivos para a configuração do mundo moderno: a concentração da produção de bens na “fábrica”, base do sistema econômico fabril, e a comunidade política de “cidadãos”, livres e com direitos iguais, vinculados ao Estado-nação.
Hoje, tendo em vista os desdobramentos dessa matriz econômica e política, bem como o seu alcance mundial, tornou-se consenso considerar tais transformações equiparáveis a marcos históricos como a invenção da agricultura, da metalurgia, da escrita ou da cidade.
Os contemporâneos desses eventos nunca entraram em acordo acerca da provável extensão dessas mudanças. Mas isso não os impediu de vislumbraram prontamente a importância do conjunto de acontecimentos que deflagraram as transformações econômicas ocorridas na Inglaterra a partir do fim da década de 1760 e a reconfiguração política iniciada na França em 1789. Tais mudanças foram percebidas, já à época, como uma reviravolta sem precedentes, como rupturas abruptas, como “revoluções”, sobretudo por seu contraste com as formas predominantes no passado.
A Revolução Industrial surgiu na Inglaterra. O pioneirismo inglês explica-se pela consolidação, ao longo do século XVIII, de uma série de fatores: (a) relações econômicas capitalistas que abrangiam não só o comércio, as finanças e a produção manufatureira, mas inclusive as atividades agrícolas; (b) uma política governamental orientada para favorecer o desenvolvimento econômico; (c) uma cultura coletiva que não rejeitava o predomínio do dinheiro, valorizando, por conseguinte, a busca de lucro; (d) um mercado mundial monopolizado pela supremacia militar e naval da Inglaterra, consolidado pelas práticas do exclusivismo colonial e do escravismo.
No decorrer do século XIX, a industrialização, e os processos que a acompanham, expandiu-se pela Europa e por determinadas regiões do planeta (como o norte dos Estados Unidos e o Japão). Em todos esses lugares ocorreu um deslocamento de trabalhadores e de recursos monetários da agricultura para a indústria, com o consequente aumento da sua participação no total de riquezas produzidas. Com isso, o predomínio econômico da vida agrária, bem como a estrutura social assentada em privilégios derivados da posse da terra, foi sendo substituído por relações econômicas e sociais tipicamente urbanas.
O mundo do trabalho já havia se modificado substancialmente a partir do século XVII, sobretudo na Inglaterra, com a penetração de relações capitalistas no campo. O cultivo comunal e a agricultura de subsistência cederam lugar a uma atitude comercial, logo monetária, diante da terra. A implantação de relações salariais no setor agrário, no entanto, foi uma modificação pequena perante o que aconteceu na indústria.
Primeiro, a produção deixou de ser uma atividade individual, realizada na própria casa do trabalhador segundo o ritmo ditado por sua habilidade e capacidade física. Tudo isso, em intervalos de tempo que lhe permitia dedicar-se a outras tarefas, como a criação de animais e o cultivo da terra.
Os trabalhadores passaram a se concentrar em um só local, em fábricas, cada vez maiores, intensificando a forma de organização iniciada pela manufatura. O trabalho parcelar tornou-se coletivo, subordinado a um mecanismo constituído por máquinas capazes de realizar as mesmas operações das ferramentas e movidas por uma única força motriz.
As aptidões especiais do artesão especializado tornaram-se dispensáveis. A racionalização dos procedimentos, a divisão do trabalho no interior do processo produtivo, a linha de montagem abriram espaço para a utilização do trabalho feminino e infantil. A disciplina implantada nas fábricas subordinou a ação humana aos movimentos do maquinismo, mas também às relações salariais, à vigilância da supervisão do capitalista e ao ritmo inexorável, à “tirania”, do relógio.
O modelo em que a produção era realizada por artesões, localizados em seus domicílios, em pequenos vilarejos, desempenhando simultaneamente vários ofícios, tornou-se rapidamente obsoleto. O sistema produtivo moderno subdividiu o trabalho entre imensas fábricas, superespecializadas, que utilizam matérias-primas dos países mais distantes e abastecem com seus produtos os mercados do mundo inteiro.   
A Revolução Industrial não modificou apenas os ritmos e as modalidades de organização do trabalho. Alterou significativamente as formas e estilos de vida, o cotidiano e a cultura de todos os segmentos da população.
O fator que mais abalou as maneiras tradicionais de viver foi a crescente urbanização. A concentração das fábricas em cidades manufatureiras, devido às facilidades de escoamento da produção, assim como o incremento de atividades administrativas, educacionais, dos serviços em geral, incentivou uma maciça transferência populacional. As cidades inglesas tornaram-se, em breve, as maiores da Europa, um surto de crescimento intensificado pela redução das taxas de mortalidade, que deram início ao ininterrupto aumento populacional característico do mundo moderno.
As principais consequências sociais da Revolução Industrial foram o crescimento da desigualdade e a intensificação do conflito entre as classes. As novas relações de produção cristalizaram a separação entre trabalhadores destituídos de meios de produção e empregadores capitalistas, aumentando exponencialmente a disparidade social. O empreendimento fabril, cada vez mais complexo, passou a exigir vultosos investimentos, consolidando uma restrita classe de capitalistas. Esta se mostrou destemida a ponto de enfrentar os antigos senhores, e poderosa o suficiente para determinar os rumos da vida política e econômica.
As figuras corriqueiras de capitalistas, o comerciante e o banqueiro, foram ofuscadas pelo “capitão de indústria”, o responsável pela organização e controle das atividades na fábrica, que exercia o comando impondo uma rígida disciplina sobre um exército de trabalhadores.
A classe trabalhadora, por sua vez, apesar do empobrecimento material e do desenraizamento social, tornou-se mais numerosa, homogênea e concentrada. Nos grandes centros fabris, nas cidades manufatureiras as rebeliões não tardaram.
Primeiro, foram insurreições contra as máquinas que dispensavam o trabalho do mestre ferramenteiro ou economizavam trabalhadores. Nas primeiras décadas do século XIX, o movimento ludista (que tomava por alvo as inovações, as mercadorias, e até mesmo os inventores) foi suplantado por novas formas de conflito. O embate entre empregadores e empregados deslocou-se para a luta sindical e política, estabelecendo outros objetivos: a redução da jornada diária de trabalho para 10hs, a implantação da assistência social pública, a reforma do sistema eleitoral e do parlamento. Os trabalhadores agruparam-se em partidos influenciados pela democracia radical e pelo socialismo.
A Revolução Industrial desencadeou e intensificou um incessante movimento de inovação tecnológica, econômica e social – a generalização da economia industrial –, que mudou a face da Terra. As novas relações econômicas decorrentes da organização do sistema produtivo em torno das fábricas foi a chave para a implementação de “um novo ritmo de vida, uma nova sociedade, uma nova época histórica”.
A passagem de sociedades tradicionais ao mundo moderno tornou-se um ideal e um objetivo quase universais. O primeiro passo para a modernização social consistiria, então, em repetir os movimentos da revolução industrial inglesa. O que aconteceu lá, de forma contingente e quase aleatória, tornou-se objeto de planejamento, de ação deliberada. Na ausência das mesmas condições da Inglaterra à época, a teoria social procurou destacar os elementos centrais daquele processo, repensando as origens históricas e o desenvolvimento da sociedade moderna.
Para alguns se tratava de um processo puramente econômico dependente de altas taxas de acumulação de capitais e de investimentos; de juros baixos; de uma gestão empresarial racionalizada; de inovações tecnológicas e da ampliação do consumo. Para outros, as mudanças nas formas de produção só se deslancham a partir da intervenção do Estado. Supõe uma burocracia governamental eficaz voltada para a transformação da ordem social e institucional, facilitando uma maior disponibilidade de capitais e de força de trabalho, de matérias-primas e de infraestrutura, promovendo a desregulamentação do sistema produtivo e corporativo, incentivando reformas no setor agrário, ampliando o sistema educacional etc.
O triunfo da indústria capitalista modificou profundamente as mentalidades, consolidando os valores propostos pelo Iluminismo. O projeto de libertar os indivíduos do tradicionalismo, da superstição, da hierarquia baseada em critérios irracionais tornou-se um dos pilares da emergente sociedade burguesa. Até mesmo o cultivo do “individualismo secular e racionalista” foi vinculado à perspectiva de um crescimento econômico incessante.
A própria concepção de vida social alterou-se bruscamente. Não se tratava mais de seguir a tradição, a estática de uma posição estabelecida pelo nascimento, mas de situar-se em uma dinâmica social em constante transformação e movimento. O ritmo da modificação econômica fortaleceu a convicção iluminista de que a racionalidade, o conhecimento, a riqueza, a tecnologia, o controle sobre a natureza, em suma, a sociedade estaria sujeita a um progresso ilimitado. 
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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. 

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