HISTÓRIA
O negreiro e a letra morta
Como a lei que tentou proibir o tráfico, há 180 anos, foi só "para inglês ver"
RESUMO
Em 1831, sob pressão inglesa, o Brasil aprovou lei para proibir o tráfico negreiro, que, no entanto, ainda vicejou por décadas no país, sob os auspícios de cafeicultores, traficantes e do Estado. No Brasil, em Cuba, nos EUA e no Haiti, o comércio de escravos prosperou, simbolizado pelo navio negreiro, misto de feitoria e prisão.
ELEONORA DE LUCENA
O Brasil foi o campeão mundial da escravidão moderna, a dolorosa base de construção do capitalismo. Na véspera da Independência, em 1820, dois terços da população eram de escravos; de 1790 a 1830, eles representaram dois terços de todas as importações brasileiras.
Só nesse período, desembarcaram no Rio 700 mil africanos. Em 1840, mais escravos foram traficados no mercado do Valongo --cujas ruínas foram descobertas no início deste ano, durante as obras no porto carioca-- do que em todos os mercados de Nova Orleans juntos. O Rio de Janeiro foi a maior cidade escravista do mundo desde a Roma antiga.
Neste ano se completam 180 anos da lei que proibiu o tráfico de escravos. Letra morta, ela passou para os livros como a que foi feita para "inglês ver" e virou expressão nacional.
Quatro novos livros, de historiadores brasileiros e norte-americanos, cruzam as histórias de Brasil, EUA e Cuba para dissecar essa história violenta. Mostram um mundo em transformação, no qual os interesses da acumulação capitalista entram em conflito com as insurreições e as contradições da formação do mercado consumidor.
As batalhas ocorreram nos mares, nos rios africanos, nos parlamentos, nas senzalas e nos jornais; entre seus pontos cruciais estão o movimento abolicionista, a revolta que criou o Haiti, os canhões ingleses e a guerra civil nos EUA.
NAVIO Um dos lançamentos mais interessantes é "O Navio Negreiro - Uma História Humana", de Marcus Rediker [trad. Luciano Machado, Companhia das Letras, 464 págs., R$ 64]. Professor de história marítima da Universidade de Pittsburg (EUA), Rediker mescla cifras, análise política e depoimentos de atores do que foi a maior migração forçada da história.
Nos 400 anos de história do tráfico (do fim do século 15 ao fim do século 19), Rediker contabiliza 12,4 milhões de embarcados em navios negreiros. Destes, 1,8 milhão morreu durante a viagem e foi jogado ao mar.
O rigor com as estatísticas não esconde os dramas por trás delas, como o caso do navio Zong, que, em 1781, levava 470 escravos para a Jamaica quando uma doença se espalhou, matando 60 africanos e sete tripulantes.
O capitão Luke Collingwood calculou: se os escravos tivessem morte natural, a perda seria dos traficantes; se fossem jogados ao mar, o prejuízo seria da seguradora. Não hesitou: atirou ao mar 122 cativos; dez se suicidaram. O caso foi parar na Justiça e atiçou o abolicionismo.
Rediker ancora a narrativa no navio: sua construção (por mãos escravas), sua tecnologia (das mais avançadas), sua tripulação (jovens pobres endividados), seu comando (despótico e cruel), sua carga (amontoada), sua rotina (doenças, motins, estupros, suicídios, assassinatos). Não raro, tubarões seguiam as embarcações atrás de cadáveres.
Não é uma leitura leve, admite o próprio autor. Às vezes faz lembrar "Coração das Trevas", de Joseph Conrad (1857-1924), ou evoca a imagem da instalação de Emanoel Araújo sobre um navio negreiro exposta no Museu AfroBrasil, em São Paulo.
DESESPERO Dicky Sam, pseudônimo de um escritor de Liverpool --base britânica do tráfico e palco de revoltas--, descreveu assim o negreiro: "O capitão brutaliza os homens, os homens torturam os escravos, o coração dos escravos se afoga em desespero".
Rediker enfatiza que o navio negreiro foi uma peça fundamental para a ascensão do capitalismo. Ajudou a tomar terras e a expropriar milhares de pessoas, deslocando-as para explorar minas de ouro e prata, cultivar tabaco e cana-de-açúcar. Também foi vital para o desenvolvimento do comércio de longa distância e para a acumulação de riquezas e de capitais de forma inédita.
O barco era uma feitoria e uma prisão. A violência estava no seu cerne. As mortes faziam parte de um negócio que, se tudo corresse bem, podia garantir aos traficantes um lucro de 100%.
Outro estudioso do tráfico, Gerald Horne, cita uma estimativa de Henry Wise (1806-76), que foi governador da Virgínia e atuou como principal diplomata dos EUA no Brasil: o lucro com o tráfico de escravos variava de 600% a 1.200%.
O destino mais lucrativo para os negreiros era o Brasil, diz Horne, que teve seu "O Sul Mais Distante - Os Estados Unidos, o Brasil e o Tráfico de Escravos Africanos" [trad. Berilo Vargas, Companhia das Letras, 488 págs., R$ 59,50] incluído na recente fornada de livros sobre o assunto.
Professor da Universidade de Houston, Texas, Horne lembra que, de 1500 a 1800, chegaram às Américas mais africanos do que europeus. De 1600 a 1850, 4,5 milhões de escravos desembarcam no Brasil, dez vezes a quantidade levada para a América do Norte.
O autor enfatiza que a maior parte da riqueza dos grandes países da Europa e da América do Norte foi acumulada graças à escravidão: a fase mais intensa e lucrativa do tráfico foi financiada por capitais dos EUA, em navios norte-americanos, com tripulação e bandeira ianques.
BRASIL E EUA O grande mérito do livro de Horne é descrever como as relações diplomáticas, comerciais e políticas entre Brasil e EUA se entrelaçavam e aproximavam escravocratas de lá e de cá. Juntos, os dois países chegaram a abrigar 67% dos escravos das Américas.
Os EUA eram o principal mercado para os cafeicultores brasileiros, que, por sua vez, eram os maiores compradores de escravos. Se o norte dos EUA lucrava com a construção de navios e com o tráfico, o sul via no Brasil uma possível válvula de escape para a economia escravocrata.
Mesmo antes da eclosão da Guerra Civil Americana (1861-65), uma parcela mais conservadora dos confederados acalentou planos de transferência de proprietários sulistas (e de sua escravaria) para a Amazônia e outras regiões do Brasil. Enxergavam em d. Pedro 2º um aliado, mas não conseguiram um esperado engajamento brasileiro na guerra contra o norte.
Grupos de derrotados da Guerra de Secessão chegaram a aportar por aqui; a maioria voltou desiludida. No entanto, em Santa Bárbara do Oeste e Americana, ambas no interior paulista, os confederados ficaram.
Horne traz relatos pavorosos da vida no Brasil escravocrata. Durante a corrida do ouro para a Califórnia, os navios contornavam o cabo Horn, no extremo sul da América, e chegavam ao Rio, onde os viajantes viam corpos pelo chão, sangue no porto, escravos sujos, maltrapilhos, doentes.
Numa época em que abolição era palavra maldita, foram os estrangeiros que verbalizaram os temores de revoltas. O reverendo Robert Walsh, impressionado, achava que os africanos "descobrirão a força que têm". Previa que o Brasil viraria um Haiti, palco de radical revolta escrava.
Walsh descrevia a situação dos cativos como "revoltante para a humanidade". Andavam nus, com a pele criando cascas "como as do elefante"; até cavalos e mulas desfrutavam de "situação muito superior à dos negros".
CAFÉ Os lucros do café, porém, ainda justificavam para a elite brasileira da época todo o horror da escravidão. A ação dos cafeicultores na política brasileira que a respaldava é o tema de Tâmis Parron no seu "A Política da Escravidão no Império do Brasil - 1826-1865" [Civilização Brasileira, 374 págs., R$ 49,90].
Mestre em história social pela USP, Parron mostra como a expansão do cativeiro foi simultânea à formação do Estado nacional. O dinheiro do tráfico e dos senhores de escravos nutria o orçamento estatal e formatava a política. Foi com esse suporte que Pedro 2º, por exemplo, conseguiu abafar as revoltas regionais que eclodiram no século 19 (Farroupilha, Sabinada, Balaiada, Cabanagem).
O historiador busca nos documentos a retórica que fundamentou a escravidão. Avalia que, de início, a norma de 1831 ("para inglês ver"), que tentou proibir o tráfico --atividade que chegou a estar concentrada em 29 famílias--, não foi tão inócua como se imagina: muitos a abandonaram para investir em imóveis no Rio.
Montados em negócio tão lucrativo e central para o país, os escravocratas conseguiram bloquear a implantação da lei, que previa a libertação de escravos trazidos ilegalmente e punia fazendeiros e traficantes.
O Estado incorporou a defesa dos interesses dos senhores de escravos, especialmente os do eixo Rio de Janeiro-vale do Paraíba-Minas Gerais, que, entre 1831 e 1850, concentrou 78% do contrabando negreiro.
A percentagem é idêntica ao rol de petições no Congresso a favor do tráfico procedente de Minas e do Rio (87%, se somadas às do vale do Paraíba, que chegou a ser o maior produtor mundial de café). Um "caso bem raro em que a matemática da política coincide com a matemática do crime", escreve Parron, ao apontar como os interesses regionais do contrabando tomaram conta do Estado.
Parron descreve as articulações políticas e as reações às revoltas escravas. Uma das mais importantes foi a dos malês, na Bahia, em 1835, quando cerca de 600 cativos se rebelaram: quase 70 foram fuzilados imediatamente. João José Reis, no seu "A Rebelião Escrava no Brasil" (Companhia das Letras), conta a história em detalhes.
Antes dela, em 1833, em Carrancas (comarca do Rio das Mortes, MG), os cativos mataram nove membros da família do deputado e fazendeiro Gabriel Junqueira. Cinco escravos foram mortos de pronto e 12 foram enforcados na praça de São João Del-Rei.
Houve ainda a rebelião de Vassouras (RJ), onde 70% da população era de africanos. Lá, em 1838, centenas de escravos fugiram para formar um quilombo. Foram caçados, e o líder, Manoel Congo, acabou enforcado. Parron mostra como os silêncios e os discursos no parlamento tentavam manipular os efeitos das revoltas.
GRÃ-BRETANHA No front externo, a Grã-Bretanha fazia mais pressão. Eric Williams, no seu clássico "Capitalismo e Escravidão" (1964), explica as razões da potência escravista que se tornou abolicionista: a dinâmica da revolução industrial capitalista.
Em 1850, o Brasil sucumbiu ao poder bélico britânico, aceitando interromper oficialmente o tráfico. Aprovou a Lei Eusébio de Queirós, parlamentar que manobrou para esconder a pressão externa, como mostra Parron.
Os senhores de escravos tentaram resistir ao vendaval abolicionista criando novas fontes de abastecimento de mão de obra --escrava ou não. O fim do contrabando liberou capitais para investimento e provocou especulação com os preços das commodities.
Reproduzindo debates parlamentares, às vezes de forma caudalosa, Parron relata como o país conviveu com a escravidão num contexto em que o liberalismo avançava no mundo inteiro. Ou como as ideias de liberdade e de soberania nacional foram usadas pelos escravocratas para rechaçar os abolicionistas, apontados como advogados de interesses externos, especialmente britânicos.
O livro de Parron poderia ter a preocupação de proporcionar uma leitura mais fluida e didática. Mas acerta ao apontar a participação direta do Estado brasileiro, com seu arcabouço político e jurídico, no "mais volumoso contrabando ilegal de seres humanos de que se tem notícia na história ocidental".
HAITI Com uma contextualização mais abrangente, o mesmo Tâmis Parron, com Márcia Berbel e Rafael Marquese, escreveu "Escravidão e Política - Brasil e Cuba, 1790-1850" [Hucitec, 396 págs., R$ 47]. Berbel e Marquese são professores da USP: ela, de história ibérica; ele, de história da América colonial.
Os autores descrevem como os senhores de escravos impuseram seu projeto em meio ao colapso do sistema colonial, ao avanço do "internacionalismo abolicionista" e à expansão do mercado mundial decorrente da industrialização.
A revolução escrava na colônia francesa de Santo Domingo, que resultou na criação do Haiti, Estado controlado por ex-escravos --"variável histórica inédita", ressaltam os historiadores--, é um ponto de virada nessa história.
A colônia, que chegou a abastecer mais da metade do açúcar consumido na Europa, foi tomada por uma revolta iniciada em 1791. Os rebelados derrotaram as tropas de Napoleão e criaram um Estado independente, em 1804. O cubano Alejo Carpentier (1904-1980) escreveu um memorável romance inspirado nesses fatos: "O Reino Deste Mundo" (1948). A revolta haitiana foi o modelo para diversas rebeliões nas colônias britânicas, provocando a abolição na década de 1830.
CUBA No Brasil e em Cuba, no entanto, "a ganância superou o medo", notam os historiadores. Ambos passaram a investir mais na escravaria para aumentar a produção, abocanhar o mercado deixado pela ex-colônia francesa e obter vantagens competitivas em relação às colônias britânicas. De 1820 a 1835, Cuba duplicou sua oferta de açúcar ao mercado, enquanto a produção de café brasileiro cresceu mais de 4,5 vezes.
Os autores reconstituem o jogo parlamentar que, no Brasil e na Espanha, sustentava a escravidão. No caso brasileiro, enfatizam como alterações no sistema judiciário asseguraram a traficantes e escravocratas que o Estado jamais atentaria contra aquela propriedade "ilegal, fruto da pirataria, nascida do roubo mesmo".
O núcleo da obra é a construção de paralelos entre Brasil e Cuba, mostrando como a Grã-Bretanha atuou nos dois casos. Se o império britânico jogou duro com o Brasil, levando a questão do tráfico à beira de um confronto militar aberto, em relação a Cuba houve suavidade.
Para os historiadores, a hipótese de Cuba ser anexada aos EUA segurou o ímpeto inglês. Diferente era o caso brasileiro: "Para manter sua soberania política, o Estado imperial precisou repelir de modo terminante e irrevogável o contrabando negreiro".
BASES FILOSÓFICAS Os historiadores também se debruçam sobre as bases filosóficas que tentavam justificar a escravidão, com argumentos como: a escravidão existe desde a Antiguidade e não é condenada pela Bíblia; era preciso converter os cativos ao cristianismo; era imperioso libertá-los de seus senhores africanos; a escravidão na América era melhor do que a vida na África; os negros seriam mais adaptados ao trabalho no clima dos trópicos etc.
As ideias foram se modificando e surgiram até os que defendiam que os tipos humanos eram hierarquizáveis conforme características físicas e socioculturais. Basta assistir ao perturbador e intenso "Vênus Negra", filme de Abdellatif Kechiche, para começar a entender a que ponto chegou o preconceito travestido de ciência.
Como no livro de Parron, "Escravidão e Política" poderia contextualizar melhor os discursos e documentos que reproduz. A leitura de defesas da escravidão, no entanto, não deixa de ter interesse.
A mais curiosa talvez seja a do parlamentar e ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850). Ao argumentar, em 1843, que "os africanos têm contribuído para o aumento ou têm feito a riqueza da América" e que "a riqueza é sinônimo de civilização no século em que vivemos", declarou: "A África tem civilizado a América". Para ele, a diminuição do número de escravos levaria os brasileiros à barbárie.
Barbárie foi o termo que os abolicionistas usaram para descrever, já no final do século 18, a realidade do tráfico. Em panfletos, usaram o didático desenho do interior do negreiro Brooks, onde se espremiam 482 escravos. Eles eram amontoados "como colheres", nas palavras do médico Thomas Trotter, que viajou na embarcação.
A imagem, que passou para os livros de história, mostra "o moderno sistema econômico em toda a sua terrível nudez, o capitalismo sem tanga", afirma Rediker.
O historiador alerta para o silêncio sobre o tema. "O navio negreiro é um navio que viaja nas fímbrias da consciência moderna". Para ele, é preciso debater o legado da escravidão: "A reparação está na ordem do dia".
Gerald Horne também se preocupa com o que chama de amnésia em torno de uma espécie de "genocídio insuspeitado e escondido". Pior: a questão continua.
"Mesmo no século 21, existem alegações persistentes que indicam que não apenas o tráfico de escravos ainda existe mas que há mais escravos hoje do que havia no auge do tráfico de escravos africanos", afirma Horne.
FONTE: Folha de São Paulo, 31 de agosto de 2011.
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