Por Anita Leocadia Prestes*
Lygia Prestes completaria 100 anos de idade no dia 4 de agosto de 2013. Irmã mais moça de Luiz Carlos Prestes, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, então capital da República. Junto com seus quatro irmãos, vivenciou na infância e adolescência as dificuldades de uma família de poucos recursos.
Sua mãe, Leocadia Felizardo Prestes, com a morte prematura do marido, que a deixou numa situação financeira muito precária, teve que desenvolver múltiplas atividades para garantir a sobrevivência da família. Deu aulas de idiomas e de música, trabalhou de modista, foi balconista e costurou para o Arsenal de Marinha. Finalmente, em 1915, conseguiu ser nomeada professora da Escola Pública, cargo que exerceu até 1930. Trabalhava à noite, em cursos frequentados por comerciárias, operárias e domésticas. Leocadia pôde assim ter contato com as camadas mais pobres da sociedade e isso aguçou sua revolta contra as injustiças sociais.
Na educação dos filhos, sua grande preocupação foi sempre a de incutir-lhes o amor ao trabalho e o sentimento do dever cívico. Procurou mostrar-lhes os aspectos negativos da vida, ensinando-os a enfrentar com altivez a violência e as arbitrariedades dos poderosos e a jamais se curvar ante as injustiças.
A árdua luta pela sobrevivência não fez diminuir seu interesse pelo que ocorria na sociedade e no mundo. Mesmo nos momentos mais difíceis, em sua casa podia faltar pão, mas nunca faltou pelo menos um jornal diário, para acompanhar os acontecimentos políticos, que discutia e comentava com os filhos.
Em 1922, quando seu filho Luiz Carlos Prestes, já oficial do Exército, começava a participar da preparação do primeiro levante tenentista, ela lhe daria todo o apoio, incentivando-o a continuar a luta, após a derrota do movimento.
Foi nesse ambiente doméstico que Lygia cresceu e cunhou seu caráter. Em 1930, junto com as suas três irmãs, acompanhou a mãe na mudança da família para Buenos Aires (Argentina), a convite do irmão Luiz Carlos. No exílio forçado após o término do périplo realizado pela Coluna Invicta, Prestes conseguira trabalho de engenheiro naquele país. Poucos dias após a reunião da família, ele se viu forçado a transferir-se para Montevidéu (Uruguai), expulso pelos generais que promoveram um golpe de estado na Argentina.
Em plena crise do capitalismo, Leocadia e as filhas ficaram desamparadas, pois Prestes também perdera o emprego. As quatro irmãs trataram de trabalhar, recorrendo às raras oportunidades existentes. Lygia, com apenas 17 anos, aprendeu rapidamente datilografia e se tornou datilógrafa num escritório comercial, submetida à extenuante jornada e baixa remuneração.
Em outubro de 1931, convidado para trabalhar como engenheiro na URSS, Prestes se desloca para Moscou, acompanhado pela mãe e as irmãs. Lygia ficaria empolgada com a oportunidade de estudar, aspiração que sempre alimentara. Matricula-se num curso técnico, aprende o idioma russo, prepara-se para ingressar na universidade e, no início de 1936, é aprovada no exame vestibular para a Faculdade de Química da Universidade de Moscou.
Durante esses anos de exílio, a estreita convivência com o irmão, foi decisiva para Lygia tornar-se uma comunista convicta. Anos mais tarde, ela recordaria as longas conversas com o irmão, cuja influência contribuíra enormemente para a formação da sua personalidade. Da mesma forma, o contato com o povo soviético e sua luta heróica pela construção do socialismo tornaram Lygia uma entusiasta do socialismo e das idéias comunistas, que sempre tratou de assimilar através do estudo e do convívio com numerosos comunistas que teve oportunidade de conhecer.
Após a derrota dos levantes antifascistas de novembro de 1935, Luiz Carlos Prestes foi preso no Rio de Janeiro, em março de 1936, junto com sua companheira Olga Benario. No dia seguinte à prisão do “Cavaleiro da Esperança”, Dimitri Manuilski, dirigente da Internacional Comunista (IC) à época e grande admirador de Prestes, foi à casa de Leocadia para avisá-la da prisão do filho e propor-lhe que encabeçasse de imediato uma campanha internacional pela libertação do filho e dos demais presos políticos no Brasil. Lygia, com apenas 22 anos, foi escolhida para acompanhar a mãe. Para isso, teve que abandonar seu sonho de cursar a universidade, na qual havia recém ingressado. Sua dedicação ao irmão, assim como à causa revolucionária, falou mais alto e ela não vacilou em aceitar essa árdua tarefa.
A organização da Campanha, assim como a destinação de parte considerável dos recursos financeiros para a sua realização, estava a cargo do Socorro Vermelho Internacional (MOPR)[1], entidade de âmbito internacional, fundada pela IC e a ela ligada desde os anos 1920, com o objetivo de prestar socorro às vítimas da reação e do fascismo. Poucos dias após a visita de Dimitri Manuilski, Leocadia, acompanhada por Lygia, viajou para Paris (França), onde ficaria localizado o centro coordenador da Campanha Prestes. Desde o início, mãe e filha, se depararam com graves obstáculos à condução de sua nova atividade. Obstáculos de todo tipo: falhas na documentação pessoal e na obtenção de vistos necessários para as viagens programadas, falhas na escolha de locais para hospedagem e, em particular, na liberação e destinação de recursos financeiros, e sérios problemas na própria organização da Campanha. As grandes dificuldades enfrentadas por Leocadia e Lygia – registradas em considerável número de cartas dirigidas ao representante do PCB em Moscou, assim como às irmãs de Lygia residentes nessa cidade,[2] - são reveladoras da inegável presença de elementos sabotadores entre os funcionários do MOPR e da IC. Cabe ressaltar que os obstáculos e as dificuldades foram constantes durante os longos anos em que se desenvolveu a Campanha Prestes (1936-1945) e também encontraram registro em relatório elaborado por Otávio Brandão – antigo dirigente do PCB exilado em Moscou que, durante o ano de 1937, colaborou em Paris com a Campanha Prestes.[3]
Tais dificuldades, entretanto, não puderam impedir o surgimento, o crescimento e a propagação do movimento de caráter mundial em prol da libertação de Luiz Carlos Prestes e dos presos políticos no Brasil, assim como de Olga Benario Prestes, deportada pelo governo brasileiro para a Alemanha nazista em setembro de 1936, e da sua filha com Prestes, Anita Leocadia, nascida logo depois numa prisão em Berlim.[4] A pressão da opinião pública mundial foi decisiva para salvar a vida de Prestes, sob a ameaça constante de ser liquidado fisicamente nas masmorras policiais. Foi decisiva também para que sua incomunicabilidade fosse quebrada e ele passasse a se corresponder com a família, a receber livros e jornais, e a avistar-se com seus advogados, embora tais “concessões” estivessem sempre sujeitas a interrupções por parte das autoridades policiais. A pressão da opinião pública mundial foi decisiva para salvar a vida da filha de Prestes e Olga, forçando as autoridades da Alemanha nazista a entregar a criança à avó paterna, ainda que não se tivesse conseguido libertar Olga, assassinada no campo de concentração de Bernburg, em abril de 1942.
Lygia acompanhou a mãe durante toda a Campanha Prestes pela libertação de Prestes e dos demais presos políticos no Brasil, primeiro na Europa (1936-1938) e depois no México, onde esteve exilada ao lado da mãe e da pequena sobrinha Anita Leocadia. Junto com a mãe, Lygia foi três vezes à Alemanha nazista na tentativa de salvar Olga Benario Pestes e sua filha. Em janeiro de 1938, Anita Leocadia foi resgatada pela avó e a tia Lygia da prisão de mulheres em Berlim, onde havia nascido. A participação de Lygia foi muito importante para o sucesso dessa ação, fruto, em grande medida, da repercussão alcançada pela Campanha Prestes.
A partir da Europa e depois do México, Leocadia e Lygia deram apoio material e moral a Prestes e a Olga, não poupando esforços para quebrar sua incomunicabilidade enquanto prisioneiros e melhorar sua situação. Em 1943, com o falecimento de Leocadia, Lygia assumiu a criação e educação de Anita e deu continuidade à Campanha Prestes, viajando inclusive a Cuba com esse objetivo. Manteve permanente correspondência com o irmão preso, procurando minorar seus sofrimentos e enviando-lhe livros e revistas na medida em que isso lhe era permitido pelas autoridades carcerárias.
Em 1945, com a libertação dos presos políticos no Brasil, Lygia regressou ao país junto com Anita, ao encontro do irmão, que conquistara a liberdade após nove anos de prisão. A partir de então continuou a dar todo tipo de apoio ao irmão, ocupando-se da criação de sua filha Anita Leocadia. Durante longos anos secretariou as atividades de Prestes e contribuiu para a organização de seus livros e papéis, garantindo, ao mesmo tempo, que nada lhe faltasse na rigorosa clandestinidade em que se viu forçado a viver. Após o regresso ao Brasil, Lygia ingressou no PCB, passando a militar em várias organizações de base do partido. Sempre desempenhou tarefas reservadas, que lhe eram atribuídas pela direção do PCB e pessoalmente pelo irmão em suas atividades clandestinas. Trabalhando na retaguarda do partido e dando respaldo à vida ilegal de Prestes, Lygia revelou-se uma militante discreta, disciplinada e sempre disposta a renunciar à vida pessoal e a não medir sacrifícios pelo irmão e pelos ideais comunistas que abraçara desde jovem. Lygia nunca reivindicou cargos no PCB nem revelou qualquer pretensão de projetar-se ou de receber homenagens pelo seu passado de lutas. Lygia foi uma comunista extremamente modesta e discreta.
A partir do golpe civil-militar de abril de 1964, Lygia sofreu vários tipos de perseguição: teve a casa invadida pela Polícia Política e pelo Serviço Secreto do Exército, foi interrogada e ameaçada pelos militares do CENIMAR (Centro de Informação da Marinha) e, durante longos períodos, cotidianamente seguida por agentes da repressão.
Durante os anos do exílio de Prestes em Moscou (1971 a 1979), Lygia, com a ajuda da sua irmã Eloiza, organizou o envio permanente de jornais e revistas do Brasil, assim como de livros aqui publicados, permitindo que o irmão pudesse acompanhar os acontecimentos políticos no país.
Lygia Prestes sempre demonstrou preocupação com a preservação da memória de Prestes e dos comunistas. Foi autora, junto com Anita L. Prestes, do livro Anos Tormentosos. Luiz Carlos Prestes:correspondência da prisão (1936-1945)[5], que reproduz a correspondência de Prestes durante os anos de sua prisão.
Em 28 de setembro de 2007, aos 94 anos de idade, Lygia Prestes faleceu na cidade do Rio de Janeiro. Sua vida foi um exemplo de determinação e coragem, de dedicação sem limites à família e aos ideais revolucionários, aos quais aderiu com imenso entusiasmo sob a influência direta de seu irmão Luiz Carlos Prestes.
*Anita Leocadia Prestes é professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes (www.ilcp.org.br).
[1] MOPR – sigla em russo do Socorro Vermelho Internacional.
[2] Cf. “Cartas de Lygia Prestes e Leocadia Prestes”, in Arquivo Estatal Russo de História Social e Política (RGASPH), Fundo 495, op. 029, d. 104, p. 149-152; Fundo 495, op. 197, d. 1, p. 9-14, p.34; Fundo 495, op. 194, d. 1, p. 17-18; Fundo 495, op. 17, d. 159, p. 19-20, p. 29, p. 30, p. 39; Fundo 495, op. 17, d. 158, p. 12-13; Fundo 495, op. 29, d. 119.
[3] “Documento ass. Otávio Brandão”, in RGASPH, Fundo 495, op. 194, d. 1, p.1, p. 7-8.
[4] Sobre a deportação de Olga e o nascimento de sua filha, cf. MORAIS, Fernando de. Olga. S.P., Alfa-Omega, 1985.
[5] PRESTES, Anita Leocadia e PRESTES, Lygia (org., seleção e notas). Anos tormentosos. Luiz Carlos Prestes:correspondência da prisão (1936-1945). Volumes I, II e III. Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ); Ed. Paz e Terra, 2002.
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