"FHC plagiou intelectuais banidos pela ditadura"
Foram necessários 43 anos para que Subdesenvolvimento e Revolução,
do mineiro Ruy Mauro Marini, desse o ar da graça no Brasil. Publicada pela
primeira vez no México em 1969, a obra clássica do marxismo brasileiro ganhou
edições em diversos países, inclusive naqueles da América Latina a viver sob o
jugo de ditaduras. O que nos leva a perguntar: por que tanto tempo para se
reconhecer um grande intelectual brasileiro? Marini (1932-1998), presidente da
Política Operária (Polop) e autor de Dialética e Dependência, passou 20
anos no exílio a partir do golpe de 1964. Professor no México e no Chile, onde
dirigiu o Movimento de Izquierda Revolucionária (MIR), ele não era, é óbvio,
bem-vindo pela ditadura brasileira.
Sua obra continuou, porém, a ser censurada durante a chamada “transição
democrática”. Nas palavras de Nildo Ouriques, autor da apresentação de
Subdesenvolvimento e Revolução (Editora Insular, 2012, 270 págs.),
professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade
Federal de Santa Catarina e ex-presidente do Instituto de Estudos
Latino-Americanos da UFSC, a hegemonia liberal “monitorada” por Washington
queria uma transição isenta de teorias radicais como aquelas de
subdesenvolvimento e dependência de Marini.
Segundo Ouriques, nessa empreitada para marginalizar radicais, Fernando
Henrique Cardoso e José Serra serviram à hegemonia liberal e, entre outros
feitos, adulteraram um famoso texto de Marini. Na esteira, FHC pegou carona para
“formular” a teoria da dependência que o tornou famoso. Subdesenvolvimento e
Revolução, iniciativa do Iela-UFSC, inaugura a coleção de livros críticos
que serão publicados pela primeira vez no Brasil pela Pátria Grande: Biblioteca
do Pensamento Crítico Latino-Americano.
CartaCapital: Como explicar a popularidade intelectual
de Ruy Mauro Marini mundo afora?
Nildo Ouriques: A
importância do Marini é teórica e política. Ele tinha rigor teórico,
metodológico, e expressava a visão da ortodoxia marxista. Na experiência
brasileira, e aqui me refiro ao grande movimento de massas interrompido com a
derrubada de João Goulart em 1964, ele polemizou a tese socialista chilena no
sentido de afirmar os limites da transição pacífica ao socialismo. Soube usar a
pista deixada por André Gunder Frank do desenvolvimento do subdesenvolvimento e
fez a melhor crítica aos postulados estruturalistas dos cepalinos. Fernando
Henrique Cardoso, José Serra e em parte Maria da Conceição Tavares divulgavam o
debate sobre a dependência como se não fosse possível haver desenvolvimento no
Brasil. Para Marini, haveria desenvolvimento, mas seria o desenvolvimento do
subdesenvolvimento. A tese de Frank tinha consistência, mas não estava
sustentada plenamente na concepção marxista. Marini, por meio da dialética da
dependência, deu acabamento para a tese que é insuperável até hoje. Daí a
repercussão do seu trabalho na Itália, França, Alemanha, sobretudo nos demais
países latino-americanos, inclusive aqueles submetidos a ditaduras, com exceção
do Brasil.
CC: O senhor escreveu na introdução do livro que a
teoria da dependência de Fernando Henrique Cardoso foi influenciada pela
hegemonia liberal burguesa.
NO: Indiscutivelmente. Os
fatos agora demonstram claramente que FHC estava a favor de um projeto de
Washington de conter movimentos intelectuais radicais no Brasil. Uma das metas
de Fernando Henrique e José Serra era minar o terreno de radicais como Marini.
Em 1978, Fernando Henrique e Serra, que havia ganhado uma bolsa nos Estados
Unidos, passaram, na volta ao Brasil, pelo México. Marini dirigia a Revista
Mexicana de Sociologia (RMS), da Universidade Nacional Autônoma do México
(Unam). Eles deixaram um texto de crítica ao Marini, As Desventuras da
Dialética da Dependência, assinado por ambos. Marini disse que publicaria o
texto desde que na mesma edição da RMS de 1978 constasse uma resposta crítica de
sua autoria. FHC e Serra concordaram. E assim foi feito. Em 1979, FHC e Serra
publicaram As Desventuras nos Cadernos do Cebrap (Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento) número 23. A dupla desrespeitou a prática editorial
que Marini lhes reservou no México. Em suma, a resposta de Marini não foi
publicada aqui.
CC: FHC e Serra teriam adulterado o texto por eles
assinado ao se referir a um conceito econômico de
Marini.
NO: Alteraram um conceito fundamental na teoria
de Marini: o da economia exportadora. Marini previa a redução do mercado interno
e a apologia da economia exportadora no Brasil. Segundo ele, com a
superexploração da força de trabalho não há salário e mercado interno para
garantir a reprodução ampliada do capital de maneira permanente. A veloz
tendência da expansão das empresas brasileiras força-as a sair do País, e no
exterior elas encontram outras burguesias ultracompetitivas. Fernando Henrique e
Serra mudaram o conceito de “economia exportadora” e substituíram por “economia
agroexportadora” no texto publicado pelo Cebrap. Marini falava que o Brasil
exportaria produtos industriais, inclusive aviões, como de fato exportamos. Mas
isso não muda nada. A tendência da economia exportadora implica a drástica
limitação do mercado interno. FHC e Serra queriam levantar a hipótese de que
Marini não previa a possibilidade de o Brasil se industrializar. Em suma, Marini
seria, segundo FHC e Serra, o autor da tese de que no Brasil se estava criando
uma economia agroexportadora. Essa adulteração do texto numa questão tão central
não ocorre por acaso.
CC: Mas FHC, apesar disso, é tido como o pai da teoria
da dependência.
NO: É rigorosamente falso e irônico.
Ele e Serra tinham a meta de bloquear essa tendência mais radical, mais
ortodoxa, mais rigorosa do ponto de vista analítico de, entre outros, Marini, e
pegaram carona. Daí a astúcia, no interior do debate mais importante na área de
Ciências Sociais na América Latina: o da teoria da dependência. E nesse contexto
se apresentaram como os pais da famosa teoria, especialmente FHC, quando em
parceria com Enzo Falleto publica Dependência e Desenvolvimento na América
Latina. À época, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(Cepal) já não tinha condições para defender seus projetos teórico e político, e
eles se apresentam como interlocutores nesse debate. Visavam por um lado
recuperar as posições cepalinas e de outro evitar o radicalismo político. E
foram exitosos, turbinados pelas elites nacional e internacional favoráveis a um
projeto de transição lenta, gradual e segura. Um projeto dessa natureza precisa
ter uma direita clássica, fascista etc., e também uma versão liberal na qual se
encaixa Fernando Henrique Cardoso.
CC: E o que ele
representava?
NO: De fato, ele encabeçou a oposição
liberal à ditadura. Tornou-se suplente de senador de Franco Montoro e logo em
seguida com a eleição deste para o governo do estado se transformou no grande
modelo de intelectual político “dentro da ordem”, para usar uma feliz expressão
de Florestan Fernandes. Não é um movimento fútil o de FHC. Ele percebe a
política do Partido Democrático em Washington, no sentido de democratizar o
Brasil, percebe o movimento da elite empresarial em São Paulo por meio do
manifesto de 1977 contra o gigantismo estatal e percebe o movimento de massa
pelo crescimento do MDB. E assim teve uma brilhante carreira política. Idem o
Serra, para falar de políticos mais notórios. E conseguiram produzir numerosos
intelectuais no mundo universitário, exceto a intelectualidade que estava mais
presa a um novo sindicalismo e ao petismo.
CC: O FHC parece não ter muita credibilidade no mundo
acadêmico.
NO: Ele não tem uma obra. Fernando Henrique
é no máximo um polemista no interior de um debate acadêmico
(dependência) no qual ele não era a figura principal. Mas cumpriu o
papel decisivo no sentido de bloquear, coisa que fez com certa eficácia, as
correntes mais vitais desse debate. Teve êxito especialmente com a obra de
Marini, mas também com livros muito importantes de Theotonio dos Santos,
Imperialismo e Dependência, ou Socialismo ou Fascismo, o Novo Dilema
Latino-Americano, este publicado até em chinês, mas jamais no Brasil.
CC: Marini concordaria com o senhor que o discurso sobre
a nova classe média é uma forma de legitimar o subdesenvolvimento no
Brasil?
NO: Completamente. Esse debate esconde algo
fundamental, a gigantesca concentração de renda. Enquanto se fala na ascensão da
classe média, a pobreza é muito maior: 76% da população economicamente ativa
vive com até três salários mínimos, 1,5 mil reais. Ou seja, nem sequer alcançam
o salário mínimo do Dieese. Com meu salário de professor em greve (por
aumento salarial), pertenço aos 24% mais ricos da sociedade, ao lado do
Eike Batista.
CC: Mas, de fato, Lula elevou o nível de vida de milhões
de brasileiros.
NO: Lula fez política social. O
problema de Fernando Henrique e José Serra é que eles odeiam o povo. FHC não
tinha uma política social para o País. Mas política social não traz emprego e
renda. Num país subdesenvolvido, inclusive numa estratégia revolucionária, é
preciso ter programas emergenciais. A estratégia da erradicação da pobreza de
Dilma Rousseff não pode ser realizada exclusivamente com política social. O
petismo está mostrando seus limites porque terá de confrontar o poder, o
prestígio social e a elite. Se não enfrentar tudo isso, será devorado.
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