Manuscrito dos "Grundrisse", de Karl Marx |
Por Lincoln Secco.
Ao ver a edição brasileira de um manuscrito de Marx que ficou tanto tempo oculto (Grundrisse) lembrei-me do caso igualmente notório de Antonio Gramsci, mas cuja obra foi rapidamente publicada. Não sem passar por desventuras. Afinal, quantos livros não se perderam para sempre e deixaram de mudar a visão que temos da história?
Conta-se que um homem carregava consigo os diários de guerra de Jean-Paul Sartre. Ele embarcou num trem e, ao descer, os esqueceu. Só uma parte dos mesmos havia sido conservada e foi publicada uns 40 anos depois. O que teria acontecido àqueles diários? Destruídos ao acaso? Quem os encontrou nunca desejou mostrá-los? A História está plena de livros que se perderam pelos mais variados motivos (veja-se Arlette Elkaim-Sartre. Nota prévia em: J.P. Sartre. Diário de uma guerra estranha. Novembro de 1939-março de 1940. São Paulo: Círculo do Livro, 1987).
Felizmente, os Cadernos do Cárcere, de Antonio Gramsci, tiveram outra sorte.
No dia 7 de dezembro de 1933, depois de pedidos insistentes e uma campanha internacional a respeito de suas precárias condições de saúde, Antonio Gramsci foi finalmente transferido da prisão de Turi para uma clínica em Formia. A preocupação do detento era com seus livros. Especialmente com seus cadernos manuscritos. Temia que a direção do cárcere lhe confiscasse tudo o que havia escrito ou lido. Preparou uma operação: enquanto ele mesmo distraía seus carcereiros, um jovem amigo de cela, Gustavo Trombetti, enfiava os cadernos embaixo das roupas, no fundo da mala.
Quando Antonio morreu em 27 de abril de 1937, ele deixou na clínica onde passou os últimos dias lancinantes da vida, os seus livros. Livros lidos e escritos. Livros do presente e do passado. E aqueles do futuro, de sua lavra, os cadernos que viriam a ser publicados. Piero Sraffa, seu amigo e correspondente, interpelou o centro exterior do Partido Comunista da Itália sobre o que fazer com os manuscritos gramscianos. Palmiro Togliatti (cujo pseudônimo era Ercoli) escreveu-lhe falando com veemência da herança política e literária de Antonio. Decidiu-se enviá-los a Giulia, esposa de Antonio, em Moscou (o que significava, em verdade, fazê-los chegar a Ercoli). Escrevendo a Tatiana, cunhada de Antonio, Piero a aconselhou a cuidar muito da segurança do transporte dos manuscritos. Seria preciso um transporte “seguríssimo”. Quando Piero chegou à Itália, em junho, ele cuidou para que os cadernos do cárcere ficassem sob custódia no cofre de um banco (Banca commerciale). O presidente do banco era um antifascista e amigo de Piero Sraffa.
Segundo um notável historiador italiano (Paolo Spriano. Gramsci in carcere e il partito. Roma: L’Unità, 1988, pp.104-5), os cadernos permaneceram no cofre por um ano. Neste período Tatiana fez várias instâncias a fim de tomar posse também dos livros que Antonio possuía na prisão. Depois disso, providenciou um baú no qual os cadernos chegaram a Moscou. Lá, Vincenzo Bianco, representante italiano na Internacional Comunista, retirou pessoalmente os escritos e os entregou a Ercoli. Foi assim que os cadernos de Antonio Gramsci foram salvos.
No entanto, a forma de sua edição até hoje causa polêmicas, pois sabemos que a mediação editorial nunca é inocente. Os livros de Gramsci foram agrupados por temas (Edição Togliatti – Platone), colocados na ordem espacial dos cadernos originais (edição Gerratana), assim como se tenta ainda hoje estabelecer a ordem cronológica em que foram escritos (veja-se a pesquisa de G. Francioni na Itália). Até mesmo a nova edição brasileira aproveitou parte da temática de Togliatti e combinou-a com a edição crítica.
De toda maneira, ter os livros editados em qualquer forma é sempre melhor do que não tê-los, mas num momento editorial especial como este, em que a Boitempo e outras editoras buscam editar Marx a partir de traduções do original alemão, seria bem-vinda uma edição crítica dos Cadernos do Cárcere, ou seja, a tradução do majestoso trabalho de Valentino Gerratana e de seu aparato crítico.
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Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia.
FONTE: Blog da Boitempo
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