Leia também A anistia historiográfica , de Demian Melo, para entender o debate aberto em torno da questão
Resistências, resistências
Por Francisco Carlos Teixeira
As grandes transformações havidas no cenário político
internacional - o fim da Guerra Fria, a Derrubada do Muro de Berlin (1989) e o
fim da URSS (1991) e, nos nossos dias, a crise global do capitalismo –
permitiram a emergência, por quase toda a Europa, de novos(?) grupos
(neo)fascistas. Na Noruega, Grécia, Irlanda, Alemanha até, culminando, na
expressiva votação do Front Nationale, na França. Um claro caso de um partido
que nega a existência do Holocausto ou defende a validade do uso extenso da
tortura pelo exército francês na Guerra da Argélia.
Tais fatos,
incontestáveis em si mesmos, implicam no reconhecimento – duro, difícil e
resistíamos a fazer – que a extrema direita, em especial em épocas de crise (
como no final dos anos de 1920 e agora ) possuem um amplo auditório (quase 19%
do eleitorado francês ou 7% na Grécia). O pior de tudo é que não estamos nos
referindo a velhinhos decrépitos lembrando seus tempos passados nas SS ou na
Juventude Hitlerista. São, no momento, jovens como o terrorista norueguês ou a
massa que acompanha o partido “Aurora Dourada”.
Repensar as
ditaduras
Esta presença, com apoio popular, da extrema direita,
ditatorial e violadora de todos os direitos, civis ou humanos, da sociedade
moderna, nos obrigada a rever teses clássicas sobre os fascismos e as ditaduras
do século XX. Em especial, nos obriga a pensar se, de fato, os fascistas de
então ( na Europa ) ou os militares dos anos de 1960 ( na América Latina ) eram,
de fato, uma minoria. Seria bom, apaziguador, pensar que apenas uma minoria
apoiou as ditaduras. Contudo, uma análise de jornais de época – como já foi
exposto aqui na Carta Maior – de documentos de empresários, sindicatos,
manifestos de professores e das Igrejas mostram que uma parcela não desprezível
da sociedade deu seu apoio aos regimes ditatoriais.
Em alguns casos, e
não foram poucos, membros da sociedade civil, profissionais estabelecidos, como
no caso da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje UFRJ,
delataram, intrigaram, mentiram para incriminar colegas, organizando e
fornecendo aos órgão de repressão listas de colegas de trabalho. Este foi,
também, o caso da FIOCRUZ, o chamado “Massacre de Manguinhos”.
E então?
Serão só os militares a serem chamados? Serão eles os únicos culpados?
Esqueceremos os médicos-legistas, os psiquiatras, os enfermeiros que
acompanhavam as torturas para que as vítimas não morressem antes da hora? E os
políticos, alguns em cargos de direção da República, ontem e (pasmem!) hoje, e
que sabiam das torturas e usaram seus mandatos para defender os
torturadores?
Resistências?
Tais questões provocaram mudanças
substantivas nas análises das ditaduras europeias contemporâneas. O acesso aos
novos arquivos - na Rússia, na Alemanha, por exemplo - e o ressurgimento do
fascismo enquanto movimento de massas, aceleraram as pesquisas sobre o tema e
ampliaram as perguntas dos historiadores. Assim, a natureza policial das
ditaduras contemporâneas - a própria imagem do Estado SS ou do complexo policial
no fascismo - veio à tona. O surgimento na cena histórica das resistências
internas e das oposições passivas abriu caminho para o questionamento de várias
análises clássicas sobre a coesão e a amplitude da aceitação das ditaduras
contemporâneas [1].
O traço comum no conjunto destes trabalhos - seja no
Brasil, seja na Europa - é a irrupção de novos personagens na cena histórica,
para além das determinações estruturais de caráter econômico que marcaram por
mais de quarenta anos a maioria dos trabalhos sobre o tema (como as teses sobre
relação onipresente entre Vargas e a industrialização ou fascismo e grande
capital) ou de caráter político (as teses sobre Estado Novo e o atrelamento da
classe operária e atrelamento dos trabalhadores) [2]. Assim, ora a multidão
anônima, ora os indivíduos e as formas alternativas de participação e
resistência, são chamados para contar sua história, o dia a dia frente à
violência e o poder de “sedução” – expresso em ganhos materiais, no afastamento
de rivais ou no afã de prestar serviços ao poder - das ditaduras modernas. No
caso dos fascismos desempenhou importante papel nesta reinterpretação os
trabalhos dos historiadores voltados para a chamada “Alltagsgeschichte” e, para
a história das ditaduras sul-americanas, trabalhos de historiadores como Maria
Helena Capelato, Denilse Rollemberg, Samantha Quadrat e Jorge
Ferreira.
No quadro do estudo dos fascismos a irrupção de uma história
cotidiana sob a ditadura – a chamada “Alltagsgeschichte” – trouxe à luz os
pequenos atos, a resistência passiva, a desobediência como formas de agir
político, mesmo quando não resultando numa clara opção pela rebeldia.
Entretanto, os historiadores não são acordes quanto ao uso, e o conteúdo, dos
conceitos em questão, em especial na definição do que seria “resistência”. Para
alguns, chamados de “fundamentalistas”, só poderíamos falar em “resistência” (“Widerstand”, em alemão) quando se tratava de ações organizadas de superação do
regime. Neste sentido, restritivo, “resistência” teria sido um fenômeno
histórico de muito menor alcance no Terceiro Reich (e em praticamente todas as
ditaduras). Outros, chamados de “tendência societal”, identificam como
“resistência” todo fenômeno de dissidência ou dissentir ( no sentido de “dissent
in everyday life”) praticado sob uma ditadura. Para Martin Broszat, importante
historiador alemão, por exemplo, deveríamos distinguir, numa escala crescente
entre “dissidência”, “oposição” e “resistência” ( “Resistenz” ) em vista de um
melhor entendimento da capacidade de convencimento, ou repressão, das próprias
ditaduras [3].
No caso italiano desempenhou um papel extremamente
relevante o trabalho de Vitoria di Grazia ao relacionar convencimento,
resistência e as organizações de lazer do fascismo
italiano[4].
Resistência e colaboração
Entre nós um grupo
importante de pesquisadores da UFF, com Daniel Aarão Reis, Samantha Viz Quadrat,
Denise Rollemberg após revisar minuciosamente as temáticas da relação ditadura
versus resistência, passaram a colocar maior ênfase no fenômeno da
colaboração/aceitação pela sociedade civil dos regimes ditatoriais e, dessa
forma, abriram novas perspectivas para o debate das relações entre sociedade
civil e estado, em especial na América latina.
No caso brasileiro, o
debate sobre a autonomia da “comunidade de informações”, as disputas no interior
da burocracia de Estado – a percepção, por funcionários públicos e arrivistas de
todos os tipos, de que as ditaduras representavam a “hora do acerto de contas”
para velhas disputas de poder local ou institucional (que antecediam a própria
ditadura ) ou mesmo um atalho para a promoção e o sucesso na carreira – como foi
o caso na UFRJ -, eliminando rivais mais habilitados –, o recurso a delação como
forma de resolver litígios não-políticos ou ideológicos, e mesmo uma forma de
premiação, seria um dado importante para estudar a colaboração nos regimes
ditatoriais.
O problema aqui seria superar tradições arraigadas neste
tipo de estudo: de um lado, a insistência de heroicizar o conjunto da sociedade
como vítima do Estado – enquanto boa parte da sociedade, como a grande mídia, em
verdade apoiaram e celebraram o golpe - e nivelar todos como “heróis da
resistência”.
Logo após a derrubada ou colapso das ditaduras, e uma
quase regra histórica, dá-se uma imensa corrida para perfilar o maior número de
pessoas como “resistentes”. É comum, mesmo, que o próprio poder emergente se
recuse a distinguir entre resistentes e colaboradores, na tentativa de evitar
“novas divisões”, criar uma ampla frente de “unidade nacional”, recobrindo a
história com uma pátina de chumbo.
Muitos, desavergonhadamente, ainda
bradam contra o “revanchismo”.
Foi assim na Europa: a curta
desnazificação alemã ou o limitado recurso a julgamentos dos “collabos” na
França ou a total ausência de desfascistização na Itália, ou o “esquecimento”
buscado pelas elites alemães e a resistência dos tribunais espanhóis em
reconhecer os crimes do franquismo – emergindo daí a visão do conjunto da
“nação, vítima e combatente” [5].
Os resultados são terríveis: a
re-emergência dos fascismos, as acusações contra as vítimas, a busca de
encobrimentos e, no limite, a justificação da tortura e de genocídios (do tipo
“era uma guerra”). Da mesma forma, é inadimissível que um conhecimento
“pré-pronto” (do tipo “foram os militares” encubra a delação e a colaboração de
segmentos importantes da sociedade civil). Assim, nós, vamos acusar tão somente
os protagonistas? Enquanto, aqueles que lucraram, ganharam e participaram
ativamente das ditaduras como delatores e “fabricantes de dossiês” ficaram,
ainda uma vez no anonimato?
NOTAS
[1] Além do já citado
texto de Ayçoberry poderíamos destacar, nesta nova perspectiva, os seguintes
trabalhos: SANDVOb, Hans-Rainer. Widerstand in einem Arbeiterbezirk (Resistência
em um bairro operário). Berlin, Gedenkstätte Deustscher Widerstand, 1987;
BUSCHAK, Willy. Arbeit in kleinsten Zirkel ( Trabalho em Pequenos Círculos ).
Hamburg, Ergebnisse Verlag, 1993; AYAb, Wolfgang. Asoziale im
Nationalsozialismus ( Marginais sob o Nacional-socialismo ). Stuttgart,
Klett-Cotta, 1995; REICHEL, Peter. La fascination du nazisme. Paris, Jacob
Editions, 1993 e HAASE, Norbert. Das Reichskriegsgericht u. der Widerstand gegen
die Nationalsozialistische Herrschaft. Berlin, G. D. W., 1993.
[2] Na
historiografia sobre o fascismo esta discussão foi travada em torno da superação
das teses, na maioria marxistas, de “Primazia da Economia” na explicação do
fascismo ( leia-se, as interpretações que afirmavam ser os fascismos mera
ferramenta do grande capital ).
[3] Ver DEFRASNE, Jean. Histoire de La
Colaboration. Paris, P.U.F., 1982.
[4] DE GRAZIA, Victoria de. Consenso e
cultura di massa nell'Italia fascista. Roma/Bari, Laterza, 1981.
[5] Tais
visões da “nação resistentes” e “vítima” foram popularizadas no pós-Segunda
Guerra Mundial por grandes produções de cinema que popularizaram o “heroísmo”
coletivo e a “unidade” contra o inimigo. Esta é a versão, por exemplo, do mito
gaulista em “Paris está em chamas?” (Paris brûle-a-til?), de René Clement, 1966
ou da Itália vitimada pelos nazistas e fascistas em “Roma, cidade aberta” (
Roma, città aperta), de Roberto Rosselini, 1945.
(*) Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
FONTE: Carta Maior
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