A polícia secreta do falecido general Augusto Pinochet liderou uma rede de espionagem dentro e fora do Chile, que se cruzou com o Vaticano, o FBI, as ditaduras latino-americanas e a imprensa mundial, como revelam milhares de arquivos secretos e até agora inéditos.
A reportagem é do sítio Religión Digital, 02-08-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Estes documentos, durante décadas catalogados como reservados, confirmam que os órgãos repressivos chilenos, a DINA [Direção de Inteligência Nacional] primeiro e a CNI [Central Nacional de Informações] depois, mantinham correspondência quase diária com ministros e outras autoridades para coordenar operações em todo o mundo.
O coronel Manuel Contreras, que, como diretor da DINA, planejou ataques nos EUA, Argentina e Itália, tinha poder até para investigar funcionários do Estado, como revela a Circular Reservada 35 F-151 de 1975. "Sua Excelência (Pinochet) determinou que, a partir desta data, nenhum funcionário público seja contratado sem que previamente se anexe a seus antecedentes um relatório da DINA com relação às atividades que o interessado possa ter realizado", informou o ministro do Interior da época, general Raúl Benavides.
Em 1976, os poderes da DINA foram ampliados e detalhados. Ela podia investigar todos os funcionários, sendo a única responsável para instalar os interfones presidenciais na administração pública.
Polícia secreta tinha arquivo com fichas de detidos e perseguidos
A polícia secreta, responsável por milhares de desaparecidos, executados e torturados, segundo relatórios oficiais, também passou a manter um arquivo com as fichas de todos os presos e perseguidos, cuja informação ela enviava aos ministérios que a pediam. A DINA, cujo diretor está hoje preso, cumprindo uma centena de condenações, tinha poder até para dar ordens a ministros, como revela o Plano de Operação Epsilon.
A iniciativa foi projetada em junho de 1975 por Contreras, antes da visita ao país da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, à qual acudiam centenas de denunciantes da oposição. O coronel Contreras, que sempre se gabou de tomar café da manhã diariamente com Pinochet, repartia nesse plano tarefas a todos os tipos de autoridades, às quais advertia que, perante qualquer dúvida, deviam contatá-lo diretamente por telefone.
A estratégia, contida em 11 páginas distribuídas a ministros e chefes de serviços, tinha por missão "realizar uma campanha de ação psicológica aberta e clandestina", para neutralizar no mundo as denúncias de violações aos direitos humanos.
As ações abrangem desde o uso de jornalistas, que não são nomeados, para que que "festejem" pela visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, até a eliminação de fitas da Segunda Guerra Mundial da programação televisiva por aludir ao nazismo.
Também são propostas campanhas de ataques à situação dos direitos humanos em Portugal, União Soviética,Cuba e Vietnã, e a disputa de uma partida de futebol entre Chile e Brasil, como distração.
As coordenações entre a polícia secreta e os ministros continuaram mesmo após a dissolução da DINA em 1978, após a eclosão de uma crise com os EUA por causa do atentado explosivo em Washington contra o ex-chanceler socialista Orlando Letelier.
Embaixadas remetiam relatórios sobre exilados e meios de comunicação
A CNI, órgão que substitui a DINA, impulsionou a partir desse ano as operações na Bolívia, Argentina e Brasil, por meio das embaixadas chilenas que remetem relatórios periódicos sobre a atividade dos exilados, os meios de comunicação e órgãos humanitários.
Prova disso é que, no dia 17 de marco de 1978, o vice-ministro das Relações Exteriores do Chile, o general-brigadeiro Enrique Valdés Puga, assinou e enviou o ofício secreto número 35 da Chancelaria ao então diretor da CNI, o general Odlanier Mena.
"De acordo com o conversado com os Srs. sobre a necessidade de normalizar a situação de envio de oficiais da CNIcomo Conselheiros Administrativos ou Civiis a diversas representações diplomáticas do Chile no exterior, eu muito agradeceria que se remetesse, o mais brevemente possível, ao abaixo-assinado, um exemplar do Plano Condor", escreveu Valdés.
O chefe da polícia secreta, como era de costume, respondeu no dia 21 de fevereiro diretamente ao chanceler da época, o almirante Patricio Carvajal, ratificando os destinos dos militares José Aqueveque, León González e Raúl Valley ao Peru, Bolívia e Argentina, respectivamente.
Desacreditar opositores e conquistar aliados
Os arquivos secretos revelam também o esforço contínuo da ditadura (1973-1990) para desacreditar os seus opositores e conquistar aliados, operação em que também aparece envolvido o hoje deputado da Renovação Nacional Alberto Cardemil, correligionário do presidente Sebastián Piñera.
Cardemil, que atuava nos prolegômenos do regime pinochetista como vice-ministro do Interior, enviou à Chancelaria as fichas secretas dos funcionários da Vicaría de la Solidaridad, para pôr em marcha uma ampla ação de desprestígio dessa entidade defensora dos direitos humanos, liderada pela Igreja Católica.
"Conforme o conversado em nossa reunião almoço de dias passados, permito-me anexar uma pasta com antecedentes completos das pessoas que trabalham na Vicaría de la Solidaridad", escreveu Cardemil no dia 26 de abril de 1985, no ofício secreto 1.953.
Diálogos com o Vaticano
As operações detalhadas nesses arquivos revelam ainda o rastreamento de centenas de correspondentes dentro e fora do Chile, como Pierre Kalfon, do Le Monde, e James Pringle, da Newsweek, entre quase mil referidos nesses documentos.
Também há preocupação com o trabalho de artistas como o escritor Ariel Dorfman, e as equipes de inteligência remetem às autoridades do governo detalhes dos debates em centros de estudo, o que chamam de "ativismo intelectual".
Os textos também revelam os diálogos com o Vaticano para neutralizar os setores da Igreja que criticavam as violações aos direitos humanos, liderados pelo cardeal Raúl Silva Henríquez.
Peças-chave em toda essa rede também são os Relatórios de Apreciação Sociológica que a Marinha preparava para a Junta Militar nos últimos anos do regime. Neles, é delineada a entrega do poder e as características que deveria ter a democracia nascente, em que se espera que os militares não abram mão do "princípio de autoridade".
"Isso merecerá a conveniência de considerar, em 1989, algumas mudanças na organização do Estado, preservando a substância institucional dos três primeiros capítulos da Constituição", propôs o capitão naval Rodolfo Camacho no dia 6 janeiro de 1989 nesses documentos.
As mudanças finalmente foram concordadas com a oposição de centro-esquerda. A Constituição redigida então regeu o Chile até hoje.
FONTE: Instituto Humanitas Unisinos
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