Por Ruy Braga.
O grande símbolo da resistência ao apartheid racial morreu no dia 5 de dezembro passado. Quando penso em Nelson Mandela logo me vem à mente a icônica imagem do dia de sua libertação. Após 27 anos de encarceramento, emergiu um sorridente herói do povo, cumprimentando com seu punho direito erguido a massa que o acolheu como o incontestável guardião dos sonhos de sua emancipação. É difícil descrever a sensação que tive quando assisti pela TV esta cena. Foi um momento glorioso daquilo que Walter Benjamin chamou de “tradição dos oprimidos”: subitamente, o caudaloso fluxo da dominação detem-se por um instante, deixando antever a ainda nebulosa fisionomia da liberdade vindoura.
Fora da prisão, Mandela liderou a negociação estabelecida com o Estado fascista que sepultou o apartheid racial. O empenho pacificador demonstrado durante a transição democrática garantiu-lhe o prêmio Nobel da Paz de 1993. Por isso, pode parecer fácil escrever sobre ele. Bastaria, por exemplo, elogiar sua sublime disposição de perdoar os opressores brancos. Aliás, é exatamente isso que tem feito toda a imprensa mundial. No entanto, gostaria de destacar um outro ângulo, ou seja, o projeto político que, ao sair da prisão, ele afiançou. No final dos anos 1980, tão logo o Partido Nacional, com o domínio dos africânderes no governo, percebeu que iria ser derrotado pela resistência mais ou menos inorgânica de toda a sociedade civil sul-africana, iniciou-se um processo de negociação entre os fascistas e o maior partido anti-apartheid, isto é, o Congresso Nacional Africano (ANC). Ao longo de alguns poucos anos, o pacto social que deu origem à nova África do Sul foi urdido.
Conforme os termos do acordo, as tradicionais classes dominantes brancas manteriam o domínio e a propriedade de todos os setores econômicos estratégicos, transferindo progressivamente para o ANC o controle do aparelho de Estado. Enquanto os ativos financeiros das principais empresas do país migravam para Londres em um avassalador movimento de fuga de capitais que acentuou a dominação econômica branca, o Partido Comunista Sul-Africano (SACP), o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (Cosatu) e o ANC formavam a coalizão conhecida como “Aliança Tripartite” que se transformou em uma poderosa máquina eleitoral, criando as condições para o estabelecimento de uma durável hegemonia alicerçada na “fusão” das principais forças anti-apartheid com o aparelho estatal.
Assim, sedimentou-se, em 1996, um modelo de (sub-)desenvolvimento capaz de combinar uma agenda neoliberal conhecida como “Growth, Employment and Redistribution” (GEAR) com algumas reformas pontuais cujo produto mais saliente foi a exacerbação das desigualdades de raça, de gênero e de classe social.[1] A partir de então, privatizações, cortes de gastos estatais e moderação salarial, combinaram-se com, por exemplo, a incorporação dos negros ao sistema público de saúde… O apartheid racial foi substituído por um apartheid social alimentado pela exploração da maioria dos trabalhadores negros. Mandela foi o grande fiador desta “revolução passiva”. Apenas um negro educado vivendo em um país dominado por brancos, um príncipe xhosa vivendo em um país de maioria zulu, um líder mundialmente admirado vivendo em um país carente de aceitação internacional, poderia dirigir este processo.
Após a transição para a democracia parlamentar, o ANC lançou, no início dos anos 2000, o Black Economic Empowerment, programa conhecido como “BEE”. Tratava-se de um programa para diminuir as disparidades sócio-econômicas existentes entre os diferentes grupos raciais por meio da incorporação de negros e de não brancos ao staffadministrativo das empresas sul-africanas. Com essa política, o país testemunhou o surgimento de uma afluente elite econômica negra, conhecida como “Black Diamonds”, que acumulou imenso poder e riqueza devido à intimidade com o governo. Assim, ex-militantes sindicais comunistas tornaram-se sócios de empresas de mineração e ex-lideranças do ANC transformaram-se em mega-investidores financeiros. Dispensável dizer que escândalos de corrupção envolvendo altos executivos e políticos tornaram-se usuais.
Uma expressão curiosa surgiu para descrever a atual estrutura classista da África do Sul: “sociedade cappuccino”. Trata-se de uma menção à existência de uma larga base negra sobre a qual repousa uma “espuma” branca encimada por uma finíssima camada de chocolate em pó. O resultado? Da 90º posição no ranking da desigualdade, em 1994, ano da eleição presidencial de Mandela, a África do Sul ocupa atualmente a 121º posição. Não admira que neste tipo de sociedade tensões étnicas e sociais descambem rapidamente para a violência xenofóbica: a taxa de criminalidade do país está entre as 15 piores do mundo e a expectativa de vida da população é de apenas 53 anos.[2]
Ano passado, ao trocar alguns dólares no aeroporto de Johannesburgo percebi que a efígie de Mandela estampava as novas cédulas de rands. O “Pai da Pátria” aparecia sorrindo discretamente em todas as notas, não importando o valor. “A revolução passiva sul-africana está concluída”, pensei… No caminho para o hotel, fui informado que 36 mineiros haviam sido barbaramente assassinados há pouco pela polícia no acampamento de Marikana, nas cercanias de Rustemburgo, durante uma greve. Também soube que, em uníssono, a Aliança Tripartite estava improvisando argumentos a fim de justificar o massacre. Separadas por apenas 180 km, a distância entre Marikana e Sharpeville não poderia ser maior…
Tudo isso faz parte da herança deixada pelo maior símbolo da resistência ao apartheid racial. Como decifrá-la? Em 1963, ao ser condenado à morte no Julgamento de Rivonia, Mandela era um homem disposto a arriscar a própria vida pela libertação de seu povo. Por ser o comandante em chefe da ala armada de seu partido ele ficou quase três décadas encarcerado e merece nosso mais profundo respeito. No entanto, é necessário reconhecer que, na atual luta contra o apartheid social, os trabalhadores negros sul-africanos enfrentam sozinhos uma hegemonia deletéria que Mandela não economizou esforços para fortalecer. Para muito além da santificação do grande líder, algum dia, uma África do Sul emancipada saberá reconhecer e superar os limites deste legado contraditório.
Notas
[1] Ver Patrick Bond, The Elite Transition: From Apartheid to Neoliberalism in South Africa, Pluto Press, 2000.
[2] Ver Karl von Holdt et alii, The smoke that calls: Insurgent citizenship and the struggle for a place in the new South Africa, Society, Work and Development Institute, 2011.
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Para aprofundar a reflexão sobre as contradições próprias das formas de dominação desenvolvidas em projetos políticos de pacto social, em especial sobre o caso brasileiro, recomendamos a leitura de Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira, organizado por Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibele Rizek. [veja uma prévia do livro]
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaiosInfoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista.
FONTE: Blog da Boitempo
FONTE: Blog da Boitempo
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