quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

K - A história do pai que descobriu tudo



Por Marcius Cortez

 

“K” é um romance de vultos vivos – pouco importa se um deles não está mais entre nós. São três os personagens principais. Um é o K., o pai, que está em movimento de odisséia; o outro, a filha, que no silêncio da morte também de certa maneira perfaz o périplo de Ulisses; e o terceiro é o vil, a assombrosa figura sem rosto mas articuladíssima e em plena energia de tramar maldades para depois arder em risos, mascando espinhos, protegido pelo criminoso aparato da Lei, no aconchego de seu espaço. Certamente o leitor já matou a charada: estamos falando das barbaridades da ditadura no Brasil. Este é o contexto do romance de Bernardo Kucinski, recentemente lançado pela Editora Expressão Popular



 
Sua escrita vem com dor, mas abre espaço para um significativo sorriso pela beleza da determinação do pai de refazer os últimos momentos da filha “desaparecida política”. Ela, que não tem nome, (talvez comece pela letra “A”), personifica a ficção, pois como se trata de alguém que desapareceu pode igualmente ser alguém que nunca existiu na realidade. É cruel, monstruoso, tirano. Na página 27 está lá o exasperante registro: “Até os nazistas, que reduziam suas vítimas a cinzas, registravam os mortos”.


 
O papai K., tal qual o agrimensor K., bate na porta do Castelo, mas ninguém atende, embora não lhe passara desapercebido o barulho da portinhola lateral e a metade do rosto de Jesuína Gonzaga a espreitá-lo. Jesuína Gonzaga, a testemunha-bomba, aquela que viu com os olhos bem abertos o “açougue” da Casa da Morte, em Petrópolis, onde os assistentes do Dr. Sérgio Paranhos Fleury serravam os corpos dos ativistas políticos mortos em tortura antes de ensacá-los e “desaparecê-los”.

 

A vida é sinistra? Ou é a realidade que se torna sinistra? K. encontra-se em um jogo de cartas marcadas. Logo o Conde Westwest, autoridade do Castelo, lhe fará pesadas ameaças. Ocorre que K., personagem de severa interioridade, não lhe dará ouvidos, decidido a se manter ocupado em derrubar as máscaras dos verdugos. O pai encarna o real: ele não se abate com o horror em devir. O K. do Castelo (Das Schloss, 1926) e o Joseph K. do Processo (Der Prozess, 1925) sentem medo. Esse último então alimenta aquela loucura que morrerá como um cão e se enrosca nesse labirinto. No entanto, com o K. de Kucinski se dá o contrário: a tragédia da filha o enche de coragem e ele obstina-se a dignificar seu destino.


 
O Estado-inseto lhe seqüestrara as energias, porém, o homem resiste, despido de qualquer forma de temor que iniba sua busca por reconstituir o crime contra “A”, a professora de Química que a USP teve o mau-caratismo de demitir por abandono de emprego. “Selva selvaggia” diria o próprio K., e dando de ombros voltaria para sua ilha de confiança, quem sabe até feliz na sua crença de pai. A crítica viu em “O Castelo” um lado religioso do ateu Franz Kafka e de certa maneira isso se reproduz nas páginas de “K.”; há ali uma celebração à força da natureza, ao ciclo da vida, pai/começo/fim e filha/fim/começo. Inquietações religiosas? Bom, a literatura é o terreno ideal para se discutirem essas coisas...

 

Nos dias de hoje, Kafka detém a marca de ser o autor do qual mais se escreve, que mais inspirou teses universitárias, e em segundo lugar aparece, com uma razoável diferença entre os dois, o nome de William Shakespeare. Certo estudioso do escritor tcheco, em ensaio complexo, deixou escapar uma frase que para uma resenha cabe muito bem por ser de rápido entendimento. Diz a frase: “a ficção de Kafka é um relâmpago que desvela o que não se via”. Shakespeare escreveu a mais bela e a mais trágica história de amor do mundo; escreveu sobre o maldito enigma do ser ou não ser, imortalizado na figura do príncipe que matara o pai, o rei da Dinamarca; escreveu sobre o mal e o bem em luta sanguinária pela conquista ou manutenção do poder. O interesse que ambos despertam no nosso mundo tecnológico é, portanto, um fato óbvio: o sentimento trágico da existência humana mantém acesa a chama de sua força. Essa atração pelo trágico vem de muito longe. A pintura de Hieronymus Bosch não só eternizou o desespero como se transformou numa das mais permanentes referências da história da arte.


O romance de Bernardo Kucinski tem o mérito de contribuir para o entendimento do nosso trágico e da nossa agonia por vivermos em um país onde a democracia é um mero arremedo, uma meia sola batida por um sapateiro “sem-vergonho” que vendeu sua alma à ilusão. Movidos pelo fervor da leitura, chegamos aos derradeiros capítulos e em um deles lemos a epígrafe de H.N.Bialik, traduzido por Jacó Guinsburg: “De que valem mil mortos por dia? Morre de vez, em paz encerra tua agonia”. O capítulo chama-se “No Barro Branco”. Esse trecho do livro deve ser lido como se tivesse sido escrito em imitação de uma pintura, a bela ilustração de Enio Squeff que aparece sozinha na página seguinte de número 171. Naquele vulto tão plástico é possível ver em sua expressão o universal esplendor dos seres que palmilharam os caminhos da dor sem dobrar a espinha nem se intimidar diante das bravatas das bestas feras que comandam os destinos do Castelo.

 

Finalmente, o Post Scriptum. Não ocupa nem a página inteira, mas a sua contundência é avassaladora. A vontade que nos dá no fim desses escritos é a de sonhar com a justiça para os baixos instintos que metamorfosearam nossos entes queridos em sombras sem voz.

 

Ficha técnica do livro

Título: K
Autor: Bernardo Kucinski
Editora: Expressão Popular
Ano: 2011
Páginas: 177
Preço: R$ 15,00



FONTE: Correio da Cidadania
 
 

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