Por Roberto Leher e Marcelo Badaró Mattos |
Um espectro daninho ronda o sindicalismo brasileiro há mais de oitenta anos: o sindicato de Estado. Um morto, como veremos, muito vivo! Em todos os países que viverem ditaduras fascistas ou aparentadas ao fascismo e que adotaram modelos sindicais corporativistas (de sindicalismo vertical, sindicato único, umbilicalmente ligado e controlado pelo Estado), o sindicalismo de Estado foi superado nos processos de redemocratização. No Brasil, pelo contrário, esse zumbi sobreviveu a dois processos de redemocratização, distantes 40 anos no século XX. A razão fundamental para a manutenção da estrutura do sindicato oficial está em sua funcionalidade para a classe dominante brasileira. Não é pouco significativo o fato – inerente a sua lógica de funcionamento – de que tal estrutura se sustenta e é sustentada por uma casta de dirigentes sindicais burocratizados, que fazem do sindicalismo meio de vida e atuam, antes de mais nada, para manterem-se à frente do aparato objetivando o usufruto do poder e das vantagens materiais que ele oferece. Entre fins dos anos 1970 e meados dos anos 1980 ocorreu um forte impulso pela autonomia sindical. As oposições sindicais e os trabalhadores que empreenderam lutas realizaram uma dura crítica à estrutura do sindicalismo de Estado. Esta fase de retomada das mobilizações da classe trabalhadora brasileira na luta contra a ditadura militar ficou conhecida como “novo sindicalismo”. Como outras categorias, especialmente do funcionalismo público, os docentes universitários fundaram sua organização de caráter sindical – ANDES (depois da Constituição de 1988, ANDES-SN) – naquele contexto, e mantiveram com muita ênfase seu compromisso com um modelo sindical autônomo, combativo e classista, mesmo quando (a partir dos anos 1990) o “novo sindicalismo” viveu um nítido refluxo. Entretanto, o peleguismo do sindicalismo oficial, um verdadeiro gato de sete vidas, se imiscuiu entre os docentes de ensino superior a partir dos anos 2000, como sempre puxado pela mão do Estado paternal sempre disposto a tutelar os trabalhadores, considerados um contingente “sempre criança”. O espectro ganhou um nome, que alguns por superstição, outros por aversão, se recusam a pronunciar, mas que, como todo fantasma de verdade (sic) não desaparecerá simplesmente se fecharmos os olhos fingindo que ele não existe. Tratamos do PROIFES (Federação de Sindicatos de Professores de Instituições de Ensino Superior). Algo muito interessante, no entanto, está acontecendo em meio à greve de inéditas proporções que está em curso nas Instituições Federais de Ensino Superior. Professores de todo o país, particularmente naquelas Universidades em que o sindicalismo docente foi envolvido na rede do peleguismo oficialista, demonstram, inapelavelmente, a falta de legitimidade da entidade fantasma. O sindicato para-oficial entre os docentes As extraordinárias assembléias gerais dos professores de universidades e institutos tecnológicos neste momento dirigidos por setores vinculados à entidade para-governamental, reunindo, como na UFG, a maior quantidade de professores em uma Assembléia Geral da categoria, revelam que os docentes das universidades brasileiras não estão passivos e dóceis diante da vergonhosa tentativa de tutela governamental sobre a livre organização dos trabalhadores docentes. Longe de ser um fato isolado, o mesmo está acontecendo nas universidades federais do Ceará, Bahia, Rio Grande do Norte e em campi da UFSCAR e em IFETs (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia). Esses acontecimentos dizem respeito, em primeiro lugar, a compreensão dos professores de que a sua representação política tem de ser autônoma em relação ao governo e ao Estado e que a estreita simbiose entre a organização dita sindical para-oficial e o governo é deletéria para a carreira, os salários e as condições de trabalho na universidade. Mas a afirmação da independência política dos docentes nas referidas assembléias tem uma importância acadêmica, pois é uma condição para a autonomia universitária. Não pode haver autonomia da universidade se o governo controla até mesmo a representação política dos docentes. É possível dizer, portanto, que a afirmação da autonomia dos professores é um gesto crucial para a história da universidade pública brasileira! A história da entidade fantasma nas Universidades é recente, mas ilustra muito bem como funciona o sindicalismo de Estado no Brasil. Após sucessivas derrotas nas eleições para o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), parcela da chapa derrotada foi alçada pelo então ministro da educação Tarso Genro à condição de representante dos docentes das IFES e, desde então, obteve lugar cativo na assessoria do governo, notadamente no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e no Ministério da Educação. O sindicalismo de Estado que fincou raízes entre nós tem origem no período varguista. A investidura sindical, uma carta de reconhecimento do sindicato pelo Ministério do Trabalho que confere legalidade a suas prerrogativas de negociação e representação, acrescida do imposto sindical compulsório e da unicidade sindical, criaram as condições para a sua institucionalização no Brasil, conformando o sindicato oficialista. De inspiração fascista, objetiva assegurar a tutela governamental sobre os trabalhadores, valendo-se de prepostos, os pelegos que, nutridos por benesses e prebendas governamentais, servem de caixa de ressonância para as razões dos donos do poder. As bases jurídicas para tal estrutura sindical não foram suprimidas, antes disso, são revitalizadas pelas grandes centrais oficialistas que, a despeito de algumas críticas retóricas ao imposto sindical, caso da CUT, se movimentam de modo feroz para provocar desmembramentos de categorias (um requisito em virtude da unicidade e da presunção do apoio governamental) para obter maior fatia dos R$ 2,5 bilhões (total do imposto sindical em 2011) distribuídos entre as 6 centrais sindicais e o Ministério do Trabalho e Emprego. O oficialismo também é nutrido pelos generosos dutos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), fundo que arrecadou R$ 50 bilhões em 2011 e que, desde 1990, vêm repassando centenas de milhões para as centrais oficialistas ofertarem cursos de qualificação profissional que, a rigor, podem estruturar uma poderosa máquina política representando, em última instância, os tentáculos dos patrões e dos seus governos nas organizações supostamente dos trabalhadores. O processo de cooptação e subordinação do sindicalismo de Estado se completa com a participação dos sindicatos oficialistas nos fundos de pensão, que movimentam bilhões de reais e, para seguirem existindo, precisam valorizar as suas ações adquiridas nas bolsas de valores em nome da capitalização da aposentadoria dos cotistas. Entre as principais formas de valorização das ações, os gestores dos fundos incentivam privatizações, fusões e, o que pode ser considerado o núcleo sólido, as reestruturações das empresas, por meio de demissões, terceirizações e generalização da precarização do trabalho. Em suma, a valorização do portfólio de ações requer que o fundo dito dos trabalhadores se volte contra os direitos dos demais trabalhadores! É indubitável que os setores dominantes podem contar com trincheiras defendidas de modo incondicional pelos referidos gestores dos fundos e pela burocracia sindical alimentada pelo imposto sindical, pelo FAT e, no caso das entidades menores, até mesmo por contratos de prestação de serviços de assessoria ao governo financiados pelo próprio governo! Diploma do Ministério e mão do Estado versus Legitimidade É irônico observar que com Lula da Silva – o sindicalista que se destacou entre 1978 e 1980 pelas críticas duras à estrutura sindical oficial – na presidência da República, o sindicalismo de Estado ganhou novo fôlego. Foi justamente em seu governo que as centrais sindicais, que em sua origem, nos anos 1980, nasceram a contrapelo da estrutura, foram incorporadas ao sindicalismo vertical, ocupando o topo daquela mesma estrutura montada pelo regime de Vargas nos anos 1930 e reformada pelo governo do ex-sindicalista nos anos 2000. E seus dirigentes passaram a ocupar postos centrais na estrutura do governo, particularmente na área do trabalho e gestão do funcionalismo. Considerando os objetivos dos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff de empreenderem uma profunda reforma sindical e trabalhista, a retomada do protagonismo dos professores nas universidades em que as seções sindicais estão aparelhadas pela entidade para-oficial é um grande acontecimento para a organização autônoma dos trabalhadores. Isso porque, por sua fidelidade aos princípios que nortearam o impulso original do “novo sindicalismo”, o ANDES-SN sempre constituiu um contra-exemplo muito incômodo para o peleguismo dominante. É impossível prever o desfecho da greve dos docentes de 2012 na altura em que redigimos este texto. No entanto, uma conquista já está assegurada. Ao votarem pela adesão ao movimento nas instituições cujas entidades foram aprisionadas pelo sindicato de carimbo, os docentes reconhecem a legitimidade do ANDES-SN e de sua busca constante por um sindicalismo autônomo e combativo. Diante da força da greve não há recurso ao Ministério do Trabalho, assessoria ao Ministério da Educação, “mãozinha” do Ministério do Planejamento, ou apadrinhamento da CUT que possam injetar vida nesse filhote tardio do morto-vivo sindicato de Estado brasileiro. É difícil dizer se ao fim do processo assistiremos ao enterro definitivo da entidade fantasma, pois, no quadro do sindicalismo brasileiro, como nos filmes de terror, os zumbis sempre retornam. Mas é certo que a greve desnudou esse espectro que anda pelos gabinetes de Brasília a falar em nome dos docentes. E o que se vê por baixo da capa artificial de legalidade que o Estado tenta lhe vestir é o putrefato cadáver do peleguismo. Morte rápida à entidade zumbi! Roberto Leher é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Observatório Social da América Latina – Brasil/ Clacso e do Projeto Outro Brasil (Fundação Rosa Luxemburgo). Marcelo Badaró Mattos é professor do departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). FONTE: Correio da Cidadania |
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