terça-feira, 19 de novembro de 2013

Depois de 1848, nada novo (o materialismo histórico e as teorias divergentes dele)

Por Frank Svensson*


Com Marx, caracteriza-se um divisor no desenvolvimento do conhecimento histórico. Toma-se 1848 como marco temporal, por terem Marx e Engels elaborado e enunciado naquele ano o Manifesto do Partido Comunista, documento básico de conclamação ao proletariado para assenhorear-se de seus meios de produção e dos destinos da história, feito que ocorreu dentro da formação socioeconômica do capitalismo. Muito se pensou e praticou em matéria de conhecimento histórico pós-Marx, mas nada de essencialmente novo que em método e teoria pudesse ser entendido com a mesma importância histórica.

O conhecimento histórico e do pensamento a seu respeito caracteriza-se, pós-Marx, em desenvolvê-lo ou contradizê-lo. Travam-se conflitos e lutas no campo da superestrutura da formação do capitalismo, entre ideias que favorecem àqueles que só vivem de seu salário e não detêm os meios de produção e o ideário que favorece indivíduos e grupos detentores do poder na sociedade capitalista. Experiências significativas sucedem-se no mundo e configuram a nova formação socioeconômica, o socialismo, todas baseadas em teorias marxistas.

Em maior escala dão-se os problemas globais, expressão de crise da formação ainda predominante. Neste ocaso do capitalismo, as teorias do materialismo histórico são confrontadas por posicionamentos conceituais divergentes, fundamentalmente por interesses de classe. É comum negarem-lhes a validade de leis objetivas para desenvolver a sociedade. Quando não declaram extinta a história (como Fukuyama), consideram-na confusa, consagrando o caos e o casuísmo.

O caráter anti-cognitivo histórico, divergente do materialismo histórico, visa negar o desenvolvimento justo da sociedade. É avesso a considerar o fator trabalho como principal categoria do conhecimento histórico. Formula teorias arquitetônicas a partir de um subjacente conceito de convivência humana que não considera o fator trabalho. Esquece a importância que essa forma de conhecimento teve, na derrocada do sistema feudal, para a ascensão ao poder das classes que o negam ou menosprezam atualmente, por resistirem à substituição pela nova classe, a dos trabalhadores.

As teorias hoje divergentes das do materialismo histórico podem ter três enfoques:

1º - psicologizante – situa as bases do desenvolvimento social em fatores psicológicos: desejos, vontade, instintos, intuição, prazer e fruição, percepção e gosto, convivência fortuita e lazer não programado; a intranquilidade social no capitalismo explica-se menos por suas leis objetivas, mais por deficiências psíquicas; para sanear os sérios problemas sociais, aperfeiçoar a mentalidade da população é o remédio ministrado (1).

2º - sócio-biológico – recomenda o conhecimento positivista ou o neopositivista.

3º -micro-sociológico – tem apoio na sociologia empírica.


Enfoque psicologizante


Na história do pensamento social, dificilmente se encontrará teoria mais popular, de mais influência sobre a vida intelectual, do que a teoria psicanalítica de Freud. Nasceu na primeira década deste século, como um método de tratamento de neuroses em ambiente hospitalar. Fundamentou uma nova área da psicologia e introduziu uma filosofia social cujos defensores sustentam que seus métodos solucionam problemas sociais tão bem quanto problemas médicos.

A teoria de Freud tem caráter bio-psicológico, centra-se nos instintos. De instintos biológicos imutáveis, supõe inconciliável conflito entre vida e morte do indivíduo. Afirma ser a psique biológica por natureza, não depende do mundo externo, da realidade social. Minimiza categoricamente a influência do contexto ambiental na estrutura mental do homem (2).

Embora com a teoria dos instintos Freud buscasse as causas da atividade mental, na teoria da repressão explicou a dinâmica do comportamento do homem forçado (pela necessidade de preservar-se) a suprimir instintos e a orientar energias a direções aceitáveis. Desviada de suas originais finalidades sexuais, a energia mental redistribui-se para satisfazer necessidades socialmente motivadas. Freud sustenta:

A sublimação dos instintos é um notável feito do desenvolvimento cultural; é o que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas jogar um papel tão importante na vida civilizada(3).

Vê-se, então, que, quando a demanda de sublimação civilizatoriamente imposta excede a capacidade do indivíduo, produzem-se neuróticos e criminosos. Se os impulsos interiores não são postos em xeque, o indivíduo se torna criminoso; se suprimidos, torna-se neurótico; se são sublimados em atividades socialmente úteis, está apto a viver em sociedade, sem maiores fricções.

Freud não viu o conflito natureza humana x sociedade como um todo dialético de interpenetração de opostos, mas apenas como confrontação de partes independentes. Não considerou serem as condições sociais externas à existência do homem determinantes de sua atividade mental. Viu-as dificultando a manifestação da atividade, freando a realização das exigências instintivas do homem. Essa interpretação sócio-psicológica da relação natureza humana e sociedade levou-o a um dilema não resolvido: por um lado, repressão e rejeição de instintos como essencial condição para a existência da sociedade, da civilização como um todo; por outro, a desimpedida satisfação de instintos como essencial condição para a saúde mental do homem. Analisou a sociedade como produto de três variáveis: 1ª) necessidades oriundas da natureza; 2ª) dualismo de instintos: amor e morte (Eros e 'nonatos’); 3ª) instituições e ideais que formam a sociedade.

A visão freudiana de sociedade é pessimista, trágica, instável e desacreditada, posto que a síntese das variáveis nunca é plenamente obtida. A despeito de a sociedade valer-se dos impulsos instintivos para a garantia da vida social, os instintos não conseguem mais que duvidoso equilíbrio:

A civilização é um processo a serviço de Eros, cujos propósitos são de congregar os indivíduos, e depois famílias, raças, povos e nações numa grande unidade: a humanidade. Se isso se consegue, não sabemos; a obra de Eros é precisamente essa. Esses conjuntos de homens devem ser libidinalmente unidos uns aos outros. Somente as vantagens do trabalho em comum não são capazes de mantê-los unidos. Instintos naturalmente agressivos, a hostilidade de cada um contra todos os outros e de todos os outros contra cada um opõem-se a esse programa civilizatório. Esse instinto agressivo é derivado e constitui a principal expressão do instinto da morte que trazemos em nós (4)

Vê a existência de variados sistemas sociais como na luta entre as tendências do amor e da morte (5).

E também crê que...

... a história decorre de nossa vontade consciente, não da capacidade da razão, mas sim da destreza dos desejos (6).

Posição implícita à tese de Fukuyama, que contradisse o princípio basilar do materialismo histórico de Marx, quanto à prioridade ontológica do objeto sobre o sujeito e ao reconhecimento da existência de leis históricas. A base filosófica da teoria psicanalítica, em particular a sociologia nela apoiada, tem origem nos princípios idealistas de Platão, Kant, Hartmann, Schopenhauer, Nietzsche e Bergson. Mesmo se mostrando não adepto de doutrinas filosóficas, atraíam-no os sistemas filosóficos que defendiam o irracionalismo. Em Edward von Hartmann e Henri Bergson, Freud buscou a ideia do inconsciente. Nietzsche e Schopenhauer despertaram-lhe interesse pela importância da sexualidade e das emoções inconscientes como determinantes de aspectos da vida humana. Em Um Problema em Psicanálise, Freud escreveu:

Famosos filósofos podem ser citados como precursores, particularmente o grande pensador Schopenhauer, cujo inconsciente pode ser igualado aos impulsos emocionais na psicanálise (7).

Atribui-se ao inconsciente, a instintos biologicamente determinados, o vital papel da diversificada atividade mental. A razão é um elemento subordinado. Idealismo e metafísica constituem a base sobre a qual se constrói a psicanálise. Dentro da história do pensamento social, Freud reflete o terror e o desespero que atingiram os segmentos pequeno-burgueses europeus no fim do século XIX. Estudando a desordem mental das camadas inferiores da burguesia austríaca, concluiu que a maioria dos casos dependia das exageradas restrições impostas pela moral da época aos naturais desejos sexuais do homem, atribuindo validade universal a casos particulares (8).

À medida que Freud relacionava sua teoria psicanalítica e as aplicações clínicas ao estudo de problemas sociais, a teoria ganhava status de método específico para explicar fenômenos da vida social. Ele se convencera de que, sem prejuízo para a essência da psicanálise, poder-se-ia usá-la com sucesso em mitologia, língua, folclore, estudo das religiões, e para tratar neuroses. As conclusões sociopolíticas permitidas pela psicanálise foram aceitas e têm defensores em diferentes setores do conhecimento.


Principais características do neofreudismo


Contradições entre princípios da teoria freudiana e a formulação da psicologia, da antropologia e da sociologia experimentais originaram tendências neofreudistas, entre as quais, na psicanálise, Erich Fromm, Karen Horney, H. S. Sullivan, Abram Kardiner, Franz Alexander, H. D. Lasswell e Margaret Mead. Alguns, especialmente Fromm, tentaram unir o pensamento de Freud ao de Marx (9).

Graduado inicialmente em filosofia e inspirado pelas idéias de Freud, Fromm escolheu ser psicanalista. Dedicou boa parte do tempo a pesquisas em psicologia social e foi o primeiro a apontar que a teoria freudiana não estava equipada para explicar as relações entre indivíduo e sociedade. Após emigrar para os EUA (1934), iniciou com Horney e o apoio de Sullivan uma nova escola na área da psicanálise. A observação de pacientes norte-americanos dos anos 30 induziu-os a admitir que o inconsciente do homem depende da essência e das particularidades específicas de uma sociedade. Substituíram o enfoque biológico ante pacientes desempregados e necessitados de ajuda, sem abandonar a concepção freudiana dos instintos humanos.

As intensas contradições nos EUA dos anos 30 e 40, com depressão econômica, desemprego crescente e instabilidade de vida, eram muito distintas das dos pacientes de Freud na Áustria do fim do século anterior. O paciente estadunidense necessitava de ajuda, de orientação para entender e enfrentar as pressões sociais. Compreendia-se um analista transformar-se em pensador social ante a impossibilidade de interpretar problemas individuais sem relacioná-los à sociedade. Daí Fromm encontrar-se com Marx, reconhecendo-o pensador de muito mais profundidade e objetividade do que Freud (10).

Ao se aproximarem de Marx, Fromm e o neofreudismo não se tornam marxistas; modernizam o freudismo. Vendo o corpo teórico de Marx como uma interpretação antropológica da história e um existencialismo espiritual, fundado num conceito genético do homem, evidenciam a necessidade de distorcer o enfoque marxista para torná-lo suficientemente existencialista e aceitá-lo passível de relacionamento com o freudismo (11).


A aproximação do marxismo limitada ao problema da alienação


O principal contato entre o enfoque psicologizante da realidade e o marxismo é a alienação, tornada clara pelo fetichismo da mercadoria e pela alienação do trabalho. Reconhece-se a alienação dos homens como característica na sociedade burguesa, mas pelo enfoque psico-antropológico. A alienação independe de concretas condições socioeconômicas da atividade humana. A vida se rege por interesses mercantis, dirigindo a ética dos homens. Nas grandes cidades, os cidadãos são engolfados pelo consumismo e pela circulação financeira.

Indivíduo alienado é o que não se percebe centro de seu mundo, criador de seus atos. Atos e consequências assenhoream do alienado e o tornam serviçal deles. O indivíduo, na sociedade capitalista, com a produção em massa, é coisificado. Coisas passam a ter mais importância que a maioria das pessoas. Para Fromm, no século XIX questionou-se a existência de Deus. No XX, a existência do homem.

Lamentavelmente, o neofreudismo estancou na constatação do imediatamente manifesto, vendo alienação mais como estado psicológico do indivíduo, amortecendo a capacidade crítica da sociedade capitalista. Resultou em crítica moralista, perfeitamente aceita só por círculos românticos da intelectualidade e da pequena burguesia. Não resultou em ação revolucionária das massas, que por contradições de classe alterasse estruturalmente a ordem estabelecida. Incorreu no humanismo naturalista, caracterizado por Marx como sabendo julgar e condenar o presente, sem saber compreendê-lo. (12)

Sua crítica inofensiva constitui muito mais que um protesto eficaz, é confissão de impotência da intelectualidade radical. Bem ilustra ilusões e enganos da pequena burguesia e da intelectualidade liberal da fase decadente do capitalismo, sem meios para evitá-los.

Declarando a sociedade capitalista doente e neurótica, o neofreudismo propugna por uma sociedade sadia, conforme as necessidades do homem, necessidades com raízes em sua existência, diferentemente de Freud, que via como trágico o desenvolvimento do conflito instintos pansexuais humanos x demandas morais da sociedade. O neofreudismo sugere a possibilidade de se criarem na Terra condições sociais que permitam ao homem realizar suas potencialidades interiores. Segundo Fromm, por meio de uma terapia social a sociedade capitalista pode ser transformada numa sociedade sã, mudando-se o asseio psicológico de cada indivíduo, substituindo-se a orientação mercantil, consumista, pelo comportamento produtivo. A reeducação moral é prioritária, mas, como o enfoque não passa pelo fulcro do capitalismo – a propriedade privada –, defrontam-se a lógica entre o dilema da relação homem/sociedade e os aspectos práticos de sua proposta para tornar a sociedade sadia.

Passando ao largo da luta de classes como questão central das relações capitalistas de trabalho, o neofreudismo substitui o conhecimento objetivo do processo de socialização pelo desejo de humanização do modo de produção industrial. Sugere-se: o fim de um industrialismo burocraticamente dirigido, a ser substituído por um industrialismo humanista, no qual o homem e o pleno desenvolvimento de suas potencialidades – as do amor e da razão – são o motivo das relações sociais. Como o freudismo, o neofreudismo enxerga a história como resultado de nossa vontade consciente e da destreza de nossos desejos.

Enfoque sociobiológico

Comte (1798-1857), professor da École Politechnique de Paris e contemporâneo (1848-49) de Marx em Paris, é pai do positivismo e da engenharia social, hoje sociologia. Ao contrário da concepção metafísica, que opõe conhecimento filosófico a conhecimento científico e a conhecimento histórico, o positivismo vê a ciência específica como sua própria filosofia, menosprezando o conhecimento do materialismo histórico.

O ingresso da burguesia no âmbito social e o desenvolvimento marcante das forças produtivas trouxeram novos problemas ao pensamento teórico. Necessitava-se de um conhecimento que explicasse o mundo ambiente e servisse de modo imediato à atividade prática, dominando as forças da natureza.

Conquista importante na época foi a incorporação à ciência do método das observações sistemáticas e da experimentação, propiciando ao conhecimento científico bases materiais sólidas e permitindo surgirem as ciências naturais teóricas. Limitadas inicialmente à física, diversificaram-se em química, astronomia, geologia e mineralogia (quanto a não-orgânicos), e botânica e zoologia (quanto a seres vivos). Disciplinas que se caracterizam por empregar métodos empíricos de aproximação dos resultados das observações a leis de caráter matemático.

Gradativamente, a ciência separou-se da filosofia e adquiriu status independente. Exercendo crescente influência sobre as culturas espiritual e material, conquistou domínio conceitual. A cientistas se confiaram postos na administração do Estado, e a igreja viu-se obrigada a modificar sua atitude para com eles.

Relembre-se que no século XIX a ciência desenvolveu-se em luta contra a escolástica, filha protegida da religião. Daí o ceticismo dos cientistas com expressões apresentadas pela filosofia. Muitos não identificaram no materialismo histórico dialético possibilidade de reunificação harmoniosa da ciência e da filosofia, por meio do reconhecimento do caráter social da ciência.

Influenciados pela autonomia das pesquisas científicas específicas e criticando os aspectos negativos do pensamento filosófico tradicional, os positivistas proclamaram a total incompatibilidade entre ciência e filosofia. Ao declararem guerra à metafísica, vitimou-os um misticismo semelhante: a ciência é a sua própria filosofia.

Positivismo e neopositivismo versus materialismo histórico dialético

Uma tarefa a que Comte se propôs, classificar as ciências, apresentou num Curso de Filosofia Positiva em Auguste Comte (1798-1857), em Paris (1826), publicado em forma de livro (1830). Apoiou-se nos sábios franceses, nos matemáticos La-grange, d'Alembert, Fourier e Gauchu, no geômetra Monge, nos físicos Biong, Dulong e Ampère, nos astrônomos e matemáticos Laplace e Arago, nos químicos da escola de Lavoisier e Berthollet (dentre eles Gay-Lussac), nos biólogos e naturalistas Buffon, Lamarck, Etienne Geoffrey Saint-Hilaire, Cuvier, de Blainville etc., todos seguidores dos fundamentos de Descartes.

Recusando princípios subjetivistas, Comte pensava dever-se buscar resposta quanto a como se produzem os fenômenos e não a por que se dão os fenômenos. Para sua classificação, respeitava que a dependência entre as diferentes ciências se determina pela dependência existente entre os fenômenos do mundo externo ao pensamento. Dependência a ser determinada a partir da observação, não de uma conceituação apriorística. Por este princípio, Comte chegou a 6 ciências gerais: a matemática, incluindo a mecânica; astronomia, física, química, fisiologia e sociologia.

Após caracterizar as ciências decorrentes das gerais, viu-se ante o problema de agrupá-las em série, numa lógica precisa. Essa pretensão de resultado lógico, para Comte, deveria apelar ao conhecimento histórico. Mas ao passo que a ciência faz progressos, a ordenação histórica torna-se impraticável e cede à lógica:

Eu penso mesmo que não se conhece plenamente uma ciência sem conhecer sua história. Mas esse estudo deve ser feito totalmente separado do estudo próprio e lógico dessa ciência, sem o qual sua história não seria inteligível (13).

Na parte teórica de suas 6 ciências fundamentais, Comte faz um resumo histórico, mostrando como se desenvolveu o conhecimento a respeito. Com esta base, formula a lei de três estágios do conhecimento humano. Cada ramo passa por três estágios teóricos: teológico (fictivo), metafísico (abstrato) e científico (positivo).

A concepção teológica admite uma via direta na natureza de um ser sobrenatural – Deus – que age por onisciência e onipotência. A concepção metafísica inventa essências particulares para explicar os fenômenos estudados. E a concepção positiva de mundo não reconhece motivos particulares, mas vê os fenômenos como os percebem os sentidos. Comte propôs uma ciência a que denominou engenharia social (sociologia) e localizou-a entre ciências da natureza, como ciência dos corpos orgânicos, ao lado da fisiologia. Entendia por sociologia, em sentido amplo, a ciência das comunidades dos seres vivos, entre as quais situava igualmente a comunidade dos homens:

Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenômenos essencialmente distintas, aquelas relativas ao indivíduo e aquelas concernentes à espécie, principalmente quando é sociável. É principalmente com relação ao Homem que esta distinção é fundamental. A última ordem de fenômenos é evidentemente mais complexa e mais particular do que a primeira: dela depende, sem que influa sobre ele. A partir daí duas grandes divisões na física orgânica: a fisiologia propriamente dita e a física social, que se baseia na primeira (14).

Com relação a fenômenos sociais, Comte defendia:

... por um lado a influência das leis fisiológicas do indivíduo; por outro, alguma coisa de particular que modifica os efeitos e que mantém em ação os indivíduos uns para com os outros...(15).

E entendia fenômenos sociais pelos pontos de vista:

1°) da ordem social estudada pela estática social, que se ocupa das leis da coexistência, do regime da sociedade;

2°) do progresso estudado pela dinâmica social, que se ocupa das leis da sucessão, do movimento da sociedade.

Fez os fatores sociais derivarem diretamente dos fatores biológicos correspondentes: o da organização e o da vida (16).

A ordem é, para Comte, a organização, a reunião sistemática das partes num todo único. Organismo vivo e ordem social se equivalem. Vida é crescimento, progresso na organização. O fato biológico do crescimento é essencial ao progresso social. Comparativamente, no organismo sem organização não há vida; na sociedade sem ordem não pode haver progresso.

Ao comparar biologia a sociologia, concluiu: ambas têm leis estáticas e dinâmicas; as estáticas predominam na biologia; as dinâmicas, na sociologia; a biologia deve ocupar-se dos organismos existentes e a sociologia pela evolução da sociedade.

Comte supunha que a evolução da humanidade se completaria na era industrial, o estado positivo. Nisto lembrava Hegel, para quem a história culminava com o Estado Burguês. Comte defendia uma compreensão abrangente como Hegel, mas não demonstrou a mesma profundidade de conhecimento. No caso da sociedade considerava:

... todo estudo isolado de seus vários elementos seria, pela natureza mesma da ciência, profundamente irracional e essencialmente estéril (17).

O principal defensor do enfoque positivista da história foi Franz Leopold von Ranke (1795-1886). Almejava a veracidade, libertando sua descrição de qualquer fantasia. Exigia-se criticar metodicamente as fontes históricas e historiadores, antes que sobre essa base se erigisse nova construção histórica. Para Ranke, não era papel da história julgar passados ou ensinar futuros, mas revelar como foram os fatos e como ocorreram. Escolhia os temas de seus trabalhos a partir de: leitmotif (idéias diretoras) e de tendências dominantes, detectadas ao longo do tempo, corporificadas nas políticas de Estados e governantes. A história era para ele fundamentalmente política. Interessava-se pelas dimensões econômica e social, a partir da ética luterana e do enfoque conservador quanto ao poder da burguesia (18).

Comte afirmou-se como o mais significativo entre os que representaram intelectualmente a estrutura da sociedade. Por se ater ao campo das idéias, está aquém de Marx, que esclareceu a perspectiva do socialismo por meio do princípio fundamental do materialismo histórico dialético:

... a noção de que a existência social é o fator condicionante da consciência social, e não vice-versa.

A engenharia social de Comte permaneceu limitada ao campo acadêmico; enquanto Marx trouxe as ciências sociais para o campo dos fatores básicos da mudança social, para a práxis da vida. Não se limitou à teoria e buscou engajar-se na luta por uma sociedade mais justa, o estofo de suas constatações conceituais. Diferindo de Comte e Ranke, o corpo teórico de Marx analisa e testemunha as lutas da segunda metade do século XIX, nos países onde viveu e participou ativamente da história.

De advogado defensor de pobres trabalhadores do campo, chegou a presidente da Internacional Operária, o que lhe custou o exílio forçado e a miséria pecuniária decorrentes da perseguição dos detentores do poder. Vivenciou o destino dos que se opõem objetivamente à desigualdade social.

A sociologia positivista e suas formas neopositivistas passaram a disputar com o materialismo histórico dialético o caráter de verdadeira ciência social, e o enfoque positivista da história limitou-se a descrevê-la com suposta imparcialidade, sem participar de sua transformação, não tendo a postura marxista de conhecer a história fazendo-a (19).


Microssociologia no enfoque da história


O terceiro agrupamento de teorias divergentes do materialismo histórico é a microssociologia (sociologia empírica). Não nega abertamente o conhecimento abrangente da vida em sociedade, mas no entremeado de fenômenos sociais limita-se a estudar detalhes, aspectos parciais da realidade capitalista, sem esclarecer as relações que lhe são inerentes. A teoria não quer considerar as leis de seu desenvolvimento histórico, ocultadas pelo imediatamente aparente, para manter-se distante da consequente análise científica da realidade e da necessidade de resolver problemas sociais pela via clara da formação socioeconômica posterior ao capitalismo, posto que é conivente com ele.

Não se diga que o estudo microssociológico não é importante, mas criticável quando nega a preponderância dos fatores da esfera social sobre as pessoas. Limita-se a analisar laços subjetivos entre indivíduos em pequenos grupos (destacando-lhes o mundo interior), subestimar fatores sociais objetivos e centrar enfoque na personalidade. É tendência vê-lo construtor de seu meio imediato e idealizar os elementos que orientam suas atividades. Ergue um meio idealizado que não reflete o mundo real, o objetivo maior, e desvia a atenção para aspectos subjetivos psicológicos, razão por que encontros e convívio fortuitos constituem objeto de estudo tão sério quanto classe social.

Ao se discutir o típico, em arquitetura, associa-se o meio ambiente do pequeno grupo a questões de índole, a como os indivíduos se relacionam com amigos, famílias e natureza, sob o regime capitalista. O microambiente é exposto como oásis da paz, de idílicos hábitos típicos (ou genéricos) de uma suposta cultura regional (ou nacional). Ora! Relações psicológicas – simpatias e antipatias – não dependem unicamente de características pessoais; em grande parte são secundárias, refletem relações econômicas, políticas, ideológicas e espirituais da sociedade.

Para o enfoque materialista histórico-dialético, a sociedade define a estrutura e as funções dos pequenos grupos sociais, não o contrário. As relações inter-individuais não são negadas, mas se avalia a influência que o trabalho, fator principal de socialização, tem sobre elas. Os indivíduos agem como parte da sociedade; as determinantes da sociedade indicam as atividades materiais dos homens, que não podem ser reduzidas a estruturas psicológicas. Ao se desviar o enfoque da constituição social para particularidades psicológicas, escamoteia-se o conhecimento quanto à classe social, coletivo de trabalho e formações da vida associativa, que decorrem das relações de produção; e também quanto à luta de classes e à possibilidade de paz entre as classes.

Notas:

1 - V. I. Dobenkrov: Neo-freudism on Surch of Truth. Moscou, 1976.

2 - Idem.

3 - S. Freud:Civilization and its Discontents. Londres, 1939.

4 - Idem.

5 - N. Brown - Life Against Death. Londres, 1959.

6 - S. Freud - Una Dificultad de la Psicanálise Obras Completas, vol. 12. Madri, 1948.

7 – Idem.

8 - E. Fromm - Mas alla de las cadenas de Ia ilusion y Ia revolución de la esperanzza, Madri, 1975.

9 - E. Fromm: Conceito marxista do Homem. Rio, 1975.

10 - op. cit. (nota 30).

11 – Idem.

12 -  K. Marx, O Capital.

13 - Idem.

14 - B. Kédrov – LaClassification des Sciences, vol. I. Moscou, 1977.
15 - Idem.
16 - op. cit. (nota 35).
17 - A. Schaff: Duas Concepções da Ciência da História: o Positivismo e o Presentismo. História e Verdade. São Paulo - Lisboa, 1987.
18 - R Villar:- História Marxista, História em Construção. Lisboa, 1976.
19 - D. Anzieu e J. Y. Martin: La Dynamyque des Groupes Restreints. Paris, 1973.


Frank Svensson, professor aposentado da UNB, é do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro.




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