Por Carlos
Nelson Coutinho
Ao contrário do
que supõe uma concepção hoje corriqueira, há uma diferença essencial entre a teoria política e a chamada “ciência política”. A teoria política –
uma disciplina filosófica – não se submete à estreita divisão acadêmica do
pensamento social hoje dominante, que faz distinção entre “ciência política”, “sociologia”,
“antropologia”, “economia”, “história” etc. Contrapondo-se a essa empobrecedora
departamentalização do saber, a teoria política não hesita em ligar a esfera da
política à totalidade social; aliás, parte da convicção de que só nessa
articulação dialética com a totalidade é que os fenômenos políticos (que
certamente têm sua especificidade) podem ser devidamente elevados a conceitos.
A teoria política considera parte ineliminável do seu domínio teórico também os
temas hoje considerados “sociológicos”, “econômicos”, “antropológicos”, “históricos”
etc.
De resto, esse
modo de abordar os fenômenos políticos não tem nenhum compromisso com a chamada
“neutralidade axiológica”, ou seja, com a recusa supostamente científica da
formulação de juízos de valor. Para quem pretende compreender os fenômenos
políticos no quadro da totalidade social, torna-se inescapável a necessidade de
articular o ser com o dever ser, ou seja, os fatos empíricos com as
possibilidades concretas que estão sempre presentes em qualquer realidade
social, por mais aparentemente coisificada que ela se apresente à primeira
vista. Como toda manifestação do ser social, também a práxis política resulta
de uma articulação entre causalidade e teleologia, entre determinismo e
liberdade, entre ser e dever ser. Portanto, a teoria política não tem a
pretensão durkheimiana de tratar os fenômenos políticos como “coisas”
semelhantes aos objetos naturais; ao contrário, pretende compreendê-los como
processos dinâmicos determinados pela práxis, situados no devir histórico e
que, por isso, têm sua gênese no passado e apontam para o futuro.
Gramsci, em suas
reflexões de teoria política, fez uma
importante distinção entre “grande política” (alta política) e “pequena
política” (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de
intrigas). Essa distinção, segundo ele, baseia-se no fato de que
a grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política. (A. Gramsci. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2002, 6 v., v. 3, p. 21)
Poderíamos dizer
que, enquanto a teoria política se ocupa da “grande política”, a “ciência
política” tem como objeto questões de “pequena política”. Algumas das análises
dessa “ciência” (por exemplo, sobre sistemas eleitorais e regimes de governo,
sobre a distribuição dos votos, sobre conjunturas imediatas etc., etc.) podem
em muitos casos ter interesse empírico e fornecer assim subsídios para a teoria política, mas não vão além da
esfera da “pequena política”.
Não é difícil
constatar que os autores [como Rousseau, Hegel, Marx e Gramsci] são teóricos da política e não cientistas políticos. Nesse sentido,
eles fazem parte de uma tradição que começa em Platão e chega até Hannah Arendt
e John Rawls, passando por Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu e tantos
outros. Nenhum desses autores se sentiria à vontade se tivesse de responder,
num currículo solicitado hoje por uma agência financiadora, a que campo das
chamadas “ciências sociais” pertenceriam. Platão era filósofo ou cientista
político? Montesquieu era sociólogo ou historiador? Rousseau era pedagogo ou lingüista?
Marx era economista ou crítico literário? A simples formulação de tais questões
revela quanto a atual divisão departamental do saber acadêmico é incapaz de dar
conta da atividade dos grandes pensadores e, portanto, também dos grandes
teóricos da política.
Isso significa
que a teoria política, assim como a filosofia em geral, tem uma relação
orgânica com a ideologia. Gramsci define a ideologia como “unidade de fé entre
uma concepção do mundo e uma norma de conduta adequada a ela”, ou seja, como
uma representação do ser que está na base da proposta de um dever ser. Uma
relação com a ética, com juízos de valor, é assim momento ineliminável da
teoria política. Marx formulou isso com precisão ao dizer que não basta
entender o mundo, trata-se também de transformá-lo.
Contudo, essa
relação entre teoria política e ideologia seria mal compreendida se tomássemos “ideologia”
apenas no sentido de “falsa consciência”, “ilusão” ou, o que é pior, “engano”
deliberado. Existe também – e é bastante difundida – essa acepção e essa forma
de ideologia, que Gramsci chamou de “pejorativa”. É precisamente ela que
determina o caráter ideológico de grande parte da produção da “ciência política”,
que é “ideologia” no sentido de ser “falsa consciência”, ou seja, de confundir
a aparência com a essência, o particular com o universal etc. Ao contrário, na
definição de Gramsci, independentemente de ser verdadeira ou não do ponto de
vista epistemológico, uma teoria se torna ideologia quando se “apodera das
massas”, quando se torna estímulo para uma ação efetiva no mundo real. É nesse
sentido que a teoria política se articula com a ideologia: os grandes teóricos
da política não se limitam a interpretar o mundo, mas todos eles formulam – de maneira
implícita ou explícita – uma proposta de conservá-lo ou de transformá-lo. A
depender do ponto de vista de classe que adotam e do contexto histórico em que
atua essa classe, suas formulações teóricas podem se aproximar mais ou menos de
uma reprodução fiel do ser social. Em todos eles, porém, essa reprodução está
ligada a uma proposta de intervir na realidade.
* O
texto aqui postado constitui-se de trechos do prefácio, datado de março de
2011, do livro De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política, de autoria de
Carlos Nelson Coutinho, publicado pela Boitempo Editorial, no ano de 2011.
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