terça-feira, 15 de maio de 2012

Sobre as Ditaduras - Debate historiográfico


Leia também A anistia historiográfica , de Demian Melo, para entender o debate aberto em torno da questão


Resistências, resistências
As grandes transformações havidas no cenário político internacional - o fim da Guerra Fria, a Derrubada do Muro de Berlin (1989) e o fim da URSS (1991) e, nos nossos dias, a crise global do capitalismo – permitiram a emergência, por quase toda a Europa, de novos(?) grupos (neo)fascistas. Na Noruega, Grécia, Irlanda, Alemanha até, culminando, na expressiva votação do Front Nationale, na França. Um claro caso de um partido que nega a existência do Holocausto ou defende a validade do uso extenso da tortura pelo exército francês na Guerra da Argélia.


Tais fatos, incontestáveis em si mesmos, implicam no reconhecimento – duro, difícil e resistíamos a fazer – que a extrema direita, em especial em épocas de crise ( como no final dos anos de 1920 e agora ) possuem um amplo auditório (quase 19% do eleitorado francês ou 7% na Grécia). O pior de tudo é que não estamos nos referindo a velhinhos decrépitos lembrando seus tempos passados nas SS ou na Juventude Hitlerista. São, no momento, jovens como o terrorista norueguês ou a massa que acompanha o partido “Aurora Dourada”.



Repensar as ditaduras




Esta presença, com apoio popular, da extrema direita, ditatorial e violadora de todos os direitos, civis ou humanos, da sociedade moderna, nos obrigada a rever teses clássicas sobre os fascismos e as ditaduras do século XX. Em especial, nos obriga a pensar se, de fato, os fascistas de então ( na Europa ) ou os militares dos anos de 1960 ( na América Latina ) eram, de fato, uma minoria. Seria bom, apaziguador, pensar que apenas uma minoria apoiou as ditaduras. Contudo, uma análise de jornais de época – como já foi exposto aqui na Carta Maior – de documentos de empresários, sindicatos, manifestos de professores e das Igrejas mostram que uma parcela não desprezível da sociedade deu seu apoio aos regimes ditatoriais.


Em alguns casos, e não foram poucos, membros da sociedade civil, profissionais estabelecidos, como no caso da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje UFRJ, delataram, intrigaram, mentiram para incriminar colegas, organizando e fornecendo aos órgão de repressão listas de colegas de trabalho. Este foi, também, o caso da FIOCRUZ, o chamado “Massacre de Manguinhos”.


E então? Serão só os militares a serem chamados? Serão eles os únicos culpados? Esqueceremos os médicos-legistas, os psiquiatras, os enfermeiros que acompanhavam as torturas para que as vítimas não morressem antes da hora? E os políticos, alguns em cargos de direção da República, ontem e (pasmem!) hoje, e que sabiam das torturas e usaram seus mandatos para defender os torturadores?



Resistências?



Tais questões provocaram mudanças substantivas nas análises das ditaduras europeias contemporâneas. O acesso aos novos arquivos - na Rússia, na Alemanha, por exemplo - e o ressurgimento do fascismo enquanto movimento de massas, aceleraram as pesquisas sobre o tema e ampliaram as perguntas dos historiadores. Assim, a natureza policial das ditaduras contemporâneas - a própria imagem do Estado SS ou do complexo policial no fascismo - veio à tona. O surgimento na cena histórica das resistências internas e das oposições passivas abriu caminho para o questionamento de várias análises clássicas sobre a coesão e a amplitude da aceitação das ditaduras contemporâneas [1].


O traço comum no conjunto destes trabalhos - seja no Brasil, seja na Europa - é a irrupção de novos personagens na cena histórica, para além das determinações estruturais de caráter econômico que marcaram por mais de quarenta anos a maioria dos trabalhos sobre o tema (como as teses sobre relação onipresente entre Vargas e a industrialização ou fascismo e grande capital) ou de caráter político (as teses sobre Estado Novo e o atrelamento da classe operária e atrelamento dos trabalhadores) [2]. Assim, ora a multidão anônima, ora os indivíduos e as formas alternativas de participação e resistência, são chamados para contar sua história, o dia a dia frente à violência e o poder de “sedução” – expresso em ganhos materiais, no afastamento de rivais ou no afã de prestar serviços ao poder - das ditaduras modernas. No caso dos fascismos desempenhou importante papel nesta reinterpretação os trabalhos dos historiadores voltados para a chamada “Alltagsgeschichte” e, para a história das ditaduras sul-americanas, trabalhos de historiadores como Maria Helena Capelato, Denilse Rollemberg, Samantha Quadrat e Jorge Ferreira.


No quadro do estudo dos fascismos a irrupção de uma história cotidiana sob a ditadura – a chamada “Alltagsgeschichte” – trouxe à luz os pequenos atos, a resistência passiva, a desobediência como formas de agir político, mesmo quando não resultando numa clara opção pela rebeldia. Entretanto, os historiadores não são acordes quanto ao uso, e o conteúdo, dos conceitos em questão, em especial na definição do que seria “resistência”. Para alguns, chamados de “fundamentalistas”, só poderíamos falar em “resistência” (“Widerstand”, em alemão) quando se tratava de ações organizadas de superação do regime. Neste sentido, restritivo, “resistência” teria sido um fenômeno histórico de muito menor alcance no Terceiro Reich (e em praticamente todas as ditaduras). Outros, chamados de “tendência societal”, identificam como “resistência” todo fenômeno de dissidência ou dissentir ( no sentido de “dissent in everyday life”) praticado sob uma ditadura. Para Martin Broszat, importante historiador alemão, por exemplo, deveríamos distinguir, numa escala crescente entre “dissidência”, “oposição” e “resistência” ( “Resistenz” ) em vista de um melhor entendimento da capacidade de convencimento, ou repressão, das próprias ditaduras [3].


No caso italiano desempenhou um papel extremamente relevante o trabalho de Vitoria di Grazia ao relacionar convencimento, resistência e as organizações de lazer do fascismo italiano[4].



Resistência e colaboração



Entre nós um grupo importante de pesquisadores da UFF, com Daniel Aarão Reis, Samantha Viz Quadrat, Denise Rollemberg após revisar minuciosamente as temáticas da relação ditadura versus resistência, passaram a colocar maior ênfase no fenômeno da colaboração/aceitação pela sociedade civil dos regimes ditatoriais e, dessa forma, abriram novas perspectivas para o debate das relações entre sociedade civil e estado, em especial na América latina.


No caso brasileiro, o debate sobre a autonomia da “comunidade de informações”, as disputas no interior da burocracia de Estado – a percepção, por funcionários públicos e arrivistas de todos os tipos, de que as ditaduras representavam a “hora do acerto de contas” para velhas disputas de poder local ou institucional (que antecediam a própria ditadura ) ou mesmo um atalho para a promoção e o sucesso na carreira – como foi o caso na UFRJ -, eliminando rivais mais habilitados –, o recurso a delação como forma de resolver litígios não-políticos ou ideológicos, e mesmo uma forma de premiação, seria um dado importante para estudar a colaboração nos regimes ditatoriais.


O problema aqui seria superar tradições arraigadas neste tipo de estudo: de um lado, a insistência de heroicizar o conjunto da sociedade como vítima do Estado – enquanto boa parte da sociedade, como a grande mídia, em verdade apoiaram e celebraram o golpe - e nivelar todos como “heróis da resistência”. 


Logo após a derrubada ou colapso das ditaduras, e uma quase regra histórica, dá-se uma imensa corrida para perfilar o maior número de pessoas como “resistentes”. É comum, mesmo, que o próprio poder emergente se recuse a distinguir entre resistentes e colaboradores, na tentativa de evitar “novas divisões”, criar uma ampla frente de “unidade nacional”, recobrindo a história com uma pátina de chumbo.


Muitos, desavergonhadamente, ainda bradam contra o “revanchismo”.


Foi assim na Europa: a curta desnazificação alemã ou o limitado recurso a julgamentos dos “collabos” na França ou a total ausência de desfascistização na Itália, ou o “esquecimento” buscado pelas elites alemães e a resistência dos tribunais espanhóis em reconhecer os crimes do franquismo – emergindo daí a visão do conjunto da “nação, vítima e combatente” [5]. 


Os resultados são terríveis: a re-emergência dos fascismos, as acusações contra as vítimas, a busca de encobrimentos e, no limite, a justificação da tortura e de genocídios (do tipo “era uma guerra”). Da mesma forma, é inadimissível que um conhecimento “pré-pronto” (do tipo “foram os militares” encubra a delação e a colaboração de segmentos importantes da sociedade civil). Assim, nós, vamos acusar tão somente os protagonistas? Enquanto, aqueles que lucraram, ganharam e participaram ativamente das ditaduras como delatores e “fabricantes de dossiês” ficaram, ainda uma vez no anonimato?



NOTAS


[1] Além do já citado texto de Ayçoberry poderíamos destacar, nesta nova perspectiva, os seguintes trabalhos: SANDVOb, Hans-Rainer. Widerstand in einem Arbeiterbezirk (Resistência em um bairro operário). Berlin, Gedenkstätte Deustscher Widerstand, 1987; BUSCHAK, Willy. Arbeit in kleinsten Zirkel ( Trabalho em Pequenos Círculos ). Hamburg, Ergebnisse Verlag, 1993; AYAb, Wolfgang. Asoziale im Nationalsozialismus ( Marginais sob o Nacional-socialismo ). Stuttgart, Klett-Cotta, 1995; REICHEL, Peter. La fascination du nazisme. Paris, Jacob Editions, 1993 e HAASE, Norbert. Das Reichskriegsgericht u. der Widerstand gegen die Nationalsozialistische Herrschaft. Berlin, G. D. W., 1993.

[2] Na historiografia sobre o fascismo esta discussão foi travada em torno da superação das teses, na maioria marxistas, de “Primazia da Economia” na explicação do fascismo ( leia-se, as interpretações que afirmavam ser os fascismos mera ferramenta do grande capital ).

[3] Ver DEFRASNE, Jean. Histoire de La Colaboration. Paris, P.U.F., 1982.

[4] DE GRAZIA, Victoria de. Consenso e cultura di massa nell'Italia fascista. Roma/Bari, Laterza, 1981.

[5] Tais visões da “nação resistentes” e “vítima” foram popularizadas no pós-Segunda Guerra Mundial por grandes produções de cinema que popularizaram o “heroísmo” coletivo e a “unidade” contra o inimigo. Esta é a versão, por exemplo, do mito gaulista em “Paris está em chamas?” (Paris brûle-a-til?), de René Clement, 1966 ou da Itália vitimada pelos nazistas e fascistas em “Roma, cidade aberta” ( Roma, città aperta), de Roberto Rosselini, 1945.



(*) Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro.


FONTE: Carta Maior


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