sábado, 27 de agosto de 2011

Em campo minado


Em livro que foi best-seller em seu país e chega ao Brasil, historiador israelense Shlomo Sand defende que povo judeu é uma invenção do sionismo para conquistar soberania territorial
O historiador israelense Shlomo Sand, autor de "A Invenção do Povo Judeu", lançado no Brasil pelo selo Benvirá


FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO

 

Na carteira de identidade do historiador israelense Shlomo Sand, no lugar reservado à nacionalidade está escrito que ele é judeu.


Sand, 64, solicitou ao governo que seja identificado de outro modo, como israelense, porque acredita que não existe nem um povo nem uma nação judeus.


Seus motivos estão expostos em "A Invenção do Povo Judeu". Best-seller em Israel, traduzido para 21 idiomas e incensado pelo historiador Eric Hobsbawm, o livro chega agora ao Brasil (Benvirá).


O autor defende que não há uma origem única entre os judeus espalhados pelo mundo. A versão de que um povo hebreu foi expulso da Palestina há 2.000 anos e que os judeus de hoje são seus descendentes é, segundo Sand, um mito criado por historiadores no século 19 e desde então difundido pelo sionismo.


"Por que o sionismo define o judaísmo como um povo, uma nação, e não como uma religião? Acho que insistem em ser um povo para terem o direito sobre a terra. Povos têm direitos sobre terra, religiões não", diz à Folha, por telefone, de Paris.


"Na Idade Média a palavra povo se aplicava a religiões: o povo cristão, o povo de Deus. Hoje, aplicamos o termo a grupos humanos que têm uma cultura secular -língua, comida, música etc. Dizemos povo brasileiro, povo argentino, mas não povo cristão, povo muçulmano. Por que, então, povo judeu?"


Valendo-se de fontes e documentos históricos, a tese de Sand, ele mesmo admite no livro, não é em si nova (cita predecessores como Boaz Evron e Uri Ram). "Sintetizei, combinei evidências e testamentos que outros não fizeram, pus de outro modo."


Ele compara: até meados do século 20, "a maioria dos franceses achava que era descendente direto dos gauleses, os alemães dos teutões e os italianos, do império de Júlio César". "São todos mitos", afirma, "que ajudaram a criar nações no século 19".


Neste século 21, sustenta, não há mais lugar para isso.


"Não só o Brasil é uma grande mistura. A França, a Itália, a Inglaterra são. Somos todos misturados.


Infelizmente há muitos judeus que se acham descendentes dos hebreus. Não me sinto assim. Gosto de ser uma mistura."


Filho de judeus, nascido num campo de refugiados na Áustria, o autor lutou do lado israelense contra os árabes na Guerra dos Seis Dias, em 67, quando o país ocupou Cisjordânia e faixa de Gaza.


Em seguida virou militante de extrema esquerda e passou a defender um Estado palestino junto ao de Israel.


Professor na Universidade de Tel Aviv e na França, onde passa parte do ano, o historiador avalia que as hostilidades entre israelenses e palestinos, reavivadas nas últimas semanas, continuarão por tempo indeterminado.


"Enquanto o Estado palestino não for reconhecido nas fronteiras de 67, acho que a violência não vai parar."
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A INVENÇÃO DO POVO JUDEU

AUTOR Shlomo Sand

EDITORA Benvirá

TRADUÇÃO Eveline Bouteiller

QUANTO R$ 54,90 (576 págs.)
 
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VISÃO JUDAICA

Obra é panfleto acadêmico com proposta radical


Autor dá base para a criação de um Estado binacional no lugar de Israel


ARIEL FINGUERMAN*
ESPECIAL PARA A FOLHA

 
Até a Idade Média, o judeu (assim como o cristão) sabia muito bem o que era: membro de uma comunidade definida por uma religião. Nascia, vivia e morria sem vontade ou possibilidade de mudar sua identidade.


Com a Idade Moderna, isso mudou. O processo de urbanização quebrou as estruturas comunitárias tradicionais, a Revolução Industrial transformou todos em consumidores, o Iluminismo deu a base filosófica de direitos iguais e a Revolução Francesa colocou tudo isso em ação.


O resultado para os judeus, e isso até os dias de hoje, é que uma boa parte desse povo, especialmente aqueles que deixaram as muralhas fechadas da ortodoxia, não sabe muito bem o que é. Membro de uma religião, mesmo levando em conta que raramente vai a uma sinagoga?


Parte integral do país onde vive, se bem que nem sempre reconhecido como tal por seus compatriotas? Até mesmo os nazistas, quando resolveram assassinar os judeus, tiveram dificuldade em defini-los. "Eu decido quem é judeu", dizia Göring.


Segundo a lei ortodoxa judaica, a religião é transmitida pela mãe. Para os reformistas, a maior sinagoga dos EUA, pode ser pelo pai. Em Israel, há mais de 60 anos se discute o assunto no Parlamento e na Suprema Corte, sem uma conclusão.


Uma das mais recentes reflexões dessa área é "A Invenção do Povo Judeu", de Shlomo Sand. Trata-se de uma obra acadêmico-panfletária, que causou algum frisson em Israel e na Europa.


Como livro acadêmico, traz uma proposta interessante, definindo o judeu pelo que ele não é: uma raça pura, descendente dos heróis bíblicos.


Sand mostra que em diferentes períodos históricos, especialmente na época de Jesus, os judeus fizeram proselitismo, converteram pagãos e assim desprezaram qualquer ideia de "raça pura".


Mas, em sua face panfletária, Sand quer nos convencer de que a ideia de "povo judeu" é uma mera invenção de historiadores sionistas dos últimos 150 anos, desejosos de unificar comunidades para tomar posse da Palestina.


Para ele, a Bíblia nunca foi uma base cultural comum dos judeus, mas é usada cinicamente agora como "documento de posse".


Somente nas últimas das quase 600 páginas de seu livro Sand revela o motivo de seu esforço intelectual: dar base acadêmica para a ideia de um Estado binacional israelense-palestino, que substituiria o Estado de Israel.


É uma proposta radical, que não é exigida nem pela Autoridade Palestina nem pela Liga Árabe. Como obra acadêmica, o livro de Sand soa panfletário. Mas, como panfleto, é acadêmico demais.
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*ARIEL FINGUERMAN é doutor em estudos do judaísmo pela USP e pela Universidade de Tel Aviv.
A INVENÇÃO DO POVO JUDEU
AVALIAÇÃO regular
 
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VISÃO PALESTINA
Sand indica o caminho da paz na região


Ensaio revê como o mito sionista justificou a ocupação da Palestina

 
ABDEL LATIF HASAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

 
Shlomo Sand derruba os principais mitos israelenses.


Na historiografia oficial, os judeus, após saírem do Egito, ocuparam a Palestina, construíram Estados, sendo o mais importante o reino de Davi e Salomão, foram expulsos da terra várias vezes, e a última expulsão se deu após a destruição do templo, em 70 d.C.


Vagaram por 2.000 anos até retornar à terra prometida e criar seu Estado na Palestina, em 1948.


Sand demonstra que essa narrativa é fantasiosa, falsa, contrária à história.


Os atuais judeus não são descendentes dos antigos hebreus ou israelitas, que viviam na Palestina.


Descendem de povos que se converteram ao judaísmo, bem longe da Palestina.


Destaca o reino de Himyar, no Iêmen, que se converteu ao judaísmo em 378 d.C. O mesmo ocorreu com os berberes do norte da África.


A evidência linguística indica que os judeus sefarditas descendem de árabes, berberes e europeus convertidos.


Os judeus askhenazi (ocidentais) descendem dos kházaros, eslavos que habitavam o território ao longo dos rios Volga e Don (Rússia e Ucrânia) e migraram para a Polônia e territórios vizinhos, dando origem às numerosas comunidades judaicas.


É mito o êxodo dos judeus após a destruição do templo. Roma não expulsou os judeus de Jerusalém ou da Palestina. Não há menção de deportação na extensa documentação dos romanos, minuciosos. Roma nunca deportou povos inteiros.


Na época do alegado exílio, havia muito mais judeus fora da Palestina que dentro. As comunidades judaicas da Mesopotâmia, do Egito (Alexandria) e do norte da África eram mais numerosas que a comunidade na Palestina.


Para os sionistas, era imperioso um exílio forçado, para se aceitar a "história orgânica do povo judeu".


É lenda a saída dos judeus do Egito e a conquista da Palestina. Nada há de dados científicos, históricos ou arqueológicos sobre o reino de Davi e Salomão. Transformaram o Velho Testamento, teologia, em livro de história.


No final do século 19, inventaram um povo e forjaram sua "história", negando fatos históricos e transformando mitos em falsas verdades, para justificar a ocupação da Palestina e expulsar seu povo.


Isso resultou na criação de entidade anômala: Israel se define como Estado judeu democrático, o que é falso, pois quem discrimina 25% de sua população (não judeus) não é democrático.


Sand indica o rumo da reconciliação e paz na região: rever os mitos de Israel e a ideologia sionista, a exclusividade "racial" e falsidade histórica.
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*ABDEL LATIF HASAN, palestino naturalizado brasileiro, é médico e conselheiro da Federação das Entidades Palestinas

 
A INVENÇÃO DO POVO JUDEU
AVALIAÇÃO ótimo


FONTE: Folha de São Paulo, 27 de agosto de 2011.

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